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08 julho, 2025

𝑶 𝑬𝒙é𝒓𝒄𝒊𝒕𝒐 𝑰𝒍𝒖𝒎𝒊𝒏𝒂𝒅𝒐, de David Toscana

 

Autor: David Toscana
Título: O Exército Iluminado
Tradutora: Helena Pitta
N.º de páginas: 180
Editora: Parsifal
Edição: Outubro 2014
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3718)





OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐

Em O Exército Iluminado, David Toscana, pelo viés de uma visão quixotesca, tece uma metáfora do patriotismo, do nacionalismo ferido.
É uma narrativa ousada e provocadora plena de ironia e emoção que transforma os fracassos em heroísmo e o absurdo em beleza.

Ignacio Matus, protagonista e motor da narrativa, é um professor ressentido e obcecado por perdas importantes: do território do Texas para os Estados Unidos e pela medalha de bronze de maratonista que alega ter-lhe sido roubada por um atleta norte-americano, Clarence DeMar, nas Olimpíadas de Paris, em 1924.
Matus é expulso da escola onde lecciona, por insistir, junto dos seus alunos, naquilo que ele considera a “vergonha nacional”. Inconformado, decide formar um exército – o Exército Iluminado - de crianças com deficiência para recuperar o território perdido no século XIX.

Toscana cria uma utopia, e como tal, recorre a uma trama inusitada, absurda, misturando delírio com idealismo, trágico com cómico e humor negro e brinda-nos com uma narrativa magnífica recheada de personagens carismáticas. Tomemos, por exemplo, “o gordo Comodoro”, que apesar da sua condição física e das suas evidentes limitações, é retratado com afeto e humor.

Assim, Toscana transforma personagens marginalizadas, com limitações graves, em heróis, em símbolos de resistência. É a celebração dos fragilizados que se tornam iluminados.

O Exército Iluminado é, por isso, um livro fabuloso pela sua imprevisibilidade e ao mesmo tempo pela total falta de senso do protagonista que acredita ganhar uma guerra com estas cinco crianças. A missão de recuperar o Texas é absurda, mas é através desta metáfora que o autor estabelece uma relação directa com os delírios de D. Quixote.
Toscana constrói uma trama carregada de ironia para nos falar de uma realidade que marcou um país, da história mexicana. Cria uma narrativa original e sensível. De forma comovente, mas não lamecha, mescla a dimensão histórica com a efabulação para explorar a complexidade do ser humano. Ao estruturar a narrativa de forma fragmentada, como se revisitasse memórias soltas, permite que passado, presente e futuro coabitem naturalmente com as vivências das suas personagens, estabelecendo uma relação entre a vida e a história; o presente e o passado, ou melhor, a fragilidade da vida retratada nestes anti-heróis e a força da memória de um homem patriota.

Toscana conduz o leitor para um universo de realismo mágico, bem nos trilhos de um Gabriel Garcia Márquez ou de um Juan Rulfo. O leitor, facilmente, seduzido deixa-se comover pela escrita poética e crua com que narra os acontecimentos insólitos vividos pelas crianças e deixa-se, sobretudo, invadir ora pela tristeza ora pela esperança e determinação. Tudo isto é um convite à reflexão. David Toscana eleva a sua narrativa a um patamar tão quixotesco que nos impele a questionar o sentido da vida e a natureza da violência num mundo tão caótico.

Foi uma bela descoberta. Mais um autor a acrescentar à já longa lista de autores sul-americanos.


12 junho, 2025

𝑫𝒐𝒓 𝒇𝒂𝒏𝒕𝒂𝒔𝒎𝒂, de Rafael Gallo

 


Autor: Rafael Gallo
Título: Dor Fantasma
N.º de páginas: 275
Editora: Porto Editora
Edição: Março 2023
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3685)




OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


O enredo centra-se em Rómulo Castelo, um pianista conceituado, que ambiciona o reconhecimento mundial como “um dos maiores intérpretes de Liszt” ao estrear “a peça intocável” pelo seu grau de dificuldade - Rondeau Fantastique - na tournée pela Europa que já tem agendada.

O protagonista é professor universitário de piano. Herdou do pai, um famoso maestro, o gosto e a valorização da música que deve ser praticada com rigor e disciplina para alcançar a perfeição, a excelência. “O zelo exige rigor.” 

Rafael Gallo é exímio na condução da sua narrativa. Nas primeiras três páginas coloca o pianista em palco, a tocar Funerais, de Franz Liszt e as expectativas criadas “entre o palco e a plateia” estendem-se ao leitor. São três páginas em que o protagonista “foi a música” e o escritor “foi a escrita”. Ficamos, desde logo, deslumbrados e também preocupados com a antecipação da informação de que será o último recital.

O rigor absorvido ao longo da sua aprendizagem como músico e a obsessão pela perfeição faz de Rómulo Castelo uma pessoa antipática, exigente e intolerante com os alunos e colegas; insensível e cruel com a esposa, Marisa, e o filho, o pequeno Franz (Franzinho) que desde o nascimento “mostrou um desvio”.
Rómulo vive exclusivamente para a música. Em casa, foge da rotina doméstica e tranca-se “na sala de estudos: caixa-forte entranhada na alvenaria do lar, arquitetura da impenetrabilidade. O lugar dele.” (p.20) e isola-se de tudo e de todos. Num mundo só dele partilhado apenas com o seu Steinway e um retrato de Liszt. Um solitário que não entende a vida.
Até que um dia o destino lhe prega uma partida. Avassaladora. Rómulo não vai saber lidar com a nova realidade, com essa dor fantasma (que não vou revelar) e a sua vida regrada transforma-se num caos.

Rafael Gallo dirige a escrita, tal uma batuta, com andamentos intensos e inquietantes. A narrativa, dividida em quatro partes – Coda, Exposição, Desenvolvimento e Cadenza - confunde-se com uma partitura em que as palavras são música e silêncios. O final, então, é fabuloso. O leitor permanece siderado perante a beleza das palavras. E tal como Rómulo Castelo que, sempre que executava na perfeição a sua obra intocável, apontava um orgulhoso “Estala, estala, estala a medida consistente da perfeição.”, também, na minha opinião, se pode aplicar a Rafael Gallo em relação ao seu livro. Equivalem-se, assim, quanto à execução, protagonista e escritor.

Contudo, não posso deixar de referir que por muito que o protagonista se dedique à sua profissão, à música e considerando, ainda, que o autor tenha amenizado a personagem com os seus dramas, não consigo sentir empatia por ela. É inadmissível que uma pessoa que lida com a beleza e a sensibilidade da música não consiga tornar-se mais afável. Pelo contrário, a sua obsessão doentia vai levá-lo a agir sem escrúpulos, a magoar os seus familiares e amigos e vai conduzi-lo à loucura. Assim, o leitor vive um enorme paradoxo. Ora sente admiração pelo professor e músico, ora sente repulsa pelo homem. E é esta ambiguidade que vai manter o suspense e o interesse até ao final.

Para concluir, Dor Fantasma é uma crítica acérrima à busca obsessiva da perfeição, à ambição, à forma como encaramos a vida a partir do “Eu”, das preferências individuais e muito pessoais.


15 maio, 2025

𝑪𝒂𝒓𝒕𝒂 𝒂 𝑩𝒐𝒔𝒊𝒆, de Oscar Wilde

 


Autor: Oscar Wilde
Título: Carta a Bosie
Tradutora: Maria Célia Coutinho
N.º de páginas: 108
Editora: Nova Vega
Edição (3.ª): 2022
Classificação: Cartas
N.º de Registo: (3564)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐



Albert Camus referiu-se a esta carta como “um dos mais belos livros que nasceram do sofrimento de um homem. Concordo inteiramente e vou tentar expor a minha apreciação.

Carta a Bosie é um texto de grande carga emocional e filosófica. Escrita durante o seu encarceramento em Reading, condenado por sodomia, é um enorme desabafo de introspecção e dor, mas também de lucidez e auto-conhecimento. Oscar Wilde expõe, de forma brutalmente honesta, as suas reflexões sobre o amor, a traição, o ódio, o sofrimento, a arte e a espiritualidade, além de nos facultar uma análise profunda sobre a sua relação com Lorde Alfred Douglas, isto é, Bosie.
Famoso e reconhecido pelo seu talento, Wilde apaixonou-se perdidamente por Douglas, um jovem vaidoso e mimado de hábitos caros, sofisticados e fúteis.

A sua escrita funciona como uma catarse, um modo de lidar com a humilhação, o sofrimento e a perda (“perdera o nome, a posição, a felicidade, a liberdade, a riqueza” e a mulher e os filhos). A angústia é palpável e intui-se como a desgraça de estar preso molda a sua visão sobre a vida, o amor e até sobre si próprio. A honestidade das palavras torna a crítica dirigida a Bosie, muito feroz. Wilde descreve-o como ingrato, egoísta, preguiçoso e como a principal causa da sua ruína “tanto do ponto de vista intelectual como ético”.

Carta a Bosie reflecte uma análise brutal sobre o amor, o poder e a manipulação. Wilde percebe que a sua devoção não foi correspondida de forma sincera e que Bosie se aproveitou tanto do amor que lhe foi dedicado como dos privilégios (estatuto e dinheiro) que essa relação lhe proporcionou. Essa revelação, aliada ao sofrimento físico e emocional do período na prisão, torna a carta ainda mais angustiante e implacável.

Wilde, exausto e devastado, não se poupa na crítica, lamenta não apenas a sua derrocada, mas também a cegueira que o impediu de perceber, em tempo útil, a verdadeira natureza daquele relacionamento. Mas, ao mesmo tempo, demonstra um certo desejo de que Bosie possa transformar-se. Wilde oscila entre o desencanto e a esperança, entre o rancor e o arrependimento, entre a racionalidade de quem vê a verdade e a fragilidade de quem ainda acredita no poder do amor.
"As pessoas cujo desejo é o da sua própria realização nunca sabem para onde estão a caminhar (…) conhecer-se a si próprio. Esta é a primeira realização do conhecimento. Mas reconhecer que a alma de um homem é incognoscível é a última realização da sabedoria. O mistério último somos nós próprios.” (p. 81)

Em suma, esta carta tão fascinante, tão intensa e pessoal é um testemunho poderoso de dor, arrependimento e reflexão, e um dos textos mais marcantes da literatura auto-biográfica. Wilde parece alcançar algum alívio ao expor a sua dor e a sua frustração, como se ao verbalizar tudo finalmente conseguisse distanciar-se emocionalmente da relação. No fundo, Wilde não escreve apenas sobre Bosie, mas sobre si próprio, sobre a sua ingenuidade e a necessidade de encontrar sentido no sofrimento.


29 abril, 2025

𝑻𝒓𝒊𝒆𝒔𝒕𝒆, de Daša Drndić

 


Autora: Daša Drndić
Título: Trieste
Tradutor: António Pescada
N.º de páginas: 419
Editora: Sextante Editora
Edição: Setembro 2019
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3603)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐


Trieste, de Daša Drndić, é uma obra monumental que mescla ficção e factos, oscilando entre a verdade cruel e a vida sentimental de Haya Tedeschi. É mais uma perspectiva sobre o impacto do Holocausto, numa abordagem profunda e inovadora que nos obriga a reflectir sobre as cicatrizes deixadas pelo passado nazi. Drndić escava a memória para nos mostrar a importância de recordar para que a história não se repita.

A narrativa conta a história da protagonista, Haya Tedeschi, uma mulher italiana e judia que espera durante 62 anos o regresso do seu filho raptado pelas SS. Mas a autora não se fica, apenas, pelo percurso de Haya, constrói um mosaico pormenorizado sobre a presença e a actuação alemãs na Itália e os seus impactos quer nas pessoas quer nas localidades com a ascensão do nazismo. A trama expande-se incluindo fotografias, listas de vítimas de judeus deportados e assassinados, testemunhos de oficiais transcritos dos julgamentos, e relatos de atrocidades perpetuadas pelos nazis.

Drndić apresenta-nos, de forma crua e directa, uma experiência literária intensa, perturbadora e comovente, desafiando o leitor a confrontar a fragilidade da memória com a repetição dos mesmos erros e com a impunidade daqueles que os cometem. Drndić destaca testemunhos que exemplificam a forma como a responsabilidade pode ser diluída, distorcida e mesmo anulada no discurso de quem cometeu crimes horríveis.

Gostei da abordagem à memória dos julgamentos. A forma como Trieste expõe os testemunhos e os documentos históricos lembra muito a análise do julgamento de criminosos nazistas que Hannah Arendt empregou em Eichmann em Jerusalém. Há uma ressonância evidente com o pensamento de Arendt, especialmente na questão da banalidade do mal.

Trieste é um livro exigente que requer uma imersão completa do leitor e a necessidade de, em certas descrições, respirar profundamente. A maneira como a autora incorpora informação, documentos, testemunhos atribui um peso emocional e perturbador à narrativa.


13 março, 2025

𝑶 𝑺𝒂𝒏𝒈𝒖𝒆 𝒅𝒐𝒔 𝑶𝒖𝒕𝒓𝒐𝒔, de Simone de Beauvoir

 


Autora: Simone de Beauvoir
Título: O Sangue dos Outros
Tradutor: Miguel Serras Pereira
N.º de páginas: 255
Editora: Colecção Mil Folhas - Público
Edição: Janeiro 2003
Classificação: Romance
N.º de Registo: (1466)




OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


Em O Sangue dos Outros, Simone de Beauvoir explora as complexidades morais e existencialistas enfrentadas pelas personagens durante a ocupação alemã em Paris, na Segunda Guerra Mundial. Nestes tempos de conflito, o leitor encontra-se dividido perante as decisões de Jean e Hélène; perante a angústia de viver e de ser ou não necessário para o outro; perante a verdade e a mentira; perante a aceitação de amar.
“ (…) E a angústia explode, sozinha no vazio, para além de todas as coisas desvanecidas. Estou sozinho. Eu sou esta angústia que existe por si só, apesar de mim; confundo-me com esta existência cega. Apesar de mim, e contudo não jorrando senão de mim. Recuso-me a existir: existo. Decido existir: existo. Recuso. Decido. Existo. Haverá uma alvorada.” (p. 140)

O mote do romance é-nos facultado pela brilhante epígrafe "Todos somos responsáveis por tudo perante todos", de Dostoievski. Desde logo, somos confrontados com a responsabilidade de existir, de tomar decisões. A angústia da escolha entre a liberdade individual e a colectiva manifesta-se ao longo da narrativa e Jean Blomart questiona-se e interroga os outros sobre o significado de liberdade, sobre os limites dessa mesma liberdade, sobretudo quando milita num movimento de resistência.

Neste livro fica claro que, apesar de sermos livres de escolher, quando o somos (veja-se a situação do povo judaico), a consciência de que temos essa liberdade, pode tornar-se num grande sofrimento. Blomart desafia-nos a reflectir sobre o impacto que cada decisão pode ter na vida de outrem. 
"Contar as vidas humanas, comparar o peso de uma lágrima com o peso de uma gota de sangue, era uma tarefa impossível, mas ele já não tinha que fazer contas, e toda a moeda era boa, mesmo essa: o sangue dos outros. O preço nunca seria caro de mais. (…) Tudo é melhor que o fascismo.” (pp. 201 e 202)

Acompanhamos todas as suas dúvidas e com ele vivemos o tormento da culpa e da responsabilidade. Recorrentemente, somos confrontados com questões como "Até que ponto somos responsáveis pelo sangue dos outros?", "Onde estava a culpa?", "Que podemos nós fazer?", "O que é o amor?".

O Sangue dos Outros é um romance poderoso e provocador, publicado em 1945. Numa escrita despretensiosa e natural, arrasta o leitor para a essência do existencialismo, da condição humana, explorando a culpa, o remorso ("por todo o lado, em todas as encruzilhadas, o remorso rondava: eu trazia-o colado à minha pele, íntimo e tenaz), a vergonha (“a nova imagem do remorso"), a responsabilidade da escolha, a angústia, a solidão, a busca da liberdade num mundo absurdo, em guerra. Nele, cada personagem luta por si, e é forçado a encontrar os seus valores morais.
"As pessoas são livres – disse eu [Jean] -, mas apenas cada uma por si própria; não podemos tocar na liberdade dos outros, em prevê-la, nem exigi-la. É exactamente isso que me é tão penoso; o que faz o valor de um homem não existe senão para si próprio, não para mim…" (p. 113)

Em 1983, O Sangue dos Outros foi adaptado ao cinema por Claude Chabrol, com Jodie Foster e Sam Neill nos papéis principais.



07 fevereiro, 2025

𝑴𝒊𝒏𝒉𝒂 𝑺𝒆𝒏𝒉𝒐𝒓𝒂 𝒅𝒆 𝑴𝒊𝒎, de Maria Teresa Horta

 



Autora: Maria Teresa Horta
Título: Minha Senhora de Mim
Editora: D. Quixote
Edição(3.ª): Fevereiro 2023
Classificação: Poesia
N.º de Registo: (3657)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐


Minha Senhora de Mim é um livro maravilhoso. MTH constrói uma poética íntima e erótica, com identidade própria, muito feminista, negando a subordinação e opressão impostas às mulheres da época, em Portugal. Em 1971, foi editado e, de imediato, censurado  sob o regime conservador e patriarcal do Estado Novo.

Nos 59 poemas que compõem o livro, verifica-se uma forte piscadela de olho à poesia trovadoresca. Quero acreditar que o fez como desafio e provocação, já que este tipo de composições era estritamente assinado por homens. Desta forma, MTH reivindica uma escrita muito própria que dá voz à mulher como autora. Este aspecto também sobressai no título. O recurso aos possessivos “minha” e “mim” não deixam dúvidas de que o discurso será na primeira pessoa.
No poema inicial “Regresso” , colocado em jeito de preâmbulo, a autora confirma o título e dá o mote ao conteúdo do seu livro, ou seja, que é de si que vai falar e que vai expor “ o que é secreto”.

“Regresso para mim
e de mim falo
e desdigo de mim
em reencontro
(…)
Trago para fora
o que é secreto
vantagem de saudade
o que é segredo
(…)

Assim, o sujeito poético vai revelar-se nas memórias do “eu”, na descoberta do seu corpo como desejo próprio e desejo do outro, na descoberta do prazer, no apelo do amante, no deleite amoroso. Cito “O Meu Desejo”(p. 82).

“Afaga devagar as minhas
pernas
Entreabre devagar os meus
joelhos
Morde devagar o que é
negado
Bebe devagar o meu
desejo”

MTH ao escrever abertamente sobre o seu corpo e sobre o corpo do homem objecto de desejo, transgride os cânones da literatura e ultraja a moral dos puritanos. Ora, no nosso país era inaceitável que uma mulher escrevesse “tais vergonhas” pelo que MTH foi violentamente agredida na rua e o seu livro foi retirado de circulação.

Claro que MTH sempre usou um discurso transgressor, mas esta obra marca uma viragem pela ousadia de escrever sobre o desejo feminino, atribuindo o papel central à mulher numa inversão do pré-estabelecido na sociedade portuguesa.

Para concluir, resta-me referir que, apesar de já ter lido alguns livros de MTH, descobri este aquando da leitura da biografia - A Desobediente - de autoria de Patrícia Reis. 

 



26 janeiro, 2025

𝑭𝒐𝒓𝒕𝒖𝒏𝒂, 𝑪𝒂𝒔𝒐, 𝑻𝒆𝒎𝒑𝒐 𝒆 𝑺𝒐𝒓𝒕𝒆, de Isabel Rio Novo


Autora: Isabel Rio Novo
Título: Fortuna, Caso, Tempo e Sorte
N.º de páginas: 727
Editora: Contraponto
Edição: Junho 2024
Classificação: Biografia
N.º de Registo: (3596)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐


No ano em que celebramos os 500 anos do nascimento de Camões, Isabel Rio Novo oferece-nos - Fortuna, Caso, Tempo e Sorte - um livro fascinante que revela um conhecimento profundo do homem e do poeta. O rigor da extensa e minuciosa pesquisa permite-lhe coligir informação dispersa, relacionar fontes já conhecidas, referenciar excertos, poemas, obras, clarificar aspectos pouco aprofundados ou imprecisos e apresentar dados novos. E quando não lhe é possível afirmar com certeza, por falta de dados, a autora interpela o leitor a imaginar a situação ou a decidir por si próprio. Aprecio esta interacção com o leitor, já manifestada numa outra biografia também de sua autoria, já que estabelece uma relação de cumplicidade.

Esta biografia dá a conhecer o homem e o poeta genial que escreveu a obra maior da nossa Literatura – Os Lusíadas. Mas desvenda, sobretudo, o homem de armas, o soldado que lutou com uma espada, que foi um “homem do seu tempo” com os seus “erros, má fortuna e amores ardentes”. Mas não nos iludamos, Camões foi bem mais do que isso e Isabel Rio Novo deixa-o bem claro nas suas páginas que o leitor lê como se fosse um romance.

Se já considerava Camões um dos meus poetas preferidos, agora que deslindei os detalhes de uma vida atribulada e intensa, plena de dificuldades e contradições; que verifiquei o seu entusiasmo e a sua curiosidade em aprender, estudar, ler  autores clássicos e outros do seu tempo; que confirmei a sua prodigiosa capacidade de escrever para si e para outros (por encomenda), de manejar a espada, de conquistar damas da corte e mulheres dos prostíbulos; que aprofundei o meu conhecimento da sua obra; agora, como referia, encaro-o e leio-o com mais admiração. Só lamento, não a vida miserável que teve, porque sendo um homem do seu tempo, outros a viveram e ele próprio a provocou, mas, lamento, os poemas, as obras que, certamente, se perderam no decorrer das suas desventuras.

Concluo, convidando-vos a descobrir esta belíssima obra escrita de forma exímia pela Isabel Rio Novo que tão bem soube elevar a beleza e a genialidade do poeta e demonstrar as fragilidades e infortúnios do homem que viveu “um momento excecional da história da humanidade” e nos deixou um legado literário único e extraordinário.