09 outubro, 2025

László Krasznahorkai vence Prémio Nobel da Literatura 2025

 




László Krasznahorkai é o grande vencedor do prémio Nobel da Literatura de 2025. A Academia Sueca distinguiu-o “pela sua obra convincente e visionária que, em meio do terror apocalíptico, reafirma o poder da arte”.

László Krasznahorkai nasceu em 1954, em Gyula, no sudeste da Hungria, perto da fronteira com a Roménia. Estudou direito e literatura em Budapeste antes de, em 1987, ter trocado a Hungria por Berlim e ter passado os anos noventa a viajar pelo Japão e pela China.

A sua obra conta com romances, ficções breves e guiões, estando dois deles traduzidos para português - Herscht  07769 (Cavalo de Ferro) e O Tango de Satanás (Antígona), adaptado para o cinema pelo realizador Bela Tarr.

A Real Academia Sueca de Ciências apontou, inclusive, que "uma zona rural remota semelhante é o cenário do seu primeiro romance, Sátántangó, publicado em 1985, que foi uma sensação literária na Hungria e a obra que marcou a consagração do autor".

A Real Academia Sueca de Ciências destacou que o livro Herscht 07769 é encarado "como um grande romance alemão contemporâneo, devido à sua precisão ao retratar a agitação social do país". É um livro, escrito de uma só vez, sobre violência e beleza 'impossivelmente' conjugadas", complementou.



08 outubro, 2025

Ana Paula Tavares vence Prémio Camões 2025

 

                                         FOTO: VASCO NEVES / ARQUIVO DN


A poeta e historiadora angolana Ana Paula Tavares é a vencedora da 37.ª edição do Prémio Camões, o mais prestigiado galardão literário de língua portuguesa

"O prémio distingue a sua trajetória fecunda e coerente na criação estética, sublinhando o resgate da dignidade da poesia e a relevância antropológica e histórica da sua obra, que inclui poesia, crónica e ficção narrativa", refere o júri, num comunicado enviado pela Direcção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas (DGLAB).

Notícia completa em Diário de Notícias


07 outubro, 2025

𝑨 𝑱𝒂𝒏𝒈𝒂𝒅𝒂 𝒅𝒆 𝑷𝒆𝒅𝒓𝒂, de José Saramago

 


Autor: José Saramago
Título: A Jangada de Pedra
N.º de páginas: 330
Editora: Caminho
Edição: Outubro 1986
Classificação: Romance 
N.º de Registo: (329)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


E se a terra que pisamos decidisse partir? Em 1986, ano em que Portugal e Espanha aderem à então Comunidade Económica Europeia (CEE), José Saramago publica A Jangada de Pedra, romance que transforma a Península Ibérica numa ilha errante. A separação literal da Europa torna-se metáfora da sua posição periférica, da identidade em risco, da escuta que se exige.

Neste romance, Saramago apresenta-nos uma alegoria poderosa sobre pertença e deslocação. O enredo narra a ruptura física da Península Ibérica com o continente europeu e acompanha seis personagens — Joana Carda, José Anaiço, Joaquim Sassa, Pedro Orce, Maria Guavaira e um cão — que, por razões diversas, se sentem ligadas ao fenómeno. Cada uma, com o seu mistério e origem distinta, acaba por cruzar-se numa travessia insólita pela península à deriva.

“Chegou o momento de dizer, agora chegou, que a Península Ibérica se afastou de repente, toda por inteiro e por igual…” (p. 36)

Temos, assim, dois planos narrativos entrelaçados: o real e o maravilhoso. A fantasia serve de lente crítica, permitindo a Saramago atribuir poderes extraordinários às personagens e transformar a Península numa jangada de pedra que flutua no Atlântico. A viagem, esse gesto tão Saramaguiano, emerge como reconhecimento, como busca de sentido, como aproximação ao outro. Individual primeiro, colectiva depois. Sonho, deslocação, esperança.

A intenção do autor ultrapassa largamente a aventura dos companheiros. Com humor e ironia, Saramago evidencia a incapacidade da Europa em lidar com o inesperado, denuncia o oportunismo dos Estados Unidos e de outras potências, e reflecte sobre o impacto da mudança nos vínculos humanos e sociais.

“Portugal e a Espanha foram dois países de pernas para o ar.” (p. 315)

No fundo, o romance questiona as consequências da integração europeia: Será legítimo abdicar da identidade em nome de uma Europa unificada?

A Jangada de Pedra inscreve-se num contexto político, ideológico e social específico, mas a sua inquietação permanece actual. Saramago revela uma profunda consciência crítica sobre o desenvolvimento de Portugal e uma preocupação constante com a posição e a identidade da Península Ibérica no seio europeu.

Apesar de não ser, para mim, a obra mais fulgurante de Saramago, nela ecoa uma inquietação que merece ser escutada. Recomendo a leitura como quem oferece uma jangada: não para fugir, mas para pensar em conjunto.

“Todos acabamos por chegar aonde queremos, é tudo uma questão de tempo e paciência.” (p. 275)



30 setembro, 2025

𝑶 𝑷𝒓𝒆ç𝒐 𝒅𝒂𝒔 𝑪𝒂𝒔𝒂𝒔, de Joaquim Cardoso Dias

 

Autor: Joaquim Cardoso Dias
Título: O Preço das Casas 
N.º de páginas: 62
Editora: Gótica
Edição: Outubro 2002
Classificação: Poesia
N.º de Registo: (3617)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐




O Preço das Casas, de Joaquim Cardoso Dias, é um livro breve, mas profundamente poético. A sua escrita concisa contrasta com uma amplitude emocional que ressoa muito para além do que se lê. Esta obra observa o quotidiano, fixa-se no detalhe através de uma lente crítica e melancólica, revelando o que se esconde por detrás da aparente banalidade dos espaços habitados. Cada verso, por vezes fragmentário, evoca silêncio, hesitação e contemplação. Espelha a fragilidade dos sentimentos, enquanto a simplicidade crua do vocabulário abre espaço para o não dito, para a hesitação que habita entre as palavras.

O próprio título sugere uma dupla leitura: o valor económico das casas e o “valor” existencial - o vivido, o emocional, o íntimo. Cada casa é um corpo que guarda, nas suas paredes, as marcas invisíveis dos que partiram. Um lugar onde o silêncio e a ausência se tornam presença – abrigo e ferida.

Em muitos poemas, há uma tensão entre o gesto íntimo e a ausência, entre o desejo e o esquecimento, entre o corpo e a linguagem. Posso exemplificar com o poema “SEM MENTIR” , o primeiro de todos e um dos meus preferidos.

ainda não sei se o amor esteve aqui de luz acesa
e se caminhou nu toda a noite
pelo tecto do quarto mas
eu tirei a roupa toda bebi água
e não te telefonei
qualquer coisa assim atirou-me de bruços
para o coração e lembrei-me
de te esquecer desde o começo
muito longe e alto nas escadas de incêndio
foda-se como acreditar que te amo
sem mentir


Este poema abre O Preço das Casas com uma força contida e visceral, como se o sujeito poético tentasse decifrar os rastos de uma presença amorosa. O amor é presença incerta - talvez apenas rastro, sonho, memória. A “luz acesa” não ilumina: expõe. E o corpo, despido e silencioso, não se entrega - recusa a comunicação. A imagem da queda emocional é poderosa. O “bruços” sugere vulnerabilidade. E logo a seguir, a lembrança de esquecer torna-se um gesto vivo, como se o amor só pudesse ser verdadeiro se começasse pelo apagamento - mas sem a mentira.
Poder-se-á concluir que este é um amor que se escreve na ausência, na hesitação, na queda. A linguagem é crua, íntima, sem ornamento. E o fecho rasga como uma explosão – uma verdade dita com raiva e ternura.

Li O Preço das Casas como quem entra devagar numa casa abandonada, onde cada verso é uma parede que ainda guarda o eco de quem partiu; como quem descobre o que resta depois de Al Berto. A ausência de Al Berto torna-se presença — como uma casa onde alguém partiu mas deixou “a luz acesa”. (p. 55)

Na minha opinião, há uma continuidade silenciosa entre O Medo e O Preço das Casas: o mesmo gesto de habitar o mundo poeticamente; a partilha de uma escrita marcada pelo corpo - lugar de desejo e de ferida; pela cidade como espaço de desencontro e de errância; pelo silêncio e pela memória.

Se ainda não conhecem a escrita de Joaquim Cardoso Dias, convido-vos a descobri-lo. Ler O Preço das Casas é como acender uma luz num quarto vazio — não para ver melhor, mas para reconhecer os vestígios do que foi vivido. Um ritual de escuta, onde cada palavra hesita, cada silêncio respira.




28 setembro, 2025

𝑨𝒔 𝑹𝒆𝒗𝒐𝒍𝒖𝒄𝒊𝒐𝒏á𝒓𝒊𝒂𝒔 - 𝑫𝒐𝒛𝒆 𝑴𝒖𝒍𝒉𝒆𝒓𝒆𝒔 𝑷𝒐𝒓𝒕𝒖𝒈𝒖𝒆𝒔𝒂𝒔 𝑫𝒆𝒔𝒐𝒃𝒆𝒅𝒊𝒆𝒏𝒕𝒆𝒔, de Maria João Lopo de Carvalho

 


Autor: Maria João Lopo de Carvalho
Título: As Revolucionárias - Doze Mulheres Portuguesas Desobedientes
N.º de páginas: 342
Editora: Sibila Publicações
Edição: Fevereiro 2023
Classificação: Biografias
N.º de Registo: (3717)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


As Revolucionárias não é apenas um livro sobre mulheres que fizeram história — é um testemunho da coragem que desafiou as estruturas rígidas de uma sociedade que queria as mulheres em casa, confinadas ao silêncio e à invisibilidade. Estas doze portuguesas (Maria Amália Vaz de Carvalho, Carolina Michaëlis de Vasconcelos, Angelina Vidal, Adelaide Cabete, Domitila de Carvalho, Ana de Castro Osório, Virgínia de Castro e Almeida, Carolina Beatriz Ângelo, Virgínia Quaresma, Irene Lisboa, Regina Quintanilha e Maria Lamas), que ousaram dizer não ao silêncio, à exclusão, à norma, foram as pioneiras na recusa de papéis impostos, desobedecendo aos estereótipos do “feminino” e abrindo caminhos limitados e bem pedregosos.

Cada uma delas, à sua maneira, com a sua linguagem em construção, foi uma desobediente contra o sistema que negava às mulheres o direito ao saber, ao trabalho, à voz pública, à autonomia e à liberdade. Temos médicas que desafiaram a exclusão das faculdades, advogadas que lutaram por direitos legais, jornalistas que deram visibilidade às causas femininas, professoras que abriram portam nas universidades, cineastas que captaram realidades silenciadas, intelectuais que questionaram o estabelecido.

A desobediência destas mulheres, a quem muito devemos, não foi um acto isolado, mas um movimento colectivo de resistência que atravessou o século XIX e o início do XX, da Monarquia, à República, ao Estado Novo. Todas enfrentaram censuras, preconceitos, exclusões sociais e políticas, mas mantiveram-se firmes na luta pelo reconhecimento do lugar da mulher na sociedade.
Entre as doze mulheres que Maria João Lopo de Carvalho convoca, duas representam, para mim, exemplos de uma travessia: Carolina Michaëlis, filóloga e professora universitária, e Maria Lamas, jornalista e ativista política.

Carolina, estrangeira por nascimento e íntima da língua portuguesa por vocação, ensinou-nos que o rigor pode ser gesto de amor. Foi a primeira mulher a lecionar numa universidade portuguesa, e fê-lo com uma delicadeza que desafiava o masculino institucional. A sua desobediência foi silenciosa, mas fundadora.
Maria Lamas, por outro lado, fez da palavra uma arma. Escreveu, traduziu, dirigiu revistas, enfrentou censuras e prisões políticas. Em As Mulheres do Meu País, percorreu Portugal com o corpo e com a escuta, fotografando vidas invisíveis. A sua desobediência foi pública, ruidosa, política — e profundamente poética.
Estas duas mulheres são as minhas preferidas. Não apenas pelo que fizeram, mas pelo modo como encarnam duas formas distintas e complementares de desobediência: a do silêncio que funda e a do grito que transforma. Mas todas, as doze, foram desbravadoras e construíram um legado de ousadia, solidariedade e transformação.

Em suma, este livro não é uma biografia colectiva. É um manancial de memórias. Em cada capítulo (breve biografia) encontramos não apenas factos, mas feridas, dúvidas, receios, gestos de coragem e cumplicidades entre mulheres. Este livro é, assim, um convite para escutar essas vozes que recusaram o silêncio, para reconhecer a luta que continua, e para celebrar a desobediência como força vital que faz avançar o mundo. Lê-lo é um acto de resistência e de possibilidade de futuro.

Recomendo a sua leitura. Gostaria que houvesse uma continuação porque houve mais mulheres corajosas e desobedientes no nosso país.


25 setembro, 2025

43 vezes o tempo

 


43 vezes o tempo
(para quem caminha com raízes, sem precisar de legenda)

Houve entendimento,
mais que prometimento,
houve tempo,
marcas que o tempo não apaga,
que não se escreveram em pedras,
apenas esculpidas no coração.

Houve ritos,
mais que pactos e palavras,
no gesto de cada dia,
na hesitação de um prato lavado,
no silêncio entre dois cafés.

Não houve alaridos,
houve tempo,
tempo que não se mede
nem conta medalhas.

43 vezes o tempo,
sem manual,
com desvios,
com coragem para ficar
quando o amor já não precisa
de nome,
mas ainda tem lugar.

GR

𝑨 𝑴𝒂𝒊𝒔 𝑺𝒆𝒄𝒓𝒆𝒕𝒂 𝑴𝒆𝒎ó𝒓𝒊𝒂 𝒅𝒐𝒔 𝑯𝒐𝒎𝒆𝒏𝒔, de Mohamed Mbougar Sarr

 


Autor: Mohamed Mbougar Sarr
Título: A Mais Secreta Memória dos Homens
Tradutores: Cristina Rodriguez e Artur Guerra
N.º de páginas: 433
Editora: Quetzal
Edição: Outubro 2022
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3735)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐




A Mais Secreta Memória dos Homens, de Mohamed Mbougar Sarr, é mais do que um romance — é uma travessia literária entre o mistério da criação, o silêncio da memória e a revolução da linguagem. A obra debruça-se sobre o desaparecimento de um autor e a busca por uma obra mítica — tudo envolto numa atmosfera de dúvida, silêncio, revolta e beleza que ecoa profundamente no leitor, deixando palavras suspensas, sentidas; legando descrições fabulosas que extasiam; cruzando figuras literárias intensas e enigmáticas.

“De um escritor e da sua obra, podemos pelo menos saber isto: um e outro percorrem juntos o labirinto mais perfeito que possamos imaginar.” (p. 15) E eu acrescentaria também o leitor.

O romance é um labirinto — não apenas narrativo, mas emocional. Há cartas, vozes, entrevistas, críticas, fragmentos de livros que nunca existiram, silêncios. E há perguntas que o atravessam: o que significa escrever quando o mundo te lê com desconfiança? Como pode a escrita — ou um autor — ser “reduzido a uma pele, a uma origem, a uma religião, a uma identidade”? (p. 291)

O enredo foca-se em Diégane Latyr Faye, jovem escritor senegalês exilado em Paris, que descobre vestígios de um romance lendário, O Labirinto do Inumano, escrito por T.C. Elimane — autor maldito, desaparecido, talvez inventado. Diégane decide procurá-lo — o “Rimbaud negro” — e a investigação leva-o por Paris, Amesterdão, Dakar e outros lugares, cruzando-o com figuras literárias como Marème Siga D., a “Aranha-mãe” da escrita. Mas o que ele encontra é muito mais do que um nome: encontra o eco de todos os escritores silenciados, apagados, esquecidos. E eu, leitora, encontrei-me também nesse eco.

A ressaca da leitura ainda perdura em mim. Há livros que não terminam quando viramos a última página; Fica o silêncio preso à última vírgula; Fica o cheiro das páginas impregnado na pele das nossas mãos; Fica a cumplicidade íntima da descoberta; Fica o eco de uma frase lida ou sonhada; Fica o tempo irreal; Fica o leitor suspenso…

A escrita de Sarr é bela, versátil e profundamente poética, com ecos de Bolaño e uma energia narrativa que mistura crítica literária, história colonial e reflexão sobre o papel do escritor. É uma obra que interroga o que é ser autor, o que é ser lido e como a literatura pode sobreviver ao tempo, à crítica e ao esquecimento.

Leitura exigente e intensa. Há frases que parecem sussurradas por fantasmas, outras que gritam contra o apagamento: “Resistam à sombra. Mantenham-se vivos.” (p. 257)

Este livro fez-me pensar nos meus próprios silêncios, nas leituras que me moldaram, nas vozes que me acompanham. Fez-me revisitar o gesto de escrever, o medo de ser lida, a alegria de encontrar um autor que me escuta. Fez-me lembrar que a literatura não é apenas arte — é sobrevivência, é memória, é resistência. E quando o livro termina, o leitor permanece — suspenso entre o que foi lido e o que ainda ecoa.



16 setembro, 2025

Aquele dia

 

                                                               

Esta imagem-poema criada com IA (Copilot_16_09_25) nasce do encontro entre palavra e gesto, entre memória e matéria. O texto, dividido em quatro estrofes, percorre os contornos de um dia que se transforma — ora indesejado, ora festivo, ora contraditório — revelando camadas de tempo, afeto e transição. O tempo a virar página. 




Aquele dia
transitório
indesejado
marco de um retorno
já é passado

Aquele dia
taciturno
início de burocracia
de rotinas
já é finitude

Aquele dia
inicial
festivo
de reencontros e de sorrisos
já anuncia saudades

Aquele dia
contraditório
agora sem compromissos
é princípio de remoçamento


GR

15 setembro, 2025

A Espuma das Dúvidas

 

                                                        

Texto breve inspirado em Ítalo Calvino, com um toque de humor e inspiração política.

Num tempo em que até o mar parece hesitar, este exercício criativo acompanha o senhor Palomar — personagem de olhar minucioso e pensamento inquieto — enquanto observa o vai e vem das ondas. Mas há alguém que o observa também: uma narradora cúmplice, sentada na areia, que vê no seu gesto uma metáfora para o país à beira das eleições.
Entre a espuma e o silêncio, entre o olhar e o voto, nasce este texto de hesitação universal e muito pessoal.

“O mar está levemente encrespado e pequenas ondas vêm bater na costa arenosa. O senhor Palomar encontra-se na praia, de pé, e observa uma onda” com a solenidade de quem está a tentar decifrar um programa eleitoral redigido na gramática da espuma.

Eu, sentada a uns metros, observo Palomar. Ele observa o mar. O mar, por sua vez, parece ocupado demais, a repetir-se, para reparar em nós. A cena tem algo de coreográfico: a onda avança, recua, avança, recua, ora discreta ora vigorosa — como um candidato em campanha, cheio de promessas e pouco consistente.

Palomar não pisca. Mantém o olhar na onda. Eu já pisquei vinte vezes, e até já limpei os óculos. Ele permanece imóvel, como se o seu corpo fosse apenas um suporte para o olhar. A onda aproxima-se com mais vigor. Molha-lhe os pés. Ele não reage. Eu reajo por ele, num reflexo solidário. Mas ele continua firme, como quem acredita que o mar só revela os seus segredos a quem não se deixa influenciar por sondagens.

A próxima onda hesita. Palomar também. A espuma suspende-se por um instante.
Ele murmura:
— Esta onda... está indecisa.

Eu sorrio. Claro que está. Aproximam-se as autárquicas. Até o mar parece dividido entre manter o rumo ou votar na mudança. A espuma recua, como quem não quer comprometer-se. Palomar franze o sobrolho, talvez a tentar perceber se a ondulação é mais virada para o centro ou para a esquerda.

O vai e vem das ondas torna-se hipnótico. Há uma cadência, uma espécie de respiração do mundo. Palomar parece tentar sincronizar-se com ela. Eu tento sincronizar-me com Palomar, mas ele está num fuso horário diferente. Talvez esteja a contar as ondas como votos. Ou a tentar perceber se alguma delas é populista.

No fim, quando o sol começa a mergulhar no horizonte e a praia se pinta de dourado, Palomar dá um passo atrás. Olha para os pés molhados. Olha para mim. E diz, com a serenidade de quem passou o dia inteiro a conversar com o infinito:

— Acho que esta última... estava quase a decidir-se.

Eu sorrio. Talvez estivesse. Ou talvez fosse só mais uma onda. Mas mesmo entre espumas e incertezas, há sempre um momento em que é preciso escolher.

GR


13 setembro, 2025

𝑮𝒆𝒏𝒕𝒆 𝒅𝒆 𝑫𝒖𝒃𝒍𝒊𝒏, de James Joyce

 

Autor: James Joyce
Título: Gente de Dublin
Tradutor: B. de Carvalho
N.º de páginas: 221
Editora: Vega/Público
Edição: 1995
Classificação: Contos
N.º de Registo: (563)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


Gente de Dublin (Dubliners) é considerada por muitos como uma obra-prima já reveladora da genialidade estilística e temática de James Joyce. Publicada em 1914, contém quinze contos que retratam com precisão e melancolia a vida quotidiana da classe média e trabalhadora de Dublin, no início do século XX.

Cada história é autónoma, mas juntas formam um retrato colectivo da cidade, como espaço estagnado, e dos seus habitantes. Nelas, nas histórias, Joyce constrói um mosaico de vidas marcadas pela memória, pela ironia devastadora, pela hesitação emocional, pela rotina, pela perda da fé, pela paralisia intelectual e pela morte – morte de sonhos, de possibilidades, de relações.

Joyce recorre a uma escrita realista, precisa e observadora, evita sentimentalismos e usa a cidade – Dublin – como presença viva que molda os destinos das suas personagens. O passado e a memória são uma constante. Influenciam na tomada de decisão de algumas personagens, gente simples, e revelam uma identidade irlandesa, muito conservadora, em busca de sentido.

Gente de Dublin revela-nos um território íntimo e crítico atravessado por silêncios e desejos não concretizados. Cada conto evolui ao ritmo do seu protagonista, numa época de transformações socais e políticas, permitindo ao leitor aceder a camadas da relação, da vida humana sem que aconteçam grandes sobressaltos. É sempre o habitual, a normalidade que prevalece. Tudo fica igual, não há suspense. Muitos contos não apresentam uma conclusão, uma solução ao problema. Mas engane-se quem considerar que, pelo facto de não haver surpresas na evolução da história, a narrativa se torna aborrecida. Não! A beleza da escrita de Joyce encarrega-se de nos manter cativos ao enredo. A ingenuidade aparente de alguns relatos convida-nos à reflexão e surpreende-nos.

Gostei da leitura deste livro. Destaco o último conto – O Morto – que testemunha o desmoronar de uma época, de um país. Bela metáfora.




08 setembro, 2025

Onda Literária | 5, 6 e 7 Setembro 2025



A 3.ª Edição da Onda Literária promovida pelo Centro de Artes de Sines e Biblioteca Municipal ofereceu-nos um programa de luxo.Foram três dias intensos de iniciativas e de partilha de livros, leituras, conversas, fotografias, sorrisos, gargalhadas e abraços.
Adorei cada momento.
Descobri novos autores, confirmei valores certos da nossa literatura.
Este ano, tive o privilégio de moderar dois encontros com escritores que integram a minha lista de autores de leitura imperdível (tinha escrito obrigatória, mas alterei porque o pessoal detesta o que é obrigatório 😉)
A primeira moderação foi com Isabel Rio Novo e Paulo M. Morais e a segunda com Ondjaki. Dois momentos distintos, mas ambos enriquecedores e convincentes quanto à qualidade da obra que publicam.
Fiquei muito mais rica com as aprendizagens adquiridas e feliz com os momentos vividos.
O tempo ora quente, ora frescote, ora ainda chuvoso veio acrescentar alguma imprevisibilidade ao evento.
Apenas um lamento. Constatei, mais uma vez, que em Sines, um excelente Festival Literário não enche recintos. Valeu-nos a presença de um gato atento e curioso para colmatar um pouco esse vazio.
Até pró ano!









30 agosto, 2025

𝑶 𝑻𝒆𝒎𝒑𝒐 𝒅𝒐 𝑪ã𝒐, de Ondjaki e António Jorge Gonçalves

 



Autor: Ondjaki
Título: O Tempo do Cão
Ilustrador: António Jorge Gonçalves
N.º de páginas: ---
Editora: Caminho
Edição: Fevereiro 2025
Classificação: Conto / novela gráfica
N.º de Registo: (3679)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


O Tempo do Cão é um livro delicioso. A conjugação do texto poético de Ondjaki e os desenhos e grafismos de António Jorge Gonçalves tornam este livro num autêntico objecto de arte, uma obra-prima. Não é a primeira obra que criam em conjunto. Já se conhecem bem de outros projectos, como Uma Escuridão Bonita e O Convidador de Pirilampos.
Nesta novela gráfica de capa dura e avermelhada, com desenhos a branco num fundo azul forte, “Há o guevara” e “havia um cão” que criam laços afectivos, num sítio real, ao pé do lago Tanganica, no Congo.
Não me vou pronunciar muito mais sobre a estória porque tudo o que referir vai retirar ao leitor o prazer da descoberta e da sua própria leitura, já que este livro oferece múltiplas interpretações.

O que posso aconselhar é que desfrutem da leitura. Leiam o texto e os desenhos com prazer



22 agosto, 2025

𝑵𝒆𝒎 𝑻𝒐𝒅𝒂𝒔 𝒂𝒔 Á𝒓𝒗𝒐𝒓𝒆𝒔 𝑴𝒐𝒓𝒓𝒆𝒎 𝒅𝒆 𝑷é, de Luísa Sobral

 

~

Autora: Luísa Sobral
Título: Nem Todas as Árvores Morrem de Pé
N.º de páginas: 222
Editora: D. Quixote
Edição: Fevereiro 2025
Classificação: Romance
N.º de Registo: (Emp.)



OPINIÃO ⭐⭐⭐


Conhecemos bem a Luísa Sobral como cantora e compositora. Uma voz muito própria do mundo musical, pelo que havia uma certa expectativa em relação a este seu primeiro romance. Admito que ainda não constava na minha lista de leituras mais imediatas, mas como estava agendada a sua participação na Onda Literária, decidi lê-la já.
A leitura é fluída muito graças à delicadeza da escrita e às frases curtas e poéticas.
Fiquei a saber pela Luísa Sobral que a história que acabou em romance, começou por ser canção, Maria Feliz, e que a história, verídica, recria o passado de um casal alemão que se suicidou em Portugal.

No romance, a narrativa centra-se em duas mulheres, Emmi e M., com histórias muito paralelas, vítimas da época mais sombria de uma Alemanha dividida, literalmente, pelo muro de Berlim, mas também e, sobretudo por visões cultural, social e política bem distintas. Luísa Sobral lega-nos as vivências e as emoções de duas vidas feridas e marcadas por mágoas familiares.

O livro apresenta, ainda, uma característica muito peculiar e interessante. Os capítulos dedicados à vida de M. iniciam com o nome comum e científico de uma planta (árvore, flor, erva aromática), completados com uma característica e ilustração da mesma. Pelo que as plantas desempenham um papel importante na vida desta personagem e enriquece, em muito, a narrativa.

Gostei da leitura, mas confesso que não foi arrebatadora. Contudo, recomendo a sua leitura.


17 agosto, 2025

𝑨 𝑴𝒂𝒕é𝒓𝒊𝒂 𝑫𝒂𝒔 𝑬𝒔𝒕𝒓𝒆𝒍𝒂𝒔, de Isabel Rio Novo




Autora: Isabel Rio Novo
Título: A Matéria Das Estrelas
N.º de páginas: 191
Editora: D. Quixote
Edição: Maio 2025
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3711)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


Já o referi, mais do que uma vez, e reitero que considero a Isabel Rio Novo uma das melhores escritoras portuguesas na nossa produção literária contemporânea.
Ao iniciar, A Matéria das Estrelas, já sabia que a fasquia estava elevada. O romance já recebera um prémio e as críticas eram muito positivas. Sabia de antemão que ia gostar, quando se gosta muito de um(a) autor(a) nunca se fica desiludido. Mas sabendo tudo isto, ainda fui surpreendida e fiquei muita agradada ao perceber que este romance dava uma enorme “piscadela de olho” a uma obra de Paulo M. Morais (obra magnífica e que recomendo muito). Não vou revelar muito desta interacção, para não retirar o prazer da descoberta, refiro, apenas que o protagonista, Jacinto, é também uma personagem do livro A Boneca Despida.
Esta cumplicidade entre os dois escritores, engrandece-os, na minha opinião. E se no livro, a dedicatória de Isabel Rio Novo “Ao Paulo, com quem caminho pelos terrenos da realidade e da ficção”, já fazia sentido pelo apoio mútuo com que se brindam, agora, faz ainda muito mais sentido.

Em A Matéria das Estrelas, Isabel Rio novo conduz o leitor até meados do século XX (anos 60 e 70) com incursões ao tempo das navegações, sobretudo de Bartolomeu Dias. A narrativa balança harmoniosamente entre a história de Jacinto, de Bartolomeu Dias e a do narrador investigador e omnisciente. A autora revela uma grande mestria ao cruzar os diversos tempos da narração: o histórico, o psicológico, o da memória, e o da ficção.

A narrativa oferece diversas camadas de leitura. São vários os temas abordados, mas podemos referir que se foca, essencialmente, no incidente misterioso que alterou o destino do jovem oficial da marinha, Jacinto da Silva Fernandes. É através da investigação conduzida pelo médico, com quem ainda mantém laços familiares, que tomaremos conhecimento, de forma não cronológica, da história de Jacinto, de alguns aspectos familiares que influíram na vida do jovem e de acontecimentos de um Portugal bafiento, injusto e hipócrita.

Isabel Rio Novo numa escrita simples e cuidada cria personagens fortes e perturbadoras e oferece-nos uma viagem maravilhosa sobre memórias, paixões e segredos da qual nunca saímos indiferentes porque, na história dos outros, encontramos, por vezes, a nossa, como referiu o doutor Eduardo a certa altura da investigação.

Recomendo muito.


12 agosto, 2025

𝑺𝒆𝒋𝒂 𝒇𝒆𝒊𝒕𝒂 𝒂 𝒕𝒖𝒂 𝒗𝒐𝒏𝒕𝒂𝒅𝒆, de Paulo M. Morais



Autor: Paulo M. Morais
Título: Seja feita a tua vontade
N.º de páginas: 128
Editora: Casa das Letras
Edição: Junho 2017
Classificação: romance
N.º de Registo: (3721)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


Seja feita a tua vontade, de Paulo M. Morais, é um romance comovente que aborda a morte como escolha consciente e a despedida como reencontro. Através da relação entre um avô e o seu neto, o autor constrói uma narrativa íntima, onde se cruzam memórias, silêncios e afectos.

O enredo centra-se na figura do avô, médico octogenário, que, cansado de lutar contra os “bichos imaginários” que lhe devoram o corpo, decide pôr fim à sua vida de forma metódica e consciente. Esta decisão, comunicada à família, desencadeia uma série de dilemas éticos e emocionais, especialmente para o neto, que assume o papel de cuidador e confidente.
“Passamos tardes inteiras a falar de intimidades. No recato do teu quarto, exponho-me e exponho-te. Damos as mãos. Faço-te festas no rosto. Para passarmos o tempo que falta (ou será recuperarmos o tempo perdido?), partilhamos histórias nestes dias em que a morte ronda.” (p. 43)

O livro confronta-nos com questões delicadas como a eutanásia, o envelhecimento, o direito à morte digna e a desumanização da morte hospitalar. A decisão do avô é apresentada como um acto de lucidez e de dignidade, desafiando convenções sociais e familiares.
Nesse período de tempo (dezanove dias), avô e neto revisitam memórias e afectos, num processo de despedida íntimo. Porém, a narrativa ganha uma reviravolta quando, inesperadamente, o avô informa que pretende continuar a viver, abalando a serenidade conquistada e reabrindo feridas emocionais.

Paulo M. Morais constrói personagens densas e realistas, explorando a complexidade das relações inter-geracionais. O avô, inicialmente rígido, revela-se vulnerável e humano, enquanto o neto, jornalista e pai de uma menina, emerge como uma figura de escuta e ternura.
Questiono-me se não haverá, neste romance, um carácter auto-biográfico?

A escrita é contida, mas carregada de emoção. A economia de palavras releva o impacto dos momentos de ternura e de dor, conferindo maior autenticidade à narrativa. E a escrita diarística, na segunda pessoa, reforça o tom confessional e aproxima o leitor das personagens.

A citação de Morreste-me, de José Luís Peixoto no livro não é apenas uma referência literária — é uma ponte emocional entre duas obras que exploram o luto com uma tremenda delicadeza.

Os dois livros partem da dor da perda para construir uma narrativa íntima e reflexiva. A diferença, é que em Morreste-me, José Luís Peixoto escreve com uma linguagem poética e fragmentada, como se cada frase fosse um eco da ausência do pai. A dor é crua, mas contida, e o texto transforma-se num espaço de memória onde o filho tenta manter vivo o que já não está. Já em Seja feita a tua vontade, Paulo M. Morais aborda a morte antecipada — não como perda súbita, mas como escolha consciente. O avô decide serenamente morrer e o neto acompanha esse processo, criando uma despedida que é também uma reconstrução de afectos.

Seja feita a tua vontade é um livro que nos toca profundamente. Mais do que uma história sobre o fim, é um convite à escuta, à ternura e à coragem de estar presente quando o tempo finda.


10 agosto, 2025

𝑨 Ú𝒍𝒕𝒊𝒎𝒂 𝑨𝒖𝒓𝒐𝒓𝒂, de Simão Resendes Cabral



Autor: Simão Resendes Cabral
Título: A Última Aurora
N.º de páginas: 51
Editora: Editorial Novembro
Edição: Dezembro 2024
Classificação: Poesia
N.º de Registo: (3678)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐



Simão Resendes Cabral publica o seu primeiro livro de poesia. São doze os poemas que constituem A Última Aurora. Tratando-se de uma primeira obra, o autor revela já uma notável sensibilidade poética.
Estamos perante uma escrita muito visual, luminosa e sensorial com a qual o sujeito poético se propõe transpor “os portais do devaneio decisivo”; escrita de contemplação que pelo viés de metáforas e de antíteses constrói um universo de demanda e de contemplação onde o “eu”, o “nós”, envolto em silêncios, descobre novos caminhos, novas auroras, novas sensações e se permite sonhar.

“ Sonho
Transporto comigo a fórmula
Para um estado de perpétua contemplação
Com audácia, harmonizo-me continuamente
E tudo reluz como mil sonhos unidos num só brilho
Tudo repleto de vida e significado
Enche de luz a minha alma
Até ao alvorecer do meu ideal”

Que o sonho se materialize em palavras. Que este livro seja o primeiro de muitos.


04 agosto, 2025

𝑨 𝑷𝒆𝒅𝒊𝒂𝒕𝒓𝒂, de Andréa Del Fuego

 


Título: A Pediatra
N.º de páginas: 203
Editora: Companhia das Letras
Edição (3.ª): Abril 2025
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3716)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐





A Pediatra é um romance que se destaca pela abordagem provocadora e intensa que desafia o convencional sobre a maternidade e o papel da mulher na medicina e no casamento.

Ao construir uma protagonista segura e desconcertante que rejeita os papéis tradicionais atribuídos às mulheres, sobretudo o da maternidade, a autora tece uma crítica às estruturas sociais que ditam os padrões aceitáveis de uma sociedade ainda patriarcal.

Cecília, sem problemas financeiros e habituada a um conforto aburguesado, acaba com um casamento sem afecto, vive uma sexualidade plena e evita compromissos emocionais; como pediatra neonatalogista mantém um consultório com sucesso, faz parcerias com uma colega obstetra no hospital, apesar de afirmar que “detesta crianças”.

Cecília revela-se competente e pragmática, mas afasta qualquer vínculo afectivo sendo julgada, pelos seus pares, como uma pessoa fria e cínica. “O afeto é uma doença contagiosa. Prefiro manter distância.”
O romance centra-se em duas visões da prática médica: a de Cecília, racional e distante, e a de um novo pediatra adepto de práticas alternativas e acolhedoras.
A chegada deste causa-lhe alguma instabilidade profissional, na medida em que perde pacientes, mas não altera em nada a sua postura e as suas convicções.

Na minha opinião, Cecília usa a rejeição à maternidade como uma armadura. Ela constrói uma vida onde a racionalidade e o auto-domínio são os seus pontos fortes. A frieza com que trata os pacientes, mães e crianças, e a distância emocional que mantém com os seus próximos, parecem esconder algo mais vulnerável. Isto fica claro quando ela se envolve com Bruninho, o filho do amante. A sua relação com a criança escapa ao seu controle e surge uma empatia inesperada, mas não resolvida. Ela não sabe reagir com os sentimentos que a invadem e que escapam à sua lógica fria e insensível. Pelo que a sua aversão é uma defesa, mas não uma essência.

Cecília, provavelmente, não odeia as crianças — talvez ela odeie os papéis que lhe são impostos como mulher. A maternidade é encarada por Cecília como uma vontade pessoal, sem imposição. Nem toda a mulher quer ser mãe.

A narrativa feita na primeira pessoa, com um ritmo acelerado e cínico, pretende, da mesma forma, afastar o leitor emocionalmente, o que reforça a ideia de que há algo reprimido. Ao longo do romance, vamos detectando camadas complexas que causam algum desconforto:
Cecília é uma mulher, médica, bem-sucedida, mas sem qualquer traço de empatia ou de afecto; ela desmonta o arquétipo da mulher cuidadora, recusando o papel de mãe, de esposa, de profissional; ela promove uma sexualidade livre, crua e sem culpa, o que contraria a moral tradicional e a sua atitude final é completamente desconcertante.

Será que é Cecília que está errada ou é a sociedade com as suas imposições?
Convido-vos a descobrir esta personagem tão segura quanto frágil, tão detestável quanto sedutora.



03 agosto, 2025

Exposição | Figure Out (Personagens de Literatura) - Capítulo II | Ana Baleia

Exposição de esculturas têxteis criadas por Ana Baleia  a partir de personagens literárias de livros conhecidos. Encontra-se patente no Centro de Artes de Sines até 24 de Agosto. 
Iniciativa paralela da 25.ª edição do FMM 



          


           



               


               


30 julho, 2025

Balumuka !

BALUMUKA ! Narrativa poética da liberação --- ou ainda Rebelião Poética Kaluanda

Curadoria de Kiluanji Kia Henda e André Cunha
Exposição conjunta patente no Centro de Artes de Sines até 15 de Outubro
Iniciativa paralela da 25.ª edição do FMM




        


       

      

     

29 julho, 2025

𝑱𝒆𝒔𝒖𝒔 𝑪𝒓𝒊𝒔𝒕𝒐 𝑩𝒆𝒃𝒊𝒂 𝑪𝒆𝒓𝒗𝒆𝒋𝒂,de Afonso Cruz



N.º de páginas: 248
Editora: Alfaguara
Edição (3.ª): Janeiro 2013
Classificação: Romance
N.º de Registo: (2765)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐




Afonso Cruz, em O vício dos livros (p. 81), refere que "Os livros são seres pacientes. Imóveis nas suas prateleiras, com uma espantosa resignação, podem esperar décadas ou séculos por um leitor." Ora, este Jesus Cristo bebia cerveja soube esperar resignadamente (12 anos) até que nos encontrássemos. Foi o primeiro livro que comprei do autor, em 2013, no FMM, com direito a conversa e autógrafo. Depois, li muitos, mas mesmo muitos do autor e este foi ficando para trás…

Jesus Cristo bebia cerveja apresenta-nos uma narrativa insólita e divertida povoada de personagens originais e marcantes num Alentejo rural. Toda a ação se configura em torno de Rosa que cuida da sua avó doente, que gosta de ler westerns e policiais, apesar dos poucos estudos, e que tem o bizarro costume de chupar pedras.

Ao longo da narrativa surgem indícios que inquietam o leitor e que anunciam uma possível tragédia: "- O amor não se compra. - Mas paga-se caro."; “Eu não jogo aos dados. Deus é que joga.” (alusão directa ao livro de Ian Stewart ou, então, a Albert Einstein «Deus não joga aos dados»)

Jesus Cristo bebia cerveja é um livro criativo, caricato e controverso que, subtilmente, nos afasta de certezas triviais, de preconceitos e nos oferece, pelo viés da ironia pincelada de humor negro e de uma escrita poética (“ a tarde boceja pelas ruas”), outras perspectivas de vida e nos encaminha para uma reflexão sobre a maneira como encaramos o amor, a família, a religião e como percebemos a morte.

Claro que recomendo a leitura deste e de todos os livros do Afonso Cruz. E para reforçar a minha recomendação, fica a dica do autor:
"Lembra-te de que quando Deus fecha uma porta abre-nos um livro." (p. 76)




26 julho, 2025

𝐏𝐚𝐥𝐨𝐦𝐚𝐫, de Italo Calvino




Autor: Italo Calvino
Título: Palomar
Tradutor: João Reis
N.º de páginas: 130
Editora: Planeta D'Agostini
Edição: 2001
Classificação: Contos 
N.º de Registo: (1223)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


Palomar está dividido em três partes "As Férias de Palomar", "Palomar na Cidade" e "Os Silêncios de Palomar". Cada parte está subdividida em três capítulos que por sua vez apresentam 3 contos cada, reunindo, assim, 27 pequenos contos independentes que apenas têm em comum a personagem - o senhor Palomar.

Em todos os textos, o autor explora a relação entre o indivíduo e a natureza através da observação minuciosa e das reflexões do senhor Palomar.
Calvino aborda temas existenciais a partir de situações do dia-a-dia, com recurso à ironia transforma banalidades em momentos de profunda contemplação. Palomar, pela sua capacidade original de olhar para as coisas (uma onda, uma folha, um planeta, um seio, um insecto…), descobre significados pouco comuns, divaga sobre aspectos que o preocupam e tece reflexões sobre a vida, sobre as relações humanas e que acabam por conquistar o leitor.

“ O senhor Palomar decidiu que a sua principal actividade será sempre observar as coisas do lado de fora. (…) põe-se a observá-las quase sem dar por isso e o seu olhar começa a percorrer todos os detalhes e não consegue mais afastar-se delas. O senhor Palomar (…) redobrará as suas atenções: em primeiro lugar, para não deixar fugir os apelos que lhe chegam das coisas; em segundo lugar, para atribuir à operação de observar a importância que ela merece.” (p. 117)

Palomar exige do leitor uma efectiva atenção, não nos iludamos pelos textos curtos. Para captarmos a verdadeira essência da sua escrita, é importante entrar em estado de contemplação, como se fôssemos a personagem principal e usássemos um telescópio (para olhar as estrelas, por exemplo) ou uma lupa. É, igualmente, importante apreender o sentido do texto, retirar de cada observação o verdadeiro (auto) conhecimento, saber equilibrar racionalidade e sensibilidade. Isto só será possível se realizarmos uma leitura lenta e cuidada, se desfrutarmos das descrições detalhadas, se soubermos descortinar a ironia, as metáforas, os paradoxos, se estabelecermos comparações com o nosso mundo, se reflectirmos sobre as coisas observadas.
“Mas como se faz para observar alguma coisa deixando de lado o eu? De quem são os olhos que olham? (…) Para se olhar a si próprio o mundo tem necessidade dos olhos (e dos óculos) do senhor Palomar” (p. 118)
É um pequeno livro muito interessante. Que nos faz reflectir a sorrir.