Neste espaço pretende-se divulgar actividades culturais/educativas/lúdicas ou simplesmente participar, partilhar opiniões, leituras, viajar...
30 novembro, 2025
28 novembro, 2025
𝑫𝒆𝒖𝒔 𝒏𝒂 𝑬𝒔𝒄𝒖𝒓𝒊𝒅ã𝒐, de Valter Hugo Mãe
Autor: Valter Hugo Mãe
Título: Deus na Escuridão
N.º de páginas: 283
Editora: Porto Editora
Edição: Janeiro 2024
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3666)
OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐
Em Deus na Escuridão, Valter Hugo Mãe oferece-nos um romance que é ao mesmo tempo oração e manifesto. Narrada por Paulinho, a história decorre na ilha da Madeira, mais concretamente em Campanário, num cenário rural de encostas íngremes e abismos.
O enredo centra-se nos dois irmãos, Paulinho e Serafim, que vivem com os pais, Mariinha e Julinho dos Pardieiros. Receberam as alcunhas de Felicíssimo e Pouquinho, respectivamente: Felicíssimo pela alegria imensa que acompanhou o nascimento do irmão; Pouquinho porque “nasceu sem as origens. Era inteirinho um menino, mas vinha mordido entre as pernas como se algum predador o tivesse buscado na barriga de nossa mãe” (p. 29). É a partir desta diferença que o romance mergulha na vulnerabilidade humana, mostrando que amar é a força que move o mundo, mas também uma aposta feita sem garantias, na escuridão.
A diferença de Pouquinho não é apresentada como limitação, mas como possibilidade de outro olhar sobre o mundo. A sua vulnerabilidade revela a dignidade de existir fora da norma, tornando-se metáfora da condição humana: todos somos frágeis.
É neste espaço de fragilidade que surge a fé. Não uma fé dogmática, mas quotidiana, feita de gestos de amor e persistência. A fé é a aposta na escuridão — acreditar sem garantias, permanecer mesmo quando não há certezas. Assim, o romance aproxima Deus das mães: “Deus é exactamente como as mães. Liberta Seus filhos e haverá de buscá-los eternamente. Passará todo o tempo de coração pequeno à espera, espiando todos os sinais que Lhe anunciem a presença, o regresso dos filhos.” (p. 147). Deus aproxima-se também dos irmãos, mostrando que a fé é inseparável da lealdade e da ternura.
O livro insiste na ideia de que a felicidade tem um custo inevitável, e que esse custo é a própria condição de existir. A relação entre os irmãos é espelho de um amor maior, divino. Eles amam e protegem como uma mãe, esperam, cuidam e amam sem certezas. A escuridão, longe de ser ausência de luz, é espaço de vigilância, de amor incondicional, de fé, de resistência e de lealdade. “Deus está na escuridão, e tacteia por toda a parte na vontade intensa de um toque, do aconchego do corpo dos filhos, um gentil toque ou um abraço.” (p. 147). Felicíssimo entende o mundo com sabedoria infantil, através do coração, com ternura e simplicidade. É essa simplicidade que ilumina a escuridão.
A escrita de Valter Hugo Mãe mantém o lirismo que lhe é característico. Numa prosa delicada e profunda, exacerba o quotidiano e sublima os laços afectivos, a existência. Usa frases curtas, densas, quase aforísticas, que convidam à meditação. O ritmo lento e contemplativo transforma a leitura numa experiência estética, em que cada imagem simbólica — a ilha, o silêncio, os flamingos — abre portas para reflectir sobre a fragilidade, a gratidão e a persistência do amor.
Mas a força do romance não reside apenas na sua dimensão espiritual e poética. Valter Hugo Mãe incorpora o linguajar próprio da Madeira, com cadências e expressões insulares que dão corpo à oralidade local: “a bilhardice das pessoas”; “Era muito estranha, um trogalho”; “fabricar nos poios”; “barulhar”; “buzico”, por exemplo. Essa escolha estilística transforma a ilha em personagem viva, tornando a oralidade parte da atmosfera do livro.
A insularidade é também condição existencial. O isolamento da Madeira, com as suas encostas íngremes e poios laboriosos, traduz as dificuldades quotidianas dos ilhéus. A vida insular é feita de esforço, de vigilância comunitária e de resistência, e essa dureza atravessa o romance como figura da própria vulnerabilidade humana. Amar, aqui, é também persistir contra o isolamento e contra a escassez, transformando a ilha em espaço de fé e de lealdade.
Deus na Escuridão é um romance poderoso. Valter Hugo Mãe mostra que até na escuridão há uma luz que se inventa. É um livro que nos lembra que amar é sempre arriscar — e que a fragilidade pode ser, afinal, a forma mais radical de resistência.
E como afirmou o professor Carlos Reis no seu prefácio “É uma comovente, singular e ousada história de amor. Ou de amores, em vários registos”,
Esta obra é o quarto título da tetralogia Irmãos, Ilhas e Ausências.
21 novembro, 2025
𝑨 𝑴𝒂𝒏𝒕𝒂, de Isabel Minhós Martins e Yara Kono
Pequeno livro maravilhoso que nos transporta para histórias da nossa infância.
Cada retalho de tecido guarda uma surpresa. Pode ser lembrança, pode ser brincadeira, pode até transformar-se em roupa nova para uma boneca. Quem sabe quantas histórias ainda estão escondidas nas gavetas, à espera de serem descobertas?
Retalhos travessos
Este texto nasceu inspirado no livro A manta – uma história aos quadradinhos (de tecido), escrito por Isabel Minhós Martins e ilustrado por Yara Kono. Tal como nessa história, também aqui um retalho de tecido guarda memórias, brincadeiras e segredos. Entre linhas e costuras, o tecido transforma-se em personagem e testemunha de aventuras, trazendo à superfície lembranças da infância e da imaginação.
Quando eu era pequena, adorava brincar na rua com os meus amigos. Corríamos, ríamos e inventávamos jogos sem fim. Mas este retalho de tecido não vinha da rua.
A minha irmã era a costureira da família. Fazia vestidos para mim, mas eu detestava prová-los. Ficava de pé, muito direita, enquanto ela espetava alfinetes para ajustar. “Ai, que já me picaste!”, gritava eu, e ela respondia: “Não te mexas, senão nunca mais acabo!”
Na casa havia metros e metros de tecidos lindíssimos. Pareciam rios coloridos a escorrer das prateleiras. Eu olhava para eles e pensava: “Se eu fosse costureira, faria roupas para a minha boneca, que só tem uma muda de roupa, coitadinha.”
Um dia, não resisti. Peguei na tesoura como quem pega num segredo e cortei um pedaço de tecido. “Vai ser uma saia plissada, igual às da moda!”, pensei. Às escondidas, cosi e cosi, com muito cuidado. Quando terminei, fiquei orgulhosa: a minha boneca parecia uma verdadeira princesa!
Mas… a minha irmã descobriu. Olhou para o tecido cortado e disse: “Quem fez isto?” Eu tentei esconder-me atrás da boneca, mas não resultou. Levei um grande raspanete e fiquei uma semana sem brincar na rua.
Mesmo assim, quando olhava para a boneca de saia nova, eu sorria. Porque às vezes, uma travessura também pode ser uma aventura.
GR
20 novembro, 2025
𝑨 𝒄𝒐𝒓 𝒑ú𝒓𝒑𝒖𝒓𝒂, de Alice Walker
Autora: Alice Walker
Título: A cor púrpura
Tradutora: Tânia Ganho
N.º de páginas: 340
N.º de páginas: 340
Editora: Suma de Letras
Edição: Outubro 2018
Classificação: Romance epistolar
N.º de Registo: (3318)
OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐
A Cor Púrpura, romance epistolar de Alice Walker, dá voz a Celie, uma rapariga “negra de uma família pobre do sul rural dos Estados Unidos”, órfã de mãe. Escreve cartas a Deus. Escreve como fala. Como sabe. A sua linguagem é pobre, ingénua, crua. Reflecte miséria, escravidão, crueldade, indiferença. O marido fecha-lhe o mundo. “Olha pra ti. Tu é preta, pobre, feia, tu é mulher. Possa, tu não é nada!” (p. 246)
A partir de certo ponto, entram as cartas de Nettie. A irmã mais nova que fugiu de casa. O leitor divide-se: crueldade nos Estados Unidos, missão em África. Duas vozes, dois mundos. Feminismo, liberdade, violência, racismo, colonialismo — tudo pulsa no contraste.
Celie aceita o que lhe coube: solidão, traição, violência. Mas nas cartas há uma fissura — um desejo de liberdade. Quando conhece Shug Avery, essa fissura abre-se em horizonte. O livro cresce com ela. A menina de 14 anos, submissa e violentada, transforma-se. No fim, é uma mulher independente. Admirável. E não está só: Sofia e outras mulheres, a sororidade que resiste.
Na tradução para português, Tânia Ganho arriscou ao manter erros, marcas de oralidade, abreviaturas. Na nota introdutória, confessa o desafio: “O romance oscila, assim, entre dois níveis de linguagem muito diferentes, um pautado pelas marcas de oralidade da comunidade negra rural e pelos erros de quem teve pouca instrução primária, e o outro regido pelas normas rígidas da língua que é, neste contexto, assumidamente a língua do colonizador.”
Publicado em 1982, A Cor Púrpura valeu a Alice Walker o Prémio Pulitzer de Ficção (1983) e inspirou adaptações para cinema e teatro musical, confirmando a sua relevância cultural.
A Cor Púrpura é resiliência. É esperança. Escrita simples. Violência profunda. Camadas que nos obrigam a reflectir sobre os Direitos Humanos. Hoje, mais do que nunca, continua a ser necessário. Um livro que nos convoca a escutar vozes silenciadas. E a reconhecer a força transformadora da narrativa.
19 novembro, 2025
Carla Pais vence prémio LeYa 2025
A vencedora do Prémio LeYa 2025 é Carla Pais, com a obra A sombra das árvores no inverno.
O presidente do júri, Manuel Alegre, destacou a elegância da escrita, referindo que a autora "traz, ao curso do enredo e ao trajeto íntimo e social das personagens, situações problemáticas e convulsas de candente atualidade na Europa, sobretudo decorrentes da imigração oriunda de África e Próximo Oriente".
Constituíram o júri o escritor Manuel Alegre, José Carlos Seabra Pereira, professor na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Isabel Lucas, jornalista e crítica literária, Lourenço do Rosário, ex-reitor da Universidade Politécnica de Maputo, Ana Paula Tavares, poeta e Prémio Camões deste ano, e Josélia Aguiar, jornalista e historiadora.
Carla Pais para além de alguns contos já premiados, tem dois romances publicados. O primeiro, Mea culpa, obra indigitada para o Prémio Revelação Agustina Bessa-Luís, granjeou um enorme reconhecimento por parte do público e da crítica. O segundo, Um cão deitado à fossa, recebeu o prémio Cidade de Almada 2018 e o Prémio SPA, para o melhor livro de ficção narrativa 2023.
Já li e recomendo os dois romances da autora.
partilho a minha opinião sobre os dois romances:
Prémios Leya
2009 - O Olho de Hertzog, João Paulo Borges Coelho - Moçambique
2010 - Não atribuído
2011 - O Teu Rosto Será o Último, João Ricardo Pedro - Portugal
2012 - Debaixo de Algum Céu, Nuno Camarneiro - Portugal
2013 - Uma Outra Voz, Gabriela Ruivo Trindade - Portugal
2014 - O Meu Irmão, Afonso Reis Cabral - Portugal
2015 - O Coro dos Defuntos, António Tavares - Portugal
2016 - Não atribuído
2017 - Os Loucos da Rua Mazur, João Pinto Coelho - Portugal
2018 - Torto Arado, Itamar Vieira Junior - Brasil
2019 - Não atribuído
2020 - Não atribuído
2021 - As Pessoas Invisíveis, José Carlos Barros - Portugal
2022 - A Arte de Driblar Destinos, Celso José da Costa - Brasil
2023 - Não Há Pássaros Aqui, Victor Vidal - Brasil
2024 - Pés de Barro, Nuno Duarte - Portugal
2025 - A sombra das árvores no inverno, Carla Pais - Portugal
16 novembro, 2025
𝑽𝒊𝒈í𝒍𝒊𝒂𝒔, de Al Berto
Autor: Al Berto
Título: Vigílias (antologia)
Selecção: José agostinho Baptista
N.º de páginas: 207
N.º de páginas: 207
Editora: Assírio & Alvim
Edição: Maio 2004
Classificação: Poesia
N.º de Registo: (1729)
OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐
Vigílias — Al Berto lido por José Agostinho Baptista
Vigílias é uma antologia de poemas de Al Berto, escolhida e apresentada por José Agostinho Baptista, que lhe dedica um prólogo intenso e sensível. Publicada em 2004, na colecção Grãos de Pólen (Assírio & Alvim), procura condensar a força da obra de Al Berto numa selecção que privilegia o gesto poético como vigília — estado de atenção e combustão.
Nesta colecção, cada volume é uma antologia escolhida por outro poeta, criando diálogo entre gerações. Aqui, Baptista lê Al Berto como alguém que “ardia nas chamas da alta combustão do poema”, sugerindo que cada verso é vigília contra o esquecimento.
O título Vigílias evoca permanência: estar acordado diante da vida e da morte, da memória e da paisagem. Dentro de Uma existência de papel, há uma secção intitulada “Vigílias” com seis poemas, todos incluídos na antologia. Foi desse núcleo que Baptista retirou o título, transformando-o em chave simbólica de leitura. O fecho dessa secção condensa a essência da obra:
“então a vida abater-se-á sobre a folha de papel
“então a vida abater-se-á sobre a folha de papel
onde verso a verso
me ilumino e desgasto”
É desta vigília que nasce a antologia: escrita como iluminação e desgaste, combustão que atravessa corpo, território e memória.
Todos os poemas reunidos integram O Medo, a colectânea completa. Ao reunir esta selecção, Baptista oferece ao leitor uma entrada mais acessível na obra de Al Berto. A poesia, densa e fragmentada, não é de leitura imediata; Vigílias funciona como chave de iniciação, abrindo caminho para a combustão integral de O Medo.
No prólogo, Baptista afirma: “Nada, quase nada, há que dizer sobre os poetas. Eles que digam tudo, quase tudo, eles que nos cerquem, que nos toquem.” O prólogo é, assim, uma declaração de afinidade poética, sublinhando a energia vital e inquieta que atravessa os versos.
Na antologia, o corpo surge como pele-papel, lugar de inscrição e de memória. Em livros como Outros Corpos, Sete dos Ofícios, Trabalhos do Olhar e Uma Existência de Papel, o corpo é atravessado por desejo e fragilidade, cada poema funcionando como cicatriz ou tatuagem de fogo. A escrita não é apenas representação, é ferida que se abre e cicatriz que permanece, transformando o corpo em suporte vivo da poesia.
A antologia segue uma ordem cronológica e dá relevo ao território. Sines aparece em mar-de-leva, mas também em poemas que evocam lugares concretos como a “Quinta de Santa Catarina”, a “Rua do Forte”, São Torpes ou Milfontes. O mar, o porto e as ruínas tornam-se páginas vivas, papel marítimo onde o poema se inscreve. Aqui, a vigília é comunitária: o poeta vigia a cidade, e a cidade vigia o poeta.
Em O Livro dos Regressos, a pele guarda o passado como chama que ainda arde. Infância, lugares perdidos e pertença inscrevem-se como memória viva. O regresso é inscrição na pele do tempo, papel onde o passado se grava e se prolonga.
Mas Vigílias é também melancolia: a vida que se abate sobre a folha de papel, o corpo que se ilumina e se desgasta, a cidade que se inscreve em ruína e saudade. A antologia abre caminho ao leitor, mas mantém essa sombra, como vigília silenciosa que acompanha cada poema.
Já escrevi sobre vários livros de Al Berto e o título que dei a um trabalho mais longo — Al Berto in lugares: o deambular da melancolia lunar do corpo — nasce de dentro da própria obra e também da antologia. Tal como Baptista escolheu Vigílias como chave de leitura, também eu inscrevi a minha leitura crítica num verso que condensa corpo, território e melancolia. A crítica torna-se continuação da poesia: vigília, errância, melancolia e combustão.
Em suma, para quem não conhece a obra de Al Berto, Vigílias é uma porta de entrada: oferece uma selecção que privilegia intensidade e ressonância, convocando o leitor para estar atento à vigília silenciosa dos poemas.
14 novembro, 2025
𝑨𝒖𝒈𝒖𝒔𝒕𝒂, de Rodrigo Vieira Dias
Autor: Rodrigo Vieira Dias
Título: Augusta
N.º de páginas: 167
Editora: Amazon
Edição: 2023
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3753)
OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐
Em Augusta, Rodrigo Vieira Dias expõe a fragilidade da adolescência e o peso da memória familiar através de uma escrita fragmentada e alternada, que recusa linearidade e obriga o leitor a uma escuta atenta. A fragmentação é sustentada pela alternância entre duas vozes principais. De um lado, a narradora, na terceira pessoa, que descreve Augusta e o mundo exterior, apresentando figuras como a avó, verdadeiro pilar da sua vida, presença que lhe dá alguma estabilidade num universo marcado pela ausência e desinteresse dos pais. De outro, a leoa, na primeira pessoa, voz visceral que irrompe como consciência subterrânea e instinto vital.
“- Posso ficar um bocadinho aqui contigo, Vô Chiquinha?
(…)
- Claro, meu bem – respondeu Francisca
A moça atravessou o quarto e sentou-se no chão aos pés da avó. Francisca buscou-lhe a mão e envolveu-a nas suas, um pequeno pássaro envolto por dois ramos de um velho carvalho. (…) Francisca não precisava de palavras, conhecia-lhe os jeitos e os silêncios. Aguardaria o tempo que fosse necessário.” (p. 31)
É na voz da leoa que surgem a força da natureza e os fantasmas, presenças espectrais que convivem com ela e representam fragmentos da psique de Augusta. Esses fantasmas não são mediadores da narradora, mas companheiros da leoa, dramatizando a luta interior; forças que arrastam Augusta para o abismo, que a mantêm “presa num mundo sem esperança”, em contraste com o rugido que afirma a sobrevivência.
O episódio em que Augusta descobre o corpo nu de um jovem suicidado (João) é um marco simbólico: a morte surge como espelho e ameaça, insinuando-se como possibilidade de fuga ao desassossego. Mas é precisamente aí que a leoa revela a sua força. Ao conviver com os fantasmas, ela impede a protagonista de se dissolver, transformando o vazio em metamorfose, “numa outra margem”.
A escrita fragmentada e a estrutura alternada ritualizam esta tensão entre exterioridade e interioridade. A narradora dá corpo às pessoas e ao mundo, enquanto a leoa devolve ao leitor o rugido íntimo que resiste ao apagamento.
A capa do livro reforça esta leitura: a centralidade da rapariga isolada e de costas em oposição ao desenho invertido da leoa e da árvore espelha a inversão narrativa entre exterior e interior, entre memória e instinto. A árvore invertida remete para raízes deslocadas — a avó como sustentação, os pais como ausência — enquanto a leoa invertida simboliza o desassossego e a força subterrânea que desafia a ordem.
Assim, Augusta não é apenas um romance de iniciação ou perda, é também um romance de esperança em “que o amor vence sempre”. É um texto maravilhoso que convoca o leitor a escutar o rugido íntimo que impede a extinção, revelando que a busca interior é também uma luta feroz onde duas vozes — narradora e leoa — se alternam para encenar a luta entre fragilidade e potência, entre fantasmas e sobrevivência com a capa a funcionar como síntese visual dessa tensão.
12 novembro, 2025
Booker Prize 2025
O júri atribui, por unanimidade, o galardão do Prémio Booker, deste ano, ao escritor anglo-húngaro David Szalay com a obra Flesh.
“Nunca tínhamos lido nada parecido. É, em muitos aspetos, um livro sombrio, mas é um prazer lê-lo”, afirmou o escritor irlandês Roddy Doyle, o primeiro vencedor do Booker a presidir a um painel do júri, depois de ter explicado que todos os membros leram três vezes cada um dos seis finalistas e que sentiram que este “merecia ganhar pela sua singularidade”.
Flesh ainda não está editado em Portugal, mas do autor estão publicados Tudo o que um homem é (2018) e Turbulência (2019), ambos pela editora Elsinore.
11 novembro, 2025
10 novembro, 2025
Vigília em desassossego
A partir de dois versos de Al Berto escrever um texto
ah meu amigo
demoraste tanto a voltar dessa viagem
in Uma existência de papel - Poema 5 "Eremitério"
Premissas:
- iniciar o texto com os dois versos indicados;
- usar, no corpo do texto, as seguintes palavras: luz, alga(s), mulheres, nocturno, obsessão, mar.
_____________
Como já tinha escrito uma carta com este início, também para um exercício de escrita criativa, retomei o texto e, em ressonância com a obra Vigílias nasce este novo texto que prolonga a vigília em desassossego.
demoraste tanto a voltar dessa viagem...
Como te esperei — ansioso, desolado.
Deambulando pelas ruas, procurava-te no rosto fechado das mulheres sentadas à soleira das portas, espiando o crepúsculo da vida.
Nada. Absolutamente nada.
Sentado na areia, desejava que as algas te arrastassem até mim.
Na mesma posição, ocupado em memórias fugazes, apenas perturbado pelo silêncio sibilante das ondas, vivi dias lentíssimos… sem ti.
A saudade, feroz, atormentava-me o coração e ofuscava a luz radiante do sol que se espelhava no mar — único confidente do meu desassossego.
A espera tornou-se obsessão, a inquietude dos dias invadiu-me e tornei-me, como tu, um rosto louco, nocturno, em continuada vigília.
Agora que regressaste, afasto a melancolia e recupero o ensejo de preencher a folha de papel que há muito aguardava a tinta capaz de lhe dar sentido.
“ESCREVO-TE A SENTIR tudo isto
e num instante de maior lucidez ”
Promete que não voltas a partir...
Preciso de ti — aqui, continuamente.
Só contigo saberei justificar esta existência de papel.
GR
09 novembro, 2025
𝑶 𝑴𝒊𝒕𝒐 𝒅𝒆 𝑺í𝒔𝒊𝒇𝒐, de Albert Camus
Autor: Albert Camus
Título: O Mito de Sísifo
Tradutor: urbano Tavares Rodrigues
Tradutor: urbano Tavares Rodrigues
N.º de páginas: 129
Editora: Livros do Brasil
Edição: Setembro 2016
Classificação: Ensaio
N.º de Registo: (3547)
OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐
Imaginar Sísifo feliz - uma leitura de Camus
Entre o absurdo e a revolta, uma filosofia que se torna experiência de vida.
“Só há um problema filosófico verdadeiramente sério: é o suicídio.” Com esta frase inaugural, escrita em 1942, Albert Camus abre uma fenda no silêncio da existência. O Mito de Sísifo não é apenas um marco do existencialismo, é o mapa de um território onde o homem se descobre absurdo, suspenso entre o desejo de sentido e o vazio que o recusa.
A obra, dividida em quatro partes e um apêndice, desenha um percurso: do raciocínio ao homem, da criação ao mito, até à esperança que se insinua na obra de Kafka. Cada etapa é uma aproximação ao coração do absurdo, esse lugar onde “Viver é fazer viver o absurdo. Fazê-lo viver é, antes de mais, olhá-lo.” (p.54). Camus retira três frutos dessa contemplação: a revolta, a liberdade e a paixão. E para lhes dar corpo, convoca figuras que vivem em confronto com o absurdo — Dom Juan, Kirilov, Sísifo.
É em Sísifo que a metáfora se cristaliza. O operário que repete o gesto quotidiano, o homem que empurra a pedra sem fim, torna-se espelho de nós. “Esse destino não é menos absurdo. Mas só é trágico nos raros momentos em que ele se torna consciente.” (p.112). Camus devolve-lhe dignidade: não como vítima, mas como símbolo de coragem. “A própria luta para atingir os píncaros basta para encher um coração do homem. É preciso imaginar Sísifo feliz.” (p.114). A aceitação do fardo transforma-se em liberdade; o peso da pedra converte-se em fidelidade à vida.
Nem sempre o caminho é linear — a filosofia exige paciência, escuta, demora. Mas há uma beleza inesperada na revolta que Camus propõe: viver e criar, não apesar do absurdo, mas através dele. A revolta é gesto de liberdade, é invenção, é resistência contra o vazio.
Mesmo fora da disciplina filosófica, este ensaio abre-se como uma janela. Torna o absurdo compreensível, quase luminoso, e oferece ao leitor comum a possibilidade de se reconhecer na luta de Sísifo.
31 outubro, 2025
30 outubro, 2025
𝑵ã𝒐 𝒇𝒐𝒔𝒔𝒆𝒎 𝒂𝒔 𝒔í𝒍𝒂𝒃𝒂𝒔 𝒅𝒐 𝒔á𝒃𝒂𝒅𝒐, de Mariana Salomão Carrara
Autora: Mariana Salomão Carrara
Título: Não fossem as sílabas do sábado
N.º de páginas: 171
Editora: Companhia das Letras
Edição (2.ª): Janeiro 2025
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3746)
OPINIÃO ⭐⭐⭐
Há livros que se aproximam com delicadeza, sem exigir entusiasmo imediato. Não fossem as sílabas do sábado, de Mariana Salomão Carrara, é um desses gestos literários que se oferecem mais como escuta do que como deslumbramento. A narrativa, marcada pelo luto e pela maternidade em estado de suspensão, convoca o silêncio como matéria poética — mas fá-lo com contenção, e por vezes com uma opacidade que mantém o leitor em observação mais do que em envolvimento.
A protagonista, Ana, vive aprisionada numa meia hora que dura nove anos (p. 11). A tragédia que a atravessa não é apenas um acontecimento, é uma distorção do tempo, uma ferida que se prolonga em cada gesto quotidiano. A filha, nascida órfã, torna-se o centro de uma maternidade vivida entre o cuidado e a apatia. A maternidade, aqui, é sobretudo resistência, mas também cansaço.
Outro eixo que merece atenção é a amizade entre Ana e Madalena — uma relação marcada por uma certa anormalidade, ou talvez por uma necessidade extrema de companhia. Madalena surge como figura de apoio, mas também como espelho de um desamparo que não se resolve. Há momentos em que a presença de Madalena parece quase invasiva, como se ocupasse espaços que Ana não consegue delimitar. A amizade entre ambas não se constrói sobre afinidade, mas sobre ausência e solidão — e isso torna o vínculo inquietante. No entanto, essa convivência, inicialmente estranha, acaba por se impor. No final, percebemos que Ana e Madalena partilharam doze anos de vida — uma amizade que resiste, mesmo sem ternura evidente, como gesto de sobrevivência mútua.
A escrita de Carrara é lapidada com precisão. É delicada. Há frases que brilham como sílabas soltas no escuro, “A barriga imensa que eu temia que estivesse absorvendo toda aquela tristeza e minha filha nasceria feito um saco de melancolia, o que eu acho que talvez tenha de fato acontecido porque a Catarina tem os olhos cheios de tragédia.” (p. 44). No entanto, a fragmentação inerente ao fluxo das memórias desordenadas pode dificultar a imersão.
A leitura convida à escuta silenciosa, mais do que à entrega emocional. Há beleza, mas também distância.
Em diálogo com obras como O ano do pensamento mágico, de Joan Didion, percebe-se que Carrara opta por aceitar o desamparo sem querer decifrá-lo, enquanto Didion tenta compreendê-lo com precisão racional. Se Didion escreve para controlar o incontrolável, Carrara escreve para permanecer suspensa no tempo, no desamparo.
Esta apreciação nasce de uma leitura contida, mas significativa. Um gesto que reconhece o valor da contenção, da linguagem como abrigo, e da escuta como forma de estar com o texto. Não fossem as sílabas do sábado é um livro que se aproxima devagar, exige respeito e atenção.
22 outubro, 2025
𝑼𝒎 𝑫𝒊𝒂 𝒏𝒂 𝑽𝒊𝒅𝒂 𝒅𝒆 𝑨𝒃𝒆𝒅 𝑺𝒂𝒍𝒂𝒎𝒂, de Nathan Thrall
Autor: Nathan Thrall
Título: Um Dia na Vida de Abed Salama
Tradutora; Sara Veiga
Tradutora; Sara Veiga
N.º de páginas: 205
Editora: Livros Zigurate
Edição: Outubro 2023
Classificação: Testemunho
N.º de Registo: (3553)
OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐
Um Dia na Vida de Abed Salama é mais do que uma reportagem sobre um trágico acidente envolvendo crianças em visita de estudo a um parque temático, nos arredores de Jerusalém. É, sobretudo, um testemunho pungente do conflito israelo-palestiniano e da vida quotidiana sob ocupação.
Milad Salama, filho de Abed Salama, é uma das crianças envolvidas no acidente de viação — ponto de partida para uma narrativa que se desdobra em múltiplas camadas de dor, resistência e denúncia.
Nathan Thrall, jornalista americano radicado em Israel, entrelaça com mestria o relato do acidente com a crónica da segregação imposta ao povo palestiniano. Ao longo do livro, revela-se o labirinto de constrangimentos que molda o dia-a-dia: cartões de identidade verdes ou azuis que restringem a circulação, muros que se erguem como fronteiras físicas e simbólicas, a “auto-estrada do apartheid” que separa, e os postos de controlo que atrasam — ou impedem — a assistência em momentos de urgência. O acidente, que vitimou oito crianças, expõe com brutal clareza como a pertença palestiniana condiciona até o socorro. Arruinou vidas. Deixou marcas em todos.
“O acidente destruíra todas as famílias, cada uma à sua maneira.” (p. 194)
A falta de assistência imediata às crianças palestinianas não é apenas uma consequência logística — é um reflexo brutal da estrutura de segregação que atravessa o território. O tempo de resposta foi dilacerado por barreiras físicas e burocráticas: ambulâncias impedidas de circular livremente, pais retidos em postos de controlo, hospitais inacessíveis por estarem do “lado errado” do muro. Cada minuto perdido foi uma consequência directa da geografia da exclusão. O livro revela como, num momento em que a urgência deveria unir, a ocupação separa — e como a infância palestiniana é atravessada por essa violência estrutural desde o primeiro suspiro.
Com este livro, Thrall conquistou o Prémio Pulitzer de Não Ficção (2024). A sua experiência jornalística, aliada a uma escrita literária precisa e comovente, oferece-nos a visão de um mundo colapsado, onde a tragédia, a opressão e a segregação são ingredientes quotidianos. Num tempo em que o ódio, a desumanização e a xenofobia crescem, este livro convoca-nos à escuta, à análise das causas e à urgência de estar informado.
13 outubro, 2025
Fólio | Festival Literário | Óbidos | 9, 10, 11 e 12 de Outubro 2025
Dias maravilhosos em excelente companhia.
Amizade.
Dias de encantamento, de encontros, de conversas.
Música. Arte. Poesia.
Sem limites. Sem fronteiras.
Dias de contacto com escritores. Autógrafos.
Dias de perdição. Livros, muitos livros.
Chocolates. Ginjinha.
Risos e Sorrisos
Sem limites. Sem fronteiras
10 outubro, 2025
Nobel da Literatura | 2021 - 2025
2021 - Abdulrazak Gurnah (1948–) | Tanzânia | Ficção
“Pelo seu entendimento intransigente e compassivo dos efeitos do colonialismo e do destino dos refugiados no abismo entre culturas e continentes”
2022 - Annie Ernaux (1940–) | França | Romance, Memórias, Autobiografia
“Pela coragem e acuidade clínica com que desvenda as raízes, os estranhamentos e os constrangimentos coletivos da memória pessoal”
2023 - Jon Fosse (1959 - ) | Noruega | Drama, Romance
"Pelas suas peças e prosa inovadoras que dão voz ao indizível"
2024 - Han Kang (1970 - ) | Coreia do Sul | Romance, Poesia
"Pela sua intensa prosa poética que confronta traumas históricos e expõe a fragilidade da vida humana".
"Pela sua intensa prosa poética que confronta traumas históricos e expõe a fragilidade da vida humana".
2025 - László Krasznahorkai (1954 - ) | Hungria | Romance, Roteiro
"Pela sua obra convincente e visionária que, em meio ao terror apocalíptico, reafirma o poder da arte".
09 outubro, 2025
László Krasznahorkai vence Prémio Nobel da Literatura 2025
László Krasznahorkai é o grande vencedor do prémio Nobel da Literatura de 2025. A Academia Sueca distinguiu-o “pela sua obra convincente e visionária que, em meio do terror apocalíptico, reafirma o poder da arte”.
László Krasznahorkai nasceu em 1954, em Gyula, no sudeste da Hungria, perto da fronteira com a Roménia. Estudou direito e literatura em Budapeste antes de, em 1987, ter trocado a Hungria por Berlim e ter passado os anos noventa a viajar pelo Japão e pela China.
A sua obra conta com romances, ficções breves e guiões, estando dois deles traduzidos para português - Herscht 07769 (Cavalo de Ferro) e O Tango de Satanás (Antígona), adaptado para o cinema pelo realizador Bela Tarr.
A Real Academia Sueca de Ciências apontou, inclusive, que "uma zona rural remota semelhante é o cenário do seu primeiro romance, Sátántangó, publicado em 1985, que foi uma sensação literária na Hungria e a obra que marcou a consagração do autor".
A Real Academia Sueca de Ciências destacou que o livro Herscht 07769 é encarado "como um grande romance alemão contemporâneo, devido à sua precisão ao retratar a agitação social do país". É um livro, escrito de uma só vez, sobre violência e beleza 'impossivelmente' conjugadas", complementou.
08 outubro, 2025
Ana Paula Tavares vence Prémio Camões 2025
FOTO: VASCO NEVES / ARQUIVO DN
A poeta e historiadora angolana Ana Paula Tavares é a vencedora da 37.ª edição do Prémio Camões, o mais prestigiado galardão literário de língua portuguesa
"O prémio distingue a sua trajetória fecunda e coerente na criação estética, sublinhando o resgate da dignidade da poesia e a relevância antropológica e histórica da sua obra, que inclui poesia, crónica e ficção narrativa", refere o júri, num comunicado enviado pela Direcção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas (DGLAB).
Notícia completa em Diário de Notícias
07 outubro, 2025
𝑨 𝑱𝒂𝒏𝒈𝒂𝒅𝒂 𝒅𝒆 𝑷𝒆𝒅𝒓𝒂, de José Saramago
Autor: José Saramago
Título: A Jangada de Pedra
N.º de páginas: 330
Editora: Caminho
Edição: Outubro 1986
Classificação: Romance
N.º de Registo: (329)
OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐
E se a terra que pisamos decidisse partir? Em 1986, ano em que Portugal e Espanha aderem à então Comunidade Económica Europeia (CEE), José Saramago publica A Jangada de Pedra, romance que transforma a Península Ibérica numa ilha errante. A separação literal da Europa torna-se metáfora da sua posição periférica, da identidade em risco, da escuta que se exige.
Neste romance, Saramago apresenta-nos uma alegoria poderosa sobre pertença e deslocação. O enredo narra a ruptura física da Península Ibérica com o continente europeu e acompanha seis personagens — Joana Carda, José Anaiço, Joaquim Sassa, Pedro Orce, Maria Guavaira e um cão — que, por razões diversas, se sentem ligadas ao fenómeno. Cada uma, com o seu mistério e origem distinta, acaba por cruzar-se numa travessia insólita pela península à deriva.
“Chegou o momento de dizer, agora chegou, que a Península Ibérica se afastou de repente, toda por inteiro e por igual…” (p. 36)
Temos, assim, dois planos narrativos entrelaçados: o real e o maravilhoso. A fantasia serve de lente crítica, permitindo a Saramago atribuir poderes extraordinários às personagens e transformar a Península numa jangada de pedra que flutua no Atlântico. A viagem, esse gesto tão Saramaguiano, emerge como reconhecimento, como busca de sentido, como aproximação ao outro. Individual primeiro, colectiva depois. Sonho, deslocação, esperança.
A intenção do autor ultrapassa largamente a aventura dos companheiros. Com humor e ironia, Saramago evidencia a incapacidade da Europa em lidar com o inesperado, denuncia o oportunismo dos Estados Unidos e de outras potências, e reflecte sobre o impacto da mudança nos vínculos humanos e sociais.
“Portugal e a Espanha foram dois países de pernas para o ar.” (p. 315)
No fundo, o romance questiona as consequências da integração europeia: Será legítimo abdicar da identidade em nome de uma Europa unificada?
A Jangada de Pedra inscreve-se num contexto político, ideológico e social específico, mas a sua inquietação permanece actual. Saramago revela uma profunda consciência crítica sobre o desenvolvimento de Portugal e uma preocupação constante com a posição e a identidade da Península Ibérica no seio europeu.
Apesar de não ser, para mim, a obra mais fulgurante de Saramago, nela ecoa uma inquietação que merece ser escutada. Recomendo a leitura como quem oferece uma jangada: não para fugir, mas para pensar em conjunto.
“Todos acabamos por chegar aonde queremos, é tudo uma questão de tempo e paciência.” (p. 275)
01 outubro, 2025
30 setembro, 2025
𝑶 𝑷𝒓𝒆ç𝒐 𝒅𝒂𝒔 𝑪𝒂𝒔𝒂𝒔, de Joaquim Cardoso Dias
Autor: Joaquim Cardoso Dias
Título: O Preço das Casas
N.º de páginas: 62
Editora: Gótica
Edição: Outubro 2002
Classificação: Poesia
N.º de Registo: (3617)
OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐
O Preço das Casas, de Joaquim Cardoso Dias, é um livro breve, mas profundamente poético. A sua escrita concisa contrasta com uma amplitude emocional que ressoa muito para além do que se lê. Esta obra observa o quotidiano, fixa-se no detalhe através de uma lente crítica e melancólica, revelando o que se esconde por detrás da aparente banalidade dos espaços habitados. Cada verso, por vezes fragmentário, evoca silêncio, hesitação e contemplação. Espelha a fragilidade dos sentimentos, enquanto a simplicidade crua do vocabulário abre espaço para o não dito, para a hesitação que habita entre as palavras.
O próprio título sugere uma dupla leitura: o valor económico das casas e o “valor” existencial - o vivido, o emocional, o íntimo. Cada casa é um corpo que guarda, nas suas paredes, as marcas invisíveis dos que partiram. Um lugar onde o silêncio e a ausência se tornam presença – abrigo e ferida.
Em muitos poemas, há uma tensão entre o gesto íntimo e a ausência, entre o desejo e o esquecimento, entre o corpo e a linguagem. Posso exemplificar com o poema “SEM MENTIR” , o primeiro de todos e um dos meus preferidos.
ainda não sei se o amor esteve aqui de luz acesa
e se caminhou nu toda a noite
pelo tecto do quarto mas
eu tirei a roupa toda bebi água
e não te telefonei
qualquer coisa assim atirou-me de bruços
para o coração e lembrei-me
de te esquecer desde o começo
muito longe e alto nas escadas de incêndio
foda-se como acreditar que te amo
sem mentir
Este poema abre O Preço das Casas com uma força contida e visceral, como se o sujeito poético tentasse decifrar os rastos de uma presença amorosa. O amor é presença incerta - talvez apenas rastro, sonho, memória. A “luz acesa” não ilumina: expõe. E o corpo, despido e silencioso, não se entrega - recusa a comunicação. A imagem da queda emocional é poderosa. O “bruços” sugere vulnerabilidade. E logo a seguir, a lembrança de esquecer torna-se um gesto vivo, como se o amor só pudesse ser verdadeiro se começasse pelo apagamento - mas sem a mentira.
Poder-se-á concluir que este é um amor que se escreve na ausência, na hesitação, na queda. A linguagem é crua, íntima, sem ornamento. E o fecho rasga como uma explosão – uma verdade dita com raiva e ternura.
Li O Preço das Casas como quem entra devagar numa casa abandonada, onde cada verso é uma parede que ainda guarda o eco de quem partiu; como quem descobre o que resta depois de Al Berto. A ausência de Al Berto torna-se presença — como uma casa onde alguém partiu mas deixou “a luz acesa”. (p. 55)
Na minha opinião, há uma continuidade silenciosa entre O Medo e O Preço das Casas: o mesmo gesto de habitar o mundo poeticamente; a partilha de uma escrita marcada pelo corpo - lugar de desejo e de ferida; pela cidade como espaço de desencontro e de errância; pelo silêncio e pela memória.
Se ainda não conhecem a escrita de Joaquim Cardoso Dias, convido-vos a descobri-lo. Ler O Preço das Casas é como acender uma luz num quarto vazio — não para ver melhor, mas para reconhecer os vestígios do que foi vivido. Um ritual de escuta, onde cada palavra hesita, cada silêncio respira.
28 setembro, 2025
𝑨𝒔 𝑹𝒆𝒗𝒐𝒍𝒖𝒄𝒊𝒐𝒏á𝒓𝒊𝒂𝒔 - 𝑫𝒐𝒛𝒆 𝑴𝒖𝒍𝒉𝒆𝒓𝒆𝒔 𝑷𝒐𝒓𝒕𝒖𝒈𝒖𝒆𝒔𝒂𝒔 𝑫𝒆𝒔𝒐𝒃𝒆𝒅𝒊𝒆𝒏𝒕𝒆𝒔, de Maria João Lopo de Carvalho
Autora: Maria João Lopo de Carvalho
Título: As Revolucionárias - Doze Mulheres Portuguesas Desobedientes
N.º de páginas: 342
Editora: Sibila Publicações
Edição: Fevereiro 2023
Classificação: Biografias
N.º de Registo: (3717)
OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐
As Revolucionárias não é apenas um livro sobre mulheres que fizeram história — é um testemunho da coragem que desafiou as estruturas rígidas de uma sociedade que queria as mulheres em casa, confinadas ao silêncio e à invisibilidade. Estas doze portuguesas (Maria Amália Vaz de Carvalho, Carolina Michaëlis de Vasconcelos, Angelina Vidal, Adelaide Cabete, Domitila de Carvalho, Ana de Castro Osório, Virgínia de Castro e Almeida, Carolina Beatriz Ângelo, Virgínia Quaresma, Irene Lisboa, Regina Quintanilha e Maria Lamas), que ousaram dizer não ao silêncio, à exclusão, à norma, foram as pioneiras na recusa de papéis impostos, desobedecendo aos estereótipos do “feminino” e abrindo caminhos limitados e bem pedregosos.
Cada uma delas, à sua maneira, com a sua linguagem em construção, foi uma desobediente contra o sistema que negava às mulheres o direito ao saber, ao trabalho, à voz pública, à autonomia e à liberdade. Temos médicas que desafiaram a exclusão das faculdades, advogadas que lutaram por direitos legais, jornalistas que deram visibilidade às causas femininas, professoras que abriram portam nas universidades, cineastas que captaram realidades silenciadas, intelectuais que questionaram o estabelecido.
A desobediência destas mulheres, a quem muito devemos, não foi um acto isolado, mas um movimento colectivo de resistência que atravessou o século XIX e o início do XX, da Monarquia, à República, ao Estado Novo. Todas enfrentaram censuras, preconceitos, exclusões sociais e políticas, mas mantiveram-se firmes na luta pelo reconhecimento do lugar da mulher na sociedade.
Entre as doze mulheres que Maria João Lopo de Carvalho convoca, duas representam, para mim, exemplos de uma travessia: Carolina Michaëlis, filóloga e professora universitária, e Maria Lamas, jornalista e ativista política.
Carolina, estrangeira por nascimento e íntima da língua portuguesa por vocação, ensinou-nos que o rigor pode ser gesto de amor. Foi a primeira mulher a lecionar numa universidade portuguesa, e fê-lo com uma delicadeza que desafiava o masculino institucional. A sua desobediência foi silenciosa, mas fundadora.
Maria Lamas, por outro lado, fez da palavra uma arma. Escreveu, traduziu, dirigiu revistas, enfrentou censuras e prisões políticas. Em As Mulheres do Meu País, percorreu Portugal com o corpo e com a escuta, fotografando vidas invisíveis. A sua desobediência foi pública, ruidosa, política — e profundamente poética.
Estas duas mulheres são as minhas preferidas. Não apenas pelo que fizeram, mas pelo modo como encarnam duas formas distintas e complementares de desobediência: a do silêncio que funda e a do grito que transforma. Mas todas, as doze, foram desbravadoras e construíram um legado de ousadia, solidariedade e transformação.
Em suma, este livro não é uma biografia colectiva. É um manancial de memórias. Em cada capítulo (breve biografia) encontramos não apenas factos, mas feridas, dúvidas, receios, gestos de coragem e cumplicidades entre mulheres. Este livro é, assim, um convite para escutar essas vozes que recusaram o silêncio, para reconhecer a luta que continua, e para celebrar a desobediência como força vital que faz avançar o mundo. Lê-lo é um acto de resistência e de possibilidade de futuro.
Recomendo a sua leitura. Gostaria que houvesse uma continuação porque houve mais mulheres corajosas e desobedientes no nosso país.
25 setembro, 2025
43 vezes o tempo
(para quem caminha com raízes, sem precisar de legenda)
Houve entendimento,
mais que prometimento,
houve tempo,
marcas que o tempo não apaga,
que não se escreveram em pedras,
apenas esculpidas no coração.
Houve ritos,
mais que pactos e palavras,
no gesto de cada dia,
na hesitação de um prato lavado,
no silêncio entre dois cafés.
Não houve alaridos,
houve tempo,
tempo que não se mede
nem conta medalhas.
43 vezes o tempo,
sem manual,
com desvios,
com coragem para ficar
quando o amor já não precisa
de nome,
mas ainda tem lugar.
GR
𝑨 𝑴𝒂𝒊𝒔 𝑺𝒆𝒄𝒓𝒆𝒕𝒂 𝑴𝒆𝒎ó𝒓𝒊𝒂 𝒅𝒐𝒔 𝑯𝒐𝒎𝒆𝒏𝒔, de Mohamed Mbougar Sarr
Autor: Mohamed Mbougar Sarr
Título: A Mais Secreta Memória dos Homens
Tradutores: Cristina Rodriguez e Artur Guerra
N.º de páginas: 433
Editora: Quetzal
Edição: Outubro 2022
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3735)
OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐
A Mais Secreta Memória dos Homens, de Mohamed Mbougar Sarr, é mais do que um romance — é uma travessia literária entre o mistério da criação, o silêncio da memória e a revolução da linguagem. A obra debruça-se sobre o desaparecimento de um autor e a busca por uma obra mítica — tudo envolto numa atmosfera de dúvida, silêncio, revolta e beleza que ecoa profundamente no leitor, deixando palavras suspensas, sentidas; legando descrições fabulosas que extasiam; cruzando figuras literárias intensas e enigmáticas.
“De um escritor e da sua obra, podemos pelo menos saber isto: um e outro percorrem juntos o labirinto mais perfeito que possamos imaginar.” (p. 15) E eu acrescentaria também o leitor.
O romance é um labirinto — não apenas narrativo, mas emocional. Há cartas, vozes, entrevistas, críticas, fragmentos de livros que nunca existiram, silêncios. E há perguntas que o atravessam: o que significa escrever quando o mundo te lê com desconfiança? Como pode a escrita — ou um autor — ser “reduzido a uma pele, a uma origem, a uma religião, a uma identidade”? (p. 291)
O enredo foca-se em Diégane Latyr Faye, jovem escritor senegalês exilado em Paris, que descobre vestígios de um romance lendário, O Labirinto do Inumano, escrito por T.C. Elimane — autor maldito, desaparecido, talvez inventado. Diégane decide procurá-lo — o “Rimbaud negro” — e a investigação leva-o por Paris, Amesterdão, Dakar e outros lugares, cruzando-o com figuras literárias como Marème Siga D., a “Aranha-mãe” da escrita. Mas o que ele encontra é muito mais do que um nome: encontra o eco de todos os escritores silenciados, apagados, esquecidos. E eu, leitora, encontrei-me também nesse eco.
A ressaca da leitura ainda perdura em mim. Há livros que não terminam quando viramos a última página; Fica o silêncio preso à última vírgula; Fica o cheiro das páginas impregnado na pele das nossas mãos; Fica a cumplicidade íntima da descoberta; Fica o eco de uma frase lida ou sonhada; Fica o tempo irreal; Fica o leitor suspenso…
A escrita de Sarr é bela, versátil e profundamente poética, com ecos de Bolaño e uma energia narrativa que mistura crítica literária, história colonial e reflexão sobre o papel do escritor. É uma obra que interroga o que é ser autor, o que é ser lido e como a literatura pode sobreviver ao tempo, à crítica e ao esquecimento.
Leitura exigente e intensa. Há frases que parecem sussurradas por fantasmas, outras que gritam contra o apagamento: “Resistam à sombra. Mantenham-se vivos.” (p. 257)
Este livro fez-me pensar nos meus próprios silêncios, nas leituras que me moldaram, nas vozes que me acompanham. Fez-me revisitar o gesto de escrever, o medo de ser lida, a alegria de encontrar um autor que me escuta. Fez-me lembrar que a literatura não é apenas arte — é sobrevivência, é memória, é resistência. E quando o livro termina, o leitor permanece — suspenso entre o que foi lido e o que ainda ecoa.
16 setembro, 2025
Aquele dia
Esta imagem-poema criada com IA (Copilot_16_09_25) nasce do encontro entre palavra e gesto, entre memória e matéria. O texto, dividido em quatro estrofes, percorre os contornos de um dia que se transforma — ora indesejado, ora festivo, ora contraditório — revelando camadas de tempo, afeto e transição. O tempo a virar página.
Aquele dia
transitório
indesejado
marco de um retorno
já é passado
Aquele dia
taciturno
início de burocracia
de rotinas
já é finitude
Aquele dia
inicial
festivo
de reencontros e de sorrisos
já anuncia saudades
Aquele dia
contraditório
agora sem compromissos
é princípio de remoçamento
GR
15 setembro, 2025
A Espuma das Dúvidas
Texto breve inspirado em Ítalo Calvino, com um toque de humor e inspiração política.
Num tempo em que até o mar parece hesitar, este exercício criativo acompanha o senhor Palomar — personagem de olhar minucioso e pensamento inquieto — enquanto observa o vai e vem das ondas. Mas há alguém que o observa também: uma narradora cúmplice, sentada na areia, que vê no seu gesto uma metáfora para o país à beira das eleições.
Entre a espuma e o silêncio, entre o olhar e o voto, nasce este texto de hesitação universal e muito pessoal.
Entre a espuma e o silêncio, entre o olhar e o voto, nasce este texto de hesitação universal e muito pessoal.
“O mar está levemente encrespado e pequenas ondas vêm bater na costa arenosa. O senhor Palomar encontra-se na praia, de pé, e observa uma onda” com a solenidade de quem está a tentar decifrar um programa eleitoral redigido na gramática da espuma.
Eu, sentada a uns metros, observo Palomar. Ele observa o mar. O mar, por sua vez, parece ocupado demais, a repetir-se, para reparar em nós. A cena tem algo de coreográfico: a onda avança, recua, avança, recua, ora discreta ora vigorosa — como um candidato em campanha, cheio de promessas e pouco consistente.
Palomar não pisca. Mantém o olhar na onda. Eu já pisquei vinte vezes, e até já limpei os óculos. Ele permanece imóvel, como se o seu corpo fosse apenas um suporte para o olhar. A onda aproxima-se com mais vigor. Molha-lhe os pés. Ele não reage. Eu reajo por ele, num reflexo solidário. Mas ele continua firme, como quem acredita que o mar só revela os seus segredos a quem não se deixa influenciar por sondagens.
A próxima onda hesita. Palomar também. A espuma suspende-se por um instante.
Ele murmura:
— Esta onda... está indecisa.
Eu sorrio. Claro que está. Aproximam-se as autárquicas. Até o mar parece dividido entre manter o rumo ou votar na mudança. A espuma recua, como quem não quer comprometer-se. Palomar franze o sobrolho, talvez a tentar perceber se a ondulação é mais virada para o centro ou para a esquerda.
O vai e vem das ondas torna-se hipnótico. Há uma cadência, uma espécie de respiração do mundo. Palomar parece tentar sincronizar-se com ela. Eu tento sincronizar-me com Palomar, mas ele está num fuso horário diferente. Talvez esteja a contar as ondas como votos. Ou a tentar perceber se alguma delas é populista.
No fim, quando o sol começa a mergulhar no horizonte e a praia se pinta de dourado, Palomar dá um passo atrás. Olha para os pés molhados. Olha para mim. E diz, com a serenidade de quem passou o dia inteiro a conversar com o infinito:
— Acho que esta última... estava quase a decidir-se.
Eu sorrio. Talvez estivesse. Ou talvez fosse só mais uma onda. Mas mesmo entre espumas e incertezas, há sempre um momento em que é preciso escolher.
GR
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