05 março, 2025

𝑵𝒂𝒔 𝑻𝒖𝒂𝒔 𝑴ã𝒐𝒔, de Inês Pedrosa

 


Autora: Inês Pedrosa
Título: Nas Tuas Mãos
N.º de páginas: 227
Editora: D. Quixote
Edição (7.ª): Março 2003
Classificação: Romance
N.º de Registo: (1664)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐




03 março, 2025

Vencedores dos Óscares 2025

 




A cerimónia de entrega dos Óscares decorreu no dia 3 de Março, no Dolby Theatre, em Hollywood, Los Angeles e foi conduzida pelo apresentador Conan O'Brien.

Anora, de Sean S. Baker foi o grande vencedor, arrecadando cinco estatuetas: Melhor Filme. Melhor Realizador (Sean Baker) e Melhor Atriz (Mikey Madison), Melhor Argumento Original e Melhor Montagem. 
O Brutalista, vencedor nas nomeações, ficou com três troféus. 

Destaque para o filme brasileiro Ainda Estou Aqui de Walter Salles, que conquistou a estatueta de Melhor Filme Internacional. Fernanda Torres desempenhou um excelente papel como actriz principal. Muitos tinham-lhe prognosticado o prémio de Melhor Actriz. 


Premiados:


Melhor Filme — Anora, de Sean S. Baker

Melhor Realização — Sean S. Baker (Anora)

Melhor Atriz — Mikey Madison (Anora)

Melhor Ator — Adrien Brody (O Brutalista)

Melhor Atriz Secundária — Zoë Saldaña (Emilia Pérez)

Melhor Ator Secundário — Kieran Culkin (A Verdadeira Dor)

Melhor Filme Internacional — Ainda Estou Aqui, de Walter Moreira Salles Jr

Melhor Curta Metragem em Live-Action — I'm Not a Robot, de Victoria Warmerdam, 

Melhor Filme de Animação — Flow - À Deriva, de Gints Zilbalodis, Matīss Kaža, Ron Dyens,

Melhor Curta-Metragem de Animação — In the Shadow of the Cypress, de Shirin Sohani, Hossein Molayemi

Melhor Documentário — No Other Land, de Yuval Abraham, Basel Adra, Rachel Szor, ...

Melhor Curta-Metragem Documental — The Only Girl in the Orchestra, de Lisa Remington, Molly O'Brien

Melhor Argumento Original — Anora, de Sean S. Baker

Melhor Argumento Adaptado — Conclave, de Peter Straughan

Melhor Banda Sonora Original — O Brutalista, Daniel Blumberg

Melhor Canção Original — El Mal, de Jacques Audiard, Camille Dalmais, Clément Ducal

Melhor Design de Produção — Wicked, de Nathan Crowley, Lee Sandales

Melhor Montagem — Anora, de Sean S. Baker

Melhor Fotografia — O Brutalista, de Lol Crawley 

Melhores Efeitos Visuais — Dune Duna: Parte Dois, de Gerd Nefzer, Stephen James, Rhys Salcombe

Melhor Som — Dune Duna: Parte Dois, de Richard King, Ron Bartlett, Doug Hemphill

Melhor Caracterização — A Substância, de Pierre Olivier Persin, Stéphanie Guillon 

Melhor Guarda-Roupa —Wicked, de Paul Tazewell



28 fevereiro, 2025

𝑷𝒐𝒅𝒆 𝑼𝒎 𝑫𝒆𝒔𝒆𝒋𝒐 𝑰𝒎𝒆𝒏𝒔𝒐, de Frederico Lourenço

 


Autor: Frederico Lourenço
Título: Pode um Desejo Imenso
N.º de páginas: 504
Editora: Quetzal Editora
Edição: Abril 2022
Classificação: Romance
N.º de Registo: (BE)




OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


Pode um Desejo Imenso publicado na Quetzal em Abril de 2022, foi, primeiramente, publicado como trilogia pela Cotovia. Ou seja, a este título publicado em 2002, seguiram-se O Curso das Estrelas, também em 2002, e À beira do mundo, em 2003.
Nesta nova edição, com uma capa belíssima, foi atribuído o mesmo título a cada uma das três partes que o constituem e pela mesma ordem de escrita.

Não sendo um romance autobiográfico, como já foi referido pelo autor, em entrevistas, acaba por revelar aprendizagens conquistadas quer pessoal quer profissionalmente.
Poder-se-á intuir, certamente, que o protagonista, Nuno Galvão, professor universitário especialista de literatura e da obra de Camões, é o alter-ego de Frederico Lourenço, na sua paixão pelos clássicos, sobretudo por Camões, que tanto cita ao longo da narrativa. Aliás o verso camoniano, que deu o título ao livro, será o elo agregador das três partes.
Na primeira parte, Nuno Galvão professor universitário, camoniano de paixão, desenvolve uma tese sobre Camões e foca-se no possível amor que o poeta sentiu por D. António de Noronha de quem foi preceptor. O livro constrói-se no paralelismo existente entre este possível amor e a paixão platónica do professor universitário por um dos seus alunos.

Na segunda parte, há um retorno ao tempo em que Nuno Galvão é estudante universitário e com ele mergulhamos nas dúvidas existências, sexuais e na lírica de Camões, entre outros aspectos que não vou desvendar. Na terceira, é o regresso ao presente, a alguns reencontros e a possíveis reconciliações. O final da história, em aberto, é quase cinematográfico e abre um caminho à esperança, “em direção à outra margem”. Talvez seja a parte mais ficcional.

Assim, ao longo da obra – das três partes - acompanhamos o crescimento do homem e do intelectual, Nuno Galvão. Reencontramos o amor e a sexualidade expostos sem tabus. Conhecemos um homem que vive, de forma intensa e controlada, um amor platónico, que descobre a sua inclinação homossexual, que explora o homoerotismo, que se aceita com lucidez. Emocionamo-nos com o sofrimento e com as perdas. Admiramos a sua dedicação à profissão e a Camões.

A escrita de Frederico Lourenço é erudita, por vezes complexa, mas fluente, acabando por conduzir o leitor a uma leitura ávida. Há inúmeras referências a autores clássicos, a versos da lírica camoniana que tanto me agradam. Contudo, aquando da leitura da primeira parte que integra a comunicação "Camões e D. António de Noronha. Ecos Homoeróticos nas Rimas" que Nuno Galvão irá proferir num colóquio camoniano, interroguei-me se, quem não tiver um conhecimento mais vasto do nosso maior poeta, poderá, da mesma forma, fruir completamente deste livro. Talvez não. Mas poderá servir de motivação para a descoberta ou aprofundamento da sua lírica. O romance, em si, acompanha-se perfeitamente.

Pode um desejo imenso
Arder no peito tanto
Que à branda e a viva alma o fogo intenso
Lhe gaste as nódoas do terreno manto,
E purifique em tanta alteza o espírito
Com olhos imortais
Que faz que leia mais do que vê escrito.

(…)

Ode VI, de Luís Vaz de Camões

27 fevereiro, 2025

Pode um desejo intenso | Camões






Pode um desejo imenso
Arder no peito tanto,
Que à branda e à viva alma o fogo intenso
Lhe gaste as nódoas do terreno manto,
E purifique em tanta alteza o espírito
Com olhos imortais
Que faz que leia mais do que vê escrito.

Que a flama que se acende
Alto, tanto alumia
Que, se o nobre desejo ao bem se estende
Que nunca viu, o sente claro dia;
E lá vê do que busca o natural,
A graça, a viva cor,
Noutra espécie melhor que a corporal.

Pois vós, ó claro exemplo
De viva fermosura,
Que de tão longe cá noto e contemplo
Na alma, que este desejo sobe e apura;
Não creiais que não vejo aquela imagem
Que as gentes nunca vêm,
Se de humanos não têm muita vantagem.

Que, se os olhos ausentes
Não vêm a compassada
Proporção, que das cores excelentes
De pureza e vergonha é variada;
Da qual a Poesia, que cantou
Até aqui só pinturas,
Com mortais fermosuras igualou;

Se não vêm os cabelos
Que o vulgo chama de ouro,
E se não vêm os claros olhos belos,
De quem cantam que são do Sol tesouro;
E se não vêm do rosto as excelências,
A quem dirão que deve
Rosa e cristal e neve as aparências;

Vêm logo a graça pura
A luz alta e severa
Que é raio da Divina fermosura,
Que na alma imprime e fora reverbera,
Assim como cristal do Sol ferido,
Que por fora derrama
A recebida flama, esclarecido.

E vêm a gravidade
Co'a viva alegria
Que misturada tem, de qualidade
Que da outra nunca se desvia;
Nem deixa ua de ser arreceada,
Por leda e por suave,
Nem outra, por ser grave, muito amada.

E vêm do honesto siso
Os altos resplandores
Temperados co'o doce e ledo riso,
A cujo abrir abrem no campo as flores;
As palavras discretas e suaves,
Das quais o movimento
Fará deter o vento e as altas aves;

Dos olhos o virar
Que torna tudo raso,
Do qual não sabe o engenho divisar
Se foi por artifício, ou feito a caso;
Da presença os meneios e a postura,
O andar e o mover-se,
Donde pode aprender-se fermosura.

Aquele não sei quê,
Que aspira não sei como,
Que, invisível saindo, a vista o vê,
Mas pera o compreender não acha tomo;
O qual toda a toscana poesia,
Que mais Febo restaura,
Em Beatriz nem em Laura nunca via;

Em vós a nossa idade,
Senhora, o pode ver,
Se engenho, e ciência, e habilidade
Igual à fermosura vossa der,
Como eu vi no meu longo apartamento,
Qual em ausência a vejo.
Tais asas dá o desejo ao pensamento!

Pois se o desejo afina
Ua alma acesa tanto
Que por vós use as partes de divina,
Por vós levantarei não visto canto,
Que o Bétis me ouça e o Tibre me levante;
Que o nosso claro Tejo
Envolto um pouco o vejo e dissonante.

O campo não o esmaltam
Flores, mas só abrolhos
O fazem feio; e cuido que lhe faltam
Ouvidos pera mim, pera vós olhos.
Mas faça o que quiser o vil costume;
Que o Sol, que em vós está,
Na escuridão dará mais claro lume.


Ode VI da edição de 1598 das Rimas


21 fevereiro, 2025

𝑶 𝑺𝒆𝒈𝒓𝒆𝒅𝒐 𝒅𝒐 𝑩𝒐𝒔𝒒𝒖𝒆 𝑽𝒆𝒍𝒉𝒐 , de Dino Buzzati




Autor: Dino Buzzati
Título: O Segredo do Bosque Velho
Tradutora: Margarida Periquito
N.º de páginas: 156
Editora: Cavalo de Ferro
Edição (4.ª): Abril 2018
Classificação: Romance
N.º de Registo: (BE)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐



Descobri Dino Buzzati com O Deserto dos Tártaros, leitura sugerida por alguém que aprecia bons livros. Gostei tanto que assim que vi O Segredo do Bosque Velho, na biblioteca da minha escola, reservei-o para ler. Dois livros com enredos completamente diferentes que garantem a qualidade da escrita e o arrebatamento do leitor.

Neste, temos a efabulação maravilhosa da natureza. A narrativa é alimentada por animais que falam, pequenos génios invisíveis que povoam abetos e outras árvores, espíritos e ventos com múltiplos poderes,… personagens que se mesclam entre o real e o fantástico, entre o mal e o bem com o objectivo de denunciar comportamentos humanos.

Tudo começa com a decisão do protagonista, Sebastiano Procolo, herdeiro de uma parte do bosque velho, em abater algumas árvores para obter ganhos financeiros. A harmonia existente no local, esvai-se, pelo que surgem inúmeras peripécias que não vou desvendar para não retirar o prazer da descoberta a quem pretender ler o livro.

A magia impõe-se pela personificação da natureza que, pelo viés de elementos encantatórios, põe em destaque a intriga e a maldade do homem.
Numa escrita simples, clara e contida o autor presenteia-nos com uma alegoria magnífica que desassossega e, simultaneamente, revela a inocência da infância (há uma criança na história) e a brutalidade do homem.
É um livro que recomendo. Apesar de ser, supostamente, classificado como leitura juvenil, considero que é um livro fascinante para todos, sem catalogação de idade.



18 fevereiro, 2025

Dias simples e emotivos


Hoje, fui à minha escola para assistir à segunda fase do Concurso de Leituras na Planície.
Contudo, o teor desta minha mensagem é outro como podem constatar pelas fotos.
Fui agradavelmente surpreendida pelo carinho de um grupo de alunos que representam a associação de estudantes da escola. É bom quando o trabalho de uma vida é reconhecido, mas quando o é pelos alunos ficamos, ainda, mais emocionados e eternamente gratos. Vim de braços e coração cheios.



          

         



17 fevereiro, 2025

𝑵𝒐𝒊𝒕𝒆, de Elie Wiesel

 


Autor: Elie Wiesel
Título: Noite
Tradutora: Paula Almeida
N.º de páginas: 133
Editora: D. Quixote
Edição: Agosto 2023
Classificação: Testemunho
N.º de Registo: (3663)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐


Vencedor do Prémio Nobel da Paz em 1986, Elie Wiesel, judeu e sobrevivente do Holocausto, desenvolveu um trabalho importante em defesa da dignidade e dos direitos humanos.
Noite é um testemunho importante (ao nível de um Se Isto É Um Homem, de Primo Levi) sobre os horrores praticados na segunda guerra mundial porque nos apresenta um relato aterrador e doloroso da sua experiência no gueto e nos campos de concentração.

Com apenas 15 anos, Elie e o pai, separados da mãe e das irmãs logo à chegada ao campo, à tão terrível selecção – “o perigo mais grave”, lutaram pela sobrevivência. Enfrentaram torturas, fome, frio, longas caminhadas, doenças e presenciaram a morte nas mais diversas formas.

Numa escrita crua, concisa e intensa, Elie, anos depois e por uma questão de sobrevivência mental, resgata as suas memórias por entender que é necessário preservá-las e revelá-las ao mundo. Elie denuncia detalhadamente a violência, a crueldade de episódios que viveu e testemunhou; revela a sua perda de inocência (“( …) daquela criança que descobre. De uma assentada, o mal absoluto.”) e de dignidade perante o horror e a banalidade do mal; descobre a sua revolta, a sua angústia por ter deixado de acreditar em Deus, “Não tinha negado a Sua existência, mas duvidada da Sua justiça absoluta.” (p. 59); denuncia a sua impotência perante a morte há muito anunciada de seu pai. É doloroso acompanhar a degradação das pessoas perante a necessidade de sobrevivência.

Por muito que já tenha lido sobre o assunto, sou sempre surpreendida com novos factos que me levam a reflectir sobre a crueldade do ser humano em relação ao outro e sobre a real dimensão da ferida legada às gerações seguintes.
Hoje, surge-nos, de novo, a ameaça dos valores humanos, democráticos. Urge analisar, debater e repensar alguns valores visíveis e crescentes nas nossas sociedades, como a xenofobia, a descriminação, a intolerância. Há uma dimensão do mal que se instala gratuitamente

Apesar, de ser uma obra dura porque muito realista, recomendo a sua leitura. Elie Wiesel dedicou parte da sua vida a lutar pelos direitos humanos e a manter viva a memória do Holocausto.
A certa altura (p. 48), perante o que ele e muitos apelidaram de “antecâmara do inferno”, ou seja, perante “tanta brutalidade bestial”, Elie, apertou a mão do pai e pensou:
“Nunca esquecerei aquela noite, a primeira noite no campo, que fez da minha vida uma noite longa e sete vezes aferrolhada.
Nunca esquecerei aquele fumo.
Nunca esquecerei os pequeninos rostos das crianças cujos corpos eu vi transformarem-se em espirais sob um céu mudo.
Nunca esquecerei aquelas chamas que consumiram para sempre a minha Fé.
Nunca esquecerei aquele silêncio nocturno que me privou, para a eternidade, do desejo de viver.
Nunca esquecerei aqueles momentos que assassinaram o meu Deus e a minha alma, e que transformaram os meus sonhos em cinzas.
Nunca esquecerei, mesmo que tenha sido condenado a viver tanto tempo quanto o próprio Deus.
Nunca.”

Por tudo isto, também nós, não podemos esquecer. Não podemos deixar que o passado se venha a repetir.



14 fevereiro, 2025

Dia de São Valentim

No ano em que se celebram os 500 anos do aniversário de Luís Vaz de Camões, só podia assinalar esta data com um poema do poeta maior da Língua Portuguesa. 


Verdes são os campos 

Verdes são os campos,
De cor de limão:
Assim são os olhos
Do meu coração.

Campo, que te estendes
Com verdura bela;
Ovelhas, que nela
Vosso pasto tendes,
De ervas vos mantendes
Que traz o Verão,
E eu das lembranças
Do meu coração.

Gados que pasceis
Com contentamento,
Vosso mantimento
Não no entendereis;
Isso que comeis
Não são ervas, não:
São graças dos olhos
Do meu coração.


Luís de Camões


13 fevereiro, 2025

𝑶 𝑷𝒂𝒑𝒆𝒍 𝒅𝒆 𝑷𝒂𝒓𝒆𝒅𝒆 𝑨𝒎𝒂𝒓𝒆𝒍𝒐, de Charlotte Perkins Gilman

 


Autora: Charlotte Perkins Gilman
Título: O Papel de Parede Amarelo
Tradutora: Maria Amorim
N.º de páginas: 67
Editora: Húmus
Edição: Novembro 2020
Classificação: Conto
N.º de Registo: (3670)




OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐




O livro contém dois textos de Charlotte Perkins Gilman, o conto O Papel de Parede Amarelo; o depoimento Porque escrevi O Papel de Parede Amarelo e um posfácio Que Papel de Parede? (Uma leitura do conto), de Rita Santana dos Santos.

A ambiguidade e a ironia presentes na escrita deste conto elevam-no a um patamar superior.

Gilman descreve-nos de forma inquieta e inteligente a reacção de uma mulher (não lhe é atribuído nome) a quem foi diagnosticada “uma depressão nervosa temporária – uma pequena predisposição histérica.” (p.8) e que, por conselho e decisão do marido, médico prestigiado, vai passar um verão numa casa isolada no campo para beneficiar de um repouso total. Assim, encontra-se proibida de trabalhar, de desenvolver qualquer tipo de esforço físico ou intelectual. Ela, pessoalmente, discorda e considera “que um trabalho agradável, estimulante e sem rotinas” lhe faria muito bem. Mas como mulher que é, vai acatar as ordens do marido.
Assim, ao longo da sua estada naquela casa e sobretudo no quarto que tem um papel de parede amarelo horrível vamos acompanhando, num crescendo, a sensação de claustrofobia que a conduz à insanidade.
Toda a narrativa causa desconforto e ansiedade ao leitor.

Numa primeira abordagem, está premente a questão da saúde mental numa mulher que é forçada a fazer o que outros lhe recomendam e não o que ela gostaria efectivamente de fazer, como escrever, estar com amigos, lidar com o seu bebé.
Ora, é neste ponto que reside a questão essencial do conto. O facto de a personagem feminina estar “impedida” de pensar e de escrever, de ser ”obediente a um marido detentor de autoridade”, de ser desvalorizada e infantilizada, põe em relevo a condição de opressão das mulheres que, naquela época, viviam numa sociedade patriarcal e conservadora e que, inevitavelmente, lhes causava perturbações mentais.
Gilman através de uma metáfora fabulosa desmonta a perspectiva da “doente mental” que, como vítima passiva e isolada num quarto que “cheira a amarelo”, se vai aproximando de um final inesperado. É perturbador e intrigante acompanhar as suas descrições, tão sensoriais, do papel amarelo – as imagens que visualiza e fantasia, os cheiros que a perseguem, as movimentações das “mulheres” que compõem o padrão.

Afinal, esta luta mental da protagonista que descreve todo um processo de libertação, por via das mulheres que saem do papel, representa, metaforicamente, a luta travada pelas mulheres pelos seus direitos, pela sua liberdade.
Apesar de ser um texto curto, acaba por suscitar no leitor inúmeras provocações e leva-o a reflectir sobre a questão tantas vezes repetida ao longo do conto “mas o que é que se pode fazer?” . Questão que se aplica não só nesta situação, mas em tantas outras que privam o ser humano da sua essência primordial - a liberdade.

Resta-me referir que Gilman afirmou no seu depoimento, que “o conto não pretendia enlouquecer as pessoas, mas evitar que enlouquecessem, e funcionou.” (p. 41). Se tiverem curiosidade em saber como, convido-vos a ler os dois textos.


12 fevereiro, 2025

𝑶 𝑳𝒆𝒊𝒕𝒐𝒓, de Bernhard Schlink

 


Autor: Bernhard Schlink
Título: O Leitor
Tradutora: Fátima Freire de Andrade
N.º de páginas:144
Editora: Edições ASA
Edição(7.ª): Maio 2009
Classificação: Romance
N.º de Registo: (2600)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


Decidi reler O Leitor. A primeira leitura ocorreu em 2010 e já não tinha memória de determinados factos. Além do mais, gosto de voltar a livros que me marcaram para deles retirar novas compreensões e ensinamentos.

O enredo situa-se nos anos de 1960 e aborda a temática do Holocausto, pondo em confronto duas gerações, através do relacionamento íntimo entre Hanna (36 anos) e Michael (15 anos). A geração que viveu o Nacional-socialismo de Hitler e a geração da pós-segunda guerra mundial, ou seja, a dificuldade dos mais jovens compreenderem determinados comportamentos dos seus pais, dos seus antepassados.
“Todos condenámos os nossos pais à vergonha eterna, ainda que só os pudéssemos acusar de terem tolerado depois de 1945, a companhia dos assassinos.” (p. 62)
O tema é controverso, pelo que o autor aborda-o com subtileza e atribui a Michael Berg a função de se questionar sobre esse passado doloroso e criminoso. Não há respostas para as perplexidades apresentadas, nem tão pouco às múltiplas questões colocadas. A subtileza perpassa, ainda, pela ausência de certas memórias e pela presença de imagens “que ficaram”.

O Leitor levanta várias possibilidades de leituras. Todas perturbadoras. Pretenderá o autor, através das atrocidades cometidas, neste caso, pelas guardas dos campos de concentração, demonstrar a crueldade de um passado que não se pode repetir? Pretenderá, através do relacionamento amoroso entre Michael e Hanna, desvanecer o passado que as gerações actuais não viveram? Pretenderá gerar compaixão e empatia por Anna? Pretenderá, pelo viés do julgamento, absolver as acções cometidas por determinados agentes? Pretenderá justificar o “embotamento” dos sobreviventes, dos criminosos e de toda uma sociedade que se acomodou à situação do pós-guerra? Pretenderá desobrigar a geração de Michael ainda vítima das fissuras do Holocausto? (A mesma geração do autor).

Mas para além destas, e de outras possíveis, reflexões, O Leitor oferece-nos a possibilidade de entender a leitura como um prazer e uma fonte de conhecimento e humanização. Ao atribuir a Hanna a característica de analfabeta, o autor serve-se, de novo, dos pensamentos e das dúvidas de Michael para demonstrar que se ela soubesse ler teria mais consciência dos seus actos e poderia ter sido uma pessoa diferente, talvez mais sensível.
“Mas seria possível que a vergonha de não saber ler nem escrever explicasse também o comportamento de Hanna durante o julgamento e no campo de concentração?” (p. 87)

Em boa hora, decidi reler este livro. Coloca questões pertinentes que avivam memórias e estabelecem pontes entre o passado, o presente e o futuro. Num presente muito preocupante, com a leitura deste livro, reforço a convicção de que a leitura e a cultura combatem a ignorância e geram uma consciência social mais aguda e crítica.




08 fevereiro, 2025

Emoções

Mais um dia de emoções. Desta vez fui surpreendida pelas funcionárias da minha escola. Sou-lhes grata, a todas. Não vou mencionar ninguém porque sabem quem são e também sabem que as guardarei sempre no meu coração. 






07 fevereiro, 2025

𝑴𝒊𝒏𝒉𝒂 𝑺𝒆𝒏𝒉𝒐𝒓𝒂 𝒅𝒆 𝑴𝒊𝒎, de Maria Teresa Horta

 



Autora: Maria Teresa Horta
Título: Minha Senhora de Mim
Editora: D. Quixote
Edição(3.ª): Fevereiro 2023
Classificação: Poesia
N.º de Registo: (3657)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐


Minha Senhora de Mim é um livro maravilhoso. MTH constrói uma poética íntima e erótica, com identidade própria, muito feminista, negando a subordinação e opressão impostas às mulheres da época, em Portugal. Em 1971, foi editado e, de imediato, censurado  sob o regime conservador e patriarcal do Estado Novo.

Nos 59 poemas que compõem o livro, verifica-se uma forte piscadela de olho à poesia trovadoresca. Quero acreditar que o fez como desafio e provocação, já que este tipo de composições era estritamente assinado por homens. Desta forma, MTH reivindica uma escrita muito própria que dá voz à mulher como autora. Este aspecto também sobressai no título. O recurso aos possessivos “minha” e “mim” não deixam dúvidas de que o discurso será na primeira pessoa.
No poema inicial “Regresso” , colocado em jeito de preâmbulo, a autora confirma o título e dá o mote ao conteúdo do seu livro, ou seja, que é de si que vai falar e que vai expor “ o que é secreto”.

“Regresso para mim
e de mim falo
e desdigo de mim
em reencontro
(…)
Trago para fora
o que é secreto
vantagem de saudade
o que é segredo
(…)

Assim, o sujeito poético vai revelar-se nas memórias do “eu”, na descoberta do seu corpo como desejo próprio e desejo do outro, na descoberta do prazer, no apelo do amante, no deleite amoroso. Cito “O Meu Desejo”(p. 82).

“Afaga devagar as minhas
pernas
Entreabre devagar os meus
joelhos
Morde devagar o que é
negado
Bebe devagar o meu
desejo”

MTH ao escrever abertamente sobre o seu corpo e sobre o corpo do homem objecto de desejo, transgride os cânones da literatura e ultraja a moral dos puritanos. Ora, no nosso país era inaceitável que uma mulher escrevesse “tais vergonhas” pelo que MTH foi violentamente agredida na rua e o seu livro foi retirado de circulação.

Claro que MTH sempre usou um discurso transgressor, mas esta obra marca uma viragem pela ousadia de escrever sobre o desejo feminino, atribuindo o papel central à mulher numa inversão do pré-estabelecido na sociedade portuguesa.

Para concluir, resta-me referir que, apesar de já ter lido alguns livros de MTH, descobri este aquando da leitura da biografia - A Desobediente - de autoria de Patrícia Reis. 

 



05 fevereiro, 2025

À 𝑬𝒔𝒑𝒆𝒓𝒂 𝒅𝒂 𝑺𝒖𝒃𝒊𝒅𝒂 𝒅𝒂𝒔 Á𝒈𝒖𝒂𝒔, de Maryse Condé


 

Autora: Maryse Condé
Título: À Espera da Subida das Águas
Tradutora: Sandra Silva
N.º de páginas: 292
Editora: Quetzal
Edição: Maio 2023
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3584)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


Foi uma agradável descoberta ler Maryse Condé. Tinha alguma curiosidade por ser uma autora francófona e, finalmente, chegou a oportunidade. Nesta narrativa, a autora conduz-nos pela caminhada difícil e violenta de Babakar Traoré até à Guadalupe, ao Mali, e a Haiti.

A acção decorre sob o jugo colonial onde predominam uma violência extrema, o ódio, o racismo e a corrupção. Babakar, como médico obstetra, vai viver intensamente os golpes militares, o exílio, o massacre de pessoas indefesas e só sobrevive porque a amizade e o amor conseguem sobrepor-se a todas as situações de abuso, de dor e de tristeza.
Ao longo da narrativa estão bem patentes as “feridas do colonialismo”, das guerrilhas e do racismo. Cito apenas um exemplo:

– Para o Haiti? Não há nada para comer nesse país. Além de fazerem vodu, os negros e os mulatos odeiam-se e matam-se uns aos outros.
- Isso não é novidade. Estou habituado a conflitos – assegurou-lhe. – Não te esqueças de que vivi durante anos a braços com uma guerra civil absurda.” (pp. 60 e 61)

Numa escrita que mescla o realismo mágico e o religioso das crenças locais, Maryse Condé relata-nos o drama de várias personagens, o deslocamento de famílias, a devastação de países (a guerra civil no Mali, a guerra do Líbano, a destruição política e os desastres naturais do Haiti) e o massacre de “gentes rivais” e importunas.

A narrativa comovente e profundamente humana, onde nada é maquilhado, vai evoluindo ao ritmo das (in)decisões de Babakar, das reflexões, das memórias e das conversas entre as personagens que ajudam a caracterizá-las psicologicamente. Contudo, e no meio do caos, da miséria, da violência e da perda de bens e de pessoas amadas, reside uma fagulha de esperança que move o protagonista e os seus dois amigos a nunca desistirem e a lutarem nas adversidades, nem que para isso seja necessário partir, de novo.

É um livro actualíssimo e doloroso que recomendo muito. Um livro que não nos deixa indiferentes e que nos obriga a reflectir sobre o ser humano.



03 fevereiro, 2025

A Complete Unknown, de James Mangold


2024 | 141m | Drama | M12 | Estados Unidos da América
Realizador: James Mangold
Elenco: Timothée Chalamet, Edward Norton, Boyd Holbrook 


Nova Iorque, 1961. Tendo como pano de fundo um panorama musical vibrante e a agitação cultural da época, um enigmático jovem de 19 anos do Minnesota chega à cidade com a sua guitarra e um talento revolucionário, destinado a mudar o rumo da música americana. Ao longo da sua ascensão meteórica, estabelece relações chegadas com ícones da música em Greenwich Village, culminando numa atuação inovadora e controversa que se repercute por todo o mundo. Timothée Chalamet protagoniza e canta, no papel de Bob Dylan, em "A Complete Unknown", de James Mangold, a história verídica e eletrizante por detrás da ascensão de um dos mais icónicos cantautores de sempre.


Opinião:

Adorei reviver músicas famosos de Bob Dylan, Joan Baez, Pete Seeger e até Johnny Cash.
Timothée Chalamet é notável no papel de Bob Dylan. O filme retrata magnificamente as múltiplas identidades do início de carreira do famoso compositor e cantor de folk, bem como demonstra as suas relações e a influência de outros músicos que já citei.

A Complete Unknown, verso de uma música sua, descreve bem a personagem que surge no filme apenas com uma mochila e uma guitarra e que sendo completamente desconhecido vai transformar a música folk. 



01 fevereiro, 2025

Sei para onde vou ...

 


Sempre chegamos ao sítio aonde nos esperam” (Saramago) e, assim, hoje, é o primeiro dia do resto da minha vida.

Foram 44 anos letivos de dedicação à Escola Pública (42 anos, 5 meses, 27 dias para efeitos de aposentação, já que deduziram os dias dos horários incompletos e das colocações tardias, mas esqueceram-se de adicionar as horas extraordinárias – as efectivas e as outras) e prolongaram   até ao limite do prazo (3 meses) a análise do processo (trabalhei mais dois meses para além da data prevista).

Sempre quis ser professora. Sempre amei a minha profissão. Confesso que nem sempre foi fácil, mas no balanço final guardo sobretudo as conquistas.
Chegou o tempo de dar o meu lugar a outro/a professor/a. Ninguém é eterno. Ninguém é insubstituível. O governo, numa tentativa de colmatar o problema de falta de professores, ainda, acenou com a possibilidade de continuar e em troca “oferecia-me” até 750€. Porém, este mesmo governo esqueceu-se de que também eu tive, durante cerca de seis anos a carreira congelada. Os meus colegas vão ter, e muito bem, a recuperação desse tempo, mas quem se encontra, como eu, no topo da carreira, não recebe nada em compensação. Repito, NADA. Por isso, é mais do que evidente que não continuarei no activo, não aceitarei “a esmola” dos 750€. Gostaria de ser reconhecida pelo trabalho que desenvolvi e compensada pelo tempo TODO que trabalhei. Há formas de o fazer (redução no tempo para aposentação, compensação monetária, aumento do vencimento, …), basta querer, basta haver vontade e criatividade políticas.

Ao longo destes anos “vivi” em várias escolas, pelo país. Uma, lembrarei para sempre como a minha “segunda casa”. Nela cresci, amadureci e me apaixonei pelo meu/nosso poeta, Al Berto.

Leccionei várias disciplinas/áreas disciplinares (francês, técnicas de tradução de francês, português, área de projecto, estudo acompanhado, educação cívica e LLED) e desempenhei muitas funções e vários cargos. Uns mais fáceis, outros bem menos, uns mais divertidos, outros nem tanto, mas desempenhei-os sempre com sentido de responsabilidade e muito empenho. Errei como todo o ser humano, mas dei sempre o meu melhor.

Ao longo destes anos conheci, lidei e convivi com muitas, muitas pessoas: alunos, professores, técnicos especializados, assistentes técnicos, assistentes operacionais, pais e encarregados de educação, entre outras de diversas instituições, profissões, parcerias…

No meu coração guardo muitas, muitas mesmo, que não citarei, como compreenderão. Nesta minha travessia houve, e ainda há, pessoas maravilhosas com quem aprendi, diariamente; com quem partilhei conhecimentos, ensinamentos, gargalhadas, sorrisos, tristezas, desabafos, abraços, fotografias, livros, leituras, muitas leituras, …; com quem continuarei a aprender e a partilhar…

A TODAS o meu ENORME agradecimento e carinho.
Saberei manter vivas as boas memórias. As outras, já as abandonei pelo caminho.

Até breve… vou continuar por aí… ao contrário de José Régio, sei por onde vou…

A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou…
Não sei para onde vou,
Não sei para onde vou
—Sei que não vou por aí! (Régio)

GR


26 janeiro, 2025

𝑭𝒐𝒓𝒕𝒖𝒏𝒂, 𝑪𝒂𝒔𝒐, 𝑻𝒆𝒎𝒑𝒐 𝒆 𝑺𝒐𝒓𝒕𝒆, de Isabel Rio Novo


Autora: Isabel Rio Novo
Título: Fortuna, Caso, Tempo e Sorte
N.º de páginas: 727
Editora: Contraponto
Edição: Junho 2024
Classificação: Biografia
N.º de Registo: (3596)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐


No ano em que celebramos os 500 anos do nascimento de Camões, Isabel Rio Novo oferece-nos - Fortuna, Caso, Tempo e Sorte - um livro fascinante que revela um conhecimento profundo do homem e do poeta. O rigor da extensa e minuciosa pesquisa permite-lhe coligir informação dispersa, relacionar fontes já conhecidas, referenciar excertos, poemas, obras, clarificar aspectos pouco aprofundados ou imprecisos e apresentar dados novos. E quando não lhe é possível afirmar com certeza, por falta de dados, a autora interpela o leitor a imaginar a situação ou a decidir por si próprio. Aprecio esta interacção com o leitor, já manifestada numa outra biografia também de sua autoria, já que estabelece uma relação de cumplicidade.

Esta biografia dá a conhecer o homem e o poeta genial que escreveu a obra maior da nossa Literatura – Os Lusíadas. Mas desvenda, sobretudo, o homem de armas, o soldado que lutou com uma espada, que foi um “homem do seu tempo” com os seus “erros, má fortuna e amores ardentes”. Mas não nos iludamos, Camões foi bem mais do que isso e Isabel Rio Novo deixa-o bem claro nas suas páginas que o leitor lê como se fosse um romance.

Se já considerava Camões um dos meus poetas preferidos, agora que deslindei os detalhes de uma vida atribulada e intensa, plena de dificuldades e contradições; que verifiquei o seu entusiasmo e a sua curiosidade em aprender, estudar, ler  autores clássicos e outros do seu tempo; que confirmei a sua prodigiosa capacidade de escrever para si e para outros (por encomenda), de manejar a espada, de conquistar damas da corte e mulheres dos prostíbulos; que aprofundei o meu conhecimento da sua obra; agora, como referia, encaro-o e leio-o com mais admiração. Só lamento, não a vida miserável que teve, porque sendo um homem do seu tempo, outros a viveram e ele próprio a provocou, mas, lamento, os poemas, as obras que, certamente, se perderam no decorrer das suas desventuras.

Concluo, convidando-vos a descobrir esta belíssima obra escrita de forma exímia pela Isabel Rio Novo que tão bem soube elevar a beleza e a genialidade do poeta e demonstrar as fragilidades e infortúnios do homem que viveu “um momento excecional da história da humanidade” e nos deixou um legado literário único e extraordinário.


25 janeiro, 2025

Ainda Estou Aqui, de Walter Salles

 

2024 | 136 min | Drama, Policial | M/12 | França, Brasil
Direção: Walter Salles
Elenco: Fernanda Torres, Fernanda Montenegro, Selton Mello



Com a interpretação de Eunice, Fernanda Torres tornou-se a primeira actriz brasileira a ganhar um Globo de Ouro – depois de, 25 anos antes, a sua mãe, Fernanda Montenegro (que aqui interpreta a mesma personagem na velhice, já com sinais da doença de Alzheimer​), ter sido nomeada com o filme Central do Brasil, também de Walter Salles e vencedor na categoria de melhor filme estrangeiro.


Opinião

A sétima arte tem o poder de fazer coexistir o horror e a beleza. Em Ainda Estou Aqui está reflectida a realidade de um país que vive o medo da tortura e da morte sob o jugo de uma ditadura militar (1970), bem como a luta pelos direitos humanos e o amor à vida.

Walter Salles oferece-nos uma emotiva recriação de Eunice Paiva (interpretada magistralmente por Fernanda Torres) esposa do deputado Rubens Paiva, desaparecido e morto durante a ditadura militar.

Ao longo de duas horas e alguns minutos acompanhamos suspensos a transformação de Eunice que, enquanto lida com o processo que envolve o desaparecimento do marido, tem de desempenhar a difícil tarefa de ser mãe de cinco filhos. Eunice é uma mulher de garra que se entrega intensamente à luta pela verdade. São brutais os momentos em que a protagonista, vivendo no sofrimento de (mais) uma revelação, tem de sorrir ou acudir a um dos filhos.

Fernanda Torres é fabulosa na interpretação de Eunice Paiva. Não há exageros, não há exploração das situações. Pelo contrário, há silêncios, olhares, sorrisos, muita sensibilidade. Há a demonstração da importância de manter viva a memória de um passado violento e de alimentar a reflexão sobre um legado que ainda ecoa na sociedade brasileira, mas não só.




23 janeiro, 2025

A Verdadeira Dor, de Jesse Eisenberg

 


2024 | 90 min | Comédia Dramática | M/12 |  EUA, Polónia
Realização: Jesse Eisenberg
Elenco: Olha Bosova, Banner Eisenberg, Kieran Culkin, Jesse Eisenberg



A Verdadeira Dor transporta-nos para a Polónia através do olhar e das emoções de um grupo, mas sobretudo de dois primos, David e Benji, que pretendem descobrir a história da sua família judia e revisitar a cidade onde a avó viveu. Enquanto o grupo viaja por Varsóvia, por Lublin e pelo campo de concentração de Majdanek, assistimos a momentos divertidos e a outros de profunda reflexão sobre o sentido da vida.

Destaco o equilíbrio entre as brincadeiras e o respeito pelos locais visitados. Apesar das piadas e dos comportamentos intempestivos de Benji, que contrastam com o politicamente correcto do seu primo David, acabamos por aceitá-los como momentos de vulnerabilidade emocionais. 

É um excelente filme que aborda a problemática do Holocausto numa perspectiva engraçada, mas profundamente comovente e que nos convida à reflexão.


 


20 janeiro, 2025

Olhares sobre Al Berto | desafio de escrita

 Premissas: 



11.01.2024                                                                                      Sines 


O mar está cor de chumbo. Os barcos ondulam silenciosamente. Eu, sentada no muro da praia, afundo-me em pensamentos e, maquinalmente, acompanho o voo triste de uma gaivota. Também ela sofre com a ausência do sol reflectido no mar intenso.
Seguro o olhar vazio no ponto branco que se afasta. Retenho as lágrimas que contrariam o desconcerto do riso que, subitamente, me assola.
Permaneço (in)quieta perante a (in)certeza do (a)mar. 

GR






19 janeiro, 2025

Eugénio de Andrade | Dia de aniversário (19.Jan. 1923)

 



Procuro-te

Procuro a ternura súbita,
os olhos ou o sol por nascer
do tamanho do mundo,
o sangue que nenhuma espada viu,
o ar onde a respiração é doce,
um pássaro no bosque
com a forma de um grito de alegria.

Oh, a carícia da terra,
a juventude suspensa,
a fugidia voz da água entre o azul
do prado e de um corpo estendido.

Procuro-te: fruto ou nuvem ou música.
Chamo por ti, e o teu nome ilumina
as coisas mais simples:
o pão e a água,
a cama e a mesa,
os pequenos e dóceis animais,
onde também quero que chegue
o meu canto e a manhã de maio.

Um pássaro e um navio são a mesma coisa
quando te procuro de rosto cravado na luz.
Eu sei que há diferenças,
mas não quando se ama,
não quando apertamos contra o peito
uma flor ávida de orvalho.

Ter só dedos e dentes é muito triste:
dedos para amortalhar crianças,
dentes para roer a solidão,
enquanto o verão pinta de azul o céu
e o mar é devassado pelas estrelas.

Porém eu procuro-te.
Antes que a morte se aproxime, procuro-te.
Nas ruas, nos barcos, na cama,
com amor, com ódio, ao sol, à chuva,
de noite, de dia, triste, alegre - procuro-te.


Eugénio de Andrade




13 janeiro, 2025

Falta-me tempo ...

 



Senhor da Asma

deitado há muito tempo - o cigarro luzindo
como um olho de tigre vindo da noite e
lá fora
ainda se percebe a húmida incandescência das frésias
o rumor surdo de vozes pelo jardim onde
a florida macieira se recorta no intenso céu de verão.

mais além
o rouxinol a madressilva
a sebe de pilriteiros
a brisa de um mar invisível - aflora-te a boca
arde no coração
a memória álgida dos limos dos casinos das praias
saturadas de sal e de sedução

mas nada é perfeito - nem o magnífico chapéu
de mademoiselle de noailles nem os dias que
aos ziguezagues vão passando iguais e monótonos
falta-me o tempo para procurar o tempo perdido
e não estou deitado na recordação da infância
confesso
que odeio escrever cartas ou enviar recados

ando há uma semana arrumando livros - comovido
acabei agora mesmo de sacudir
o pequeno novelo de poeira acumulada
no interior das páginas do senhor da asma

por hoje é tudo


Al Berto



11 janeiro, 2025

Al Berto | Dia de aniversário (11.Jan.1948)


 



 


ELE bebe vinho, pousa as palavras lentamente, semeia-as no interior do caderno de capa preta
sente a resinadas árvores nos dedos, a língua enegrecida pelo desejo
lambe as ervas reclinadas dos campos, as coxas abertas da noite, o orvalho nasce-lhe da boca
     qualquer coisa continua a explodir , amarinha-me pelo ventre
um astro de paredes frias por onde enfio o sexo... todos os buracos do texto se enchem de lava
são longos caminhos aveludados
o puto vomita, nenhum som na amanhã que aconteceu..., 
a língua continua impregnada de ópio esquecido, sono das papoulas, madrugada de crianças geométricas
do outro lado da cidade, aquele onde não vivemos, tudo acordou normalmente   

   
  




05 janeiro, 2025

𝑴á𝒒𝒖𝒊𝒏𝒂 𝒅𝒆 𝑬𝒔𝒄𝒓𝒆𝒗𝒆𝒓 𝑺𝒆𝒏𝒕𝒊𝒎𝒆𝒏𝒕𝒐𝒔, de Inês Meneses

 


Autora: Inês Meneses
Título: Máquina de Escrever Sentimentos
Ilustradora: Maria Inês
N.º de páginas: 79
Editora: Contraponto
Edição: Novembro 2023
Classificação: Textos/Poesia
N.º de Registo: (3593)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


Este pequeno livro em número de páginas e em formato fez-me companhia nos últimos dias do ano e nos dois primeiros deste novo. O dia 2 é, para mim, um dia de memórias tristes e este livro funcionou como uma terapia, como “uma cadeia mágica entre mães e filhas”, como escreveu a autora na sua dedicatória. Vou guardá-lo na minha mesa-de-cabeceira porque é um livro sobre emoções, sentimentos, memórias, saudades e descobertas ao qual voltarei sempre que a urgência de carregar energias me desassossegar.  

Máquina de Escrever Sentimentos é-nos apresentado em forma de “diário”, sem data, apenas ordenado numericamente, sem qualquer ordem específica. São 111 textos curtos sobre sentimentos, reflexões, pensamentos, inquietações e constatações. Uns escritos normalmente, com frases destacadas a negrito, outros destacados com letras enormes, alguns complementados por ilustrações belíssimas de Maria Inês, a sua filha. A título de exemplo, o texto 42, contém 6 palavras e ocupa três linhas de uma página e diz o seguinte em letras enormes “ As mães deviam viver para sempre.” (p. 30) Bonito sentimento com o qual me identifico e que é o motor deste maravilhoso livro.  
Estamos perante uma escrita sensível, sincera e poética que transborda de emoções, que partilha manifestações de amor, de carinho, que luta contra a dor da perda, que tece as “Saudades de desenhar no frio da manhã, as palavras que nunca verbalizei. Há palavras que só ficam escritas na nossa cabeça.” (35 – p. 24)

Inês Meneses expõe de forma exímia o seu mundo. O mesmo mundo que partilhou com a mãe e que agora inclui a filha, a quem lega ensinamentos que foi inferindo: “Foi preciso ser crescida para descobrir qua amo a natureza e que as lições de vida começam e acabam nela. Vamos cheios de pressa a lado nenhum.” (98 – p. 69).
Estes textos, aparentemente simples, que também expõem os nossos mundos, confundem-nos positivamente a alma, avivam-nos saudades, memórias bonitas, dolorosas e, sobretudo, destacam-nos a importância do amor, da amizade, da descoberta de si-próprio, do papel da natureza na vida humana.