18 junho, 2025

Faz 15 anos (18.06.2010)

 



Não me Peçam Razões...

Não me peçam razões, que não as tenho,
Ou darei quantas queiram: bem sabemos
Que razões são palavras, todas nascem
Da mansa hipocrisia que aprendemos.

Não me peçam razões por que se entenda
A força de maré que me enche o peito,
Este estar mal no mundo e nesta lei:
Não fiz a lei e o mundo não aceito.

Não me peçam razões, ou que as desculpe,
Deste modo de amar e destruir:
Quando a noite é de mais é que amanhece
A cor de primavera que há-de vir.

José Saramago


16 junho, 2025

Um poema de Joaquim Cardoso Dias

 

The Couple | Jennifer Lombardo | 2014




NA LINGUAGEM DE UM AMOR


estas árvores tocam
com as folhas
o murmúrio das searas
os dedos húmidos da paisagem
o branco vivo 
de um pássaro a correr nas mãos

choram o poeta triste
do outro lado da floresta
longe
muito longe dessas terras

esse rio de árvores e de pássaros

levantando no silêncio
todas as suas asas azuis

bebendo do rumor dos beirados
essa luz doente

para adormecer assim
no prolongamento dos ombros
nesses abraços de olhos nos olhos

a mão de tocar outra mão
e um suspiro de ficar sozinho


O Preço das Casas, Joaquim Cardoso Dias 



13 junho, 2025

Al Berto | 13.06.1997

 

                                                              Foto GR - Sines



Cromo


andamos pelo mundo
experimentando a morte
dos brancos cabelos das palavras
atravessamos a vida com o nome do medo
e o consolo dalgum vinho que nos sustém
a urgência de escrever
não se sabe para quem

o fogo a seiva das plantas eivada de astros
a vida policopiada e distribuída assim
através da língua... gratuitamente
o amargo sabor deste país contaminado
as manchas de tinta na boca ferida dos tigres de papel

enquanto durmo à velocidade dos pipelines
esboço cromos para uma colecção de sonhos lunares
e ao acordar... a incoerente cidade odeia
quem deveria amar

o tempo escoa-se na música silente deste mar
ah meu amigo... como invejo essa tarde de fogo
em que apetecia morrer e voltar

Salsugem, Al Berto

Al Berto faleceu em Lisboa no dia 13 de junho de 1997, com apenas 49 anos



12 junho, 2025

𝑫𝒐𝒓 𝒇𝒂𝒏𝒕𝒂𝒔𝒎𝒂, de Rafael Gallo

 


Autor: Rafael Gallo
Título: Dor Fantasma
N.º de páginas: 275
Editora: Porto Editora
Edição: Março 2023
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3685)




OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐




06 junho, 2025

𝑰𝒏𝒇𝒐𝒓𝒕ú𝒏𝒊𝒐𝒔 𝒅𝒆 𝑼𝒎 𝑮𝒐𝒗𝒆𝒓𝒏𝒂𝒅𝒐𝒓 𝒏𝒐𝒔 𝑻𝒓ó𝒑𝒊𝒄𝒐𝒔, de Germano Almeida

 


Autor: Germano Almeida
Título: Infortúnios de um Governador nos Trópicos
N.º de páginas: 223
Editora: Caminho
Edição: Setembro 2023
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3502)




OPINIÃO ⭐⭐⭐




30 maio, 2025

𝑨 𝑳𝒆𝒃𝒓𝒆 𝒅𝒆 𝑽𝒂𝒕𝒂𝒏𝒆𝒏, de Arto Paasilinna

 



Autor: Arto Paasilinna
Título: A Lebre de Vatanen
Tradutor: Carlos Correia Monteiro de Oliveira
N.º de páginas: 143
Editora: Relógio d'Água
Edição: Setembro 2009
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3696)





OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


A leitura de A Lebre de Vatanen foi-me proposta pelo clube de leitura – Era uma Voz, de Afonso Cruz. Não conhecia o autor, mas criei grandes espectativas porque, nas várias livrarias (sempre esgotado) a que me dirigi para o adquirir, só me falaram muito bem do autor e dos seus livros.

Parti, assim, à descoberta de Paasilinna com imensa curiosidade. Confesso que fui, de imediato, conquistada. Primeiro, pela escrita e, depois, pela história de Vatanen, o jornalista protagonista que vive em Helsínquia.

Não vou esmiuçar os motivos que o levam a mudar radicalmente de vida. Aconselho que desfrutem da leitura do livro e o descubram por iniciativa própria. Apenas, posso indicar que a partir de certo dia, ele e uma lebre iniciam uma “viagem” por terras finlandesas e com uma incursão na União Soviética, país fronteiriço. São múltiplas as peripécias que ambos vivem, na floresta, nos lugarejos, nas montanhas. São múltiplas as tarefas temporárias que Vatanen vai ter de desempenhar para poder sobreviver. É riquíssima a transformação, sobretudo interior, da personagem. Nem tudo é fácil.

A narrativa contém umas pinceladas de realidade. Por exemplo, Kekkonen foi presidente da Finlândia, durante 26 anos consecutivos, de 1956 a 1982; as localidades citadas; o nome do protagonista “Vatanen” é o nome de um famosíssimo piloto de rali. Poder-se-á intuir que a atribuição deste nome ao  foi intencional, se tivermos em conta algumas aventuras (risco e audácia) descritas e, de certa forma, como uma homenagem ao piloto. (especulação minha)

Na escrita simples e fluída transparecem a beleza da natureza e o rigor do clima nórdicos, mas também a integridade e a audácia de Vatanen. A sintonia entre escrita, natureza e protagonista resulta numa narrativa brilhante e encantadora. Ao longo das páginas e das aventuras somos convidados a questionar-nos sobre as nossas opções de vida; nomeadamente, o respeito pelo outro, pela liberdade individual, mas também, o sentido de responsabilidade para com a natureza, os animais; a solidariedade e a empatia.

Paasilinna, recorrendo, a histórias curtas, umas divertidas, outras mais absurdas, faz uma sátira à vida moderna, à monotonia da rotina das cidades, ao cumprimento de horários, às responsabilidades de um emprego e de uma família, em suma, a tudo aquilo que o acorrenta e sufoca. Em contrapartida, e com sentido de humor, apresenta-nos o renascimento de um homem que, na companhia de uma lebre, descobre um país de contrastes cultural e ambiental, descobre a mesquinhez humana, o desapego do homem para com a natureza, mas também a amizade, a empatia, a solidariedade. As aventuras de Vatanen transformam-se numa viagem de auto-conhecimento, de conquista de liberdade, de amadurecimento.

É um livro que nos faz reflectir sobre o sentido da vida. O que importa realmente. No epílogo, o autor refere-se a Vatanen da seguinte forma: “ a história pessoal de Vatanen e a sua maneira de agir revelam-no como um revolucionário, um ser autenticamente subversivo, e é aí que reside o segredo da sua grandeza.” (p. 142.
Recomendo.



26 maio, 2025

Festival de Cannes 2025

 


A 78.ª Edição do Festival de Cannes decorreu de 13 ao dia 24 de maio de 2025.
A actriz francesa Juliette Binoche presidiu o júri da competição oficial.




Palma de Ouro: Un Simple Accident, de Jafar Panahi 

Grande Prémio: Sentimental Value, de Joachim Trier

Prémio do Júri ex-aequo: Sirât, de Oliver Laxe; Sound of Falling, de Mascha Schilinski

Prémio Especial do Júri: Resurrection, de Bi Gan

Melhor Direcção: Kleber Mendonça Filho, por O Agente Secreto

Melhor Argumento: Jean-Pierre e Luc Dardenne, por Jeunes Mères

Melhor Actriz: Nadia Melliti, por La Petite Dernière

Melhor Actor: Wagner Moura, por O Agente Secreto

Prémio da Crítica (FIPRESCI): O Agente Secreto, de Kleber Mendonça Filho

Prix des Cinémas Art et Essai: O Agente Secreto 

Queer Palm (Láurea LGBTQIAPN+)
: La Petite Dernière, de Hafsia Herzi

Caméra d’Or (Melhor Filme de Estreante): The President’s Cake, de Hasan Hadi (Iraque), com menção honrosa para My Father Shadow

Prix Un Certain Regard: A Misteriosa Mirada do Flamingo, de Diego Céspedes

Palma de Curta-Metragem: I’m Glad You’re Dead Now, de Tawfeek Barhom (Palestina), com menção especial para Ali

Prémio do Júri Ecumênico: Jeunes Mères, dos irmãos Dardenne

Prémio de Cidadania: It Was Just an Accident, de Jafar Panahi

Prémio Ecoprod: Jeunes Mères, dos irmãos Dardenne

Prémio Œil d’Or (Melhor Documentário): Imago, de Déni Oumar Pitsaev



25 maio, 2025

𝑹𝒐𝒎𝒂𝒏𝒄𝒆 𝒅𝒂 𝑹𝒂𝒑𝒐𝒔𝒂, de Aquilino Ribeiro



Autor: Aquilino Ribeiro
Título: Romance da Raposa
Ilustrador: Benjamim Rabier
N.º de páginas: 188
Editora: Bertrand Editora
Edição: Agosto 1996
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3643)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


O clássico juvenil Romance da Raposa, de Aquilino Ribeiro narra as aventuras de Salta-Pocinhas, uma “raposeta matreira, fagueira, lambisqueira - senhora de muita treta”.

Trata-se de uma leitura deliciosa não apenas para as crianças, mas também para os adultos. A linguagem rica e viva do mestre Aquilino Ribeiro aliada a um ritmo e a uma sonoridade musicais (recurso a rimas, métrica e aliterações) e a um sentido de humor apurado fascina o leitor e agarra, seguramente, as crianças (com mais de 10 anos, segundo o autor) com as travessuras da raposinha.

Li este livro há muito, muito tempo. Já não tinha memória de muitas das suas traquinices. Lê-lo, agora, com outro entendimento, é muito mais prazeroso. Deixei-me conduzir pelas palavras desenvoltas e sábias de Aquilino que usa com mestria a matreirice da heroína para criticar a sociedade da sua época. Ora vejamos, a raposa “delambida, atrevida, mas precavida, vai gerir a sua longa vida com o propósito de matar a fome e alimentar a alma, nem que para isso, tenha de enganar homens e bichos, corromper, assassinar e gabar-se orgulhosamente. Metáforas perfeitas que se ajustam, também, aos dias de hoje.

Apenas, acrescentar que esta edição da Bertrand inicia, em jeito de Introdução, com a carta que o autor escreveu ao seu filho Aníbal (Natal de 1924) a explicar por que decidiu escrever este livro. Ficamos, ainda, a saber que retratou a raposa sem falsificações, tal como vem na Fábula do Mestre Esopo.



21 maio, 2025

𝑨 𝑷𝒂𝒊𝒙ã𝒐 𝒔𝒆𝒈𝒖𝒏𝒅𝒐 𝑪𝒐𝒏𝒔𝒕𝒂𝒏ç𝒂 𝑯., de Maria Teresa Horta

 

Autora: Maria Teresa Horta
Título: A Paixão segundo Constança H.
N.º de páginas: 299
Editora: Bertrand Editora
Edição: Novembro 2010
Classificação: Romance
N.º de Registo: (Empréstimo)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


A Paixão Segundo Constança H., de Maria Teresa Horta (MTH), é um romance poderoso e perturbador que mergulha no universo feminino, tal como em toda a sua obra, explorando temas como amor, ódio, loucura, traição, identidade e morte. A narrativa acompanha a paixão de Constança H., e explora a sua transformação emocional após descobrir a traição de Henrique H., o seu marido, levando-a a um estado intenso de emoções e reflexões que lhe permite desenvolver um obsessivo desejo de vingança. A transformação interior de Constança H. é levada ao limite, marcada pela dor da traição e pela obsessão erótica do desejo e do corpo. “ (E o desejo? Que dizer do desejo; sempre a formular o corpo…)” (p.79)

A obra está estruturada por textos breves entre páginas brancas e integra poemas, múltiplas epígrafes colocadas entre parêntesis, títulos e citações de outras obras que espelham paixões, registo de sonhos e de alucinações, cartas ao marido, excertos de diários, referências a obras de escritoras que se alinham com o seu pensamento, como Clarice Lispector, Sylvia Plath, Mariana Alcoforado, Virginia Woolf, Maria Velho da Costa, Marguerite Duras, Florbela Espanca, …
Todos estes fragmentos funcionam como ecos de verdade e evidenciam a fragmentação do “eu”, a busca de identidade perdida na dor que a deixará “consumir pela paixão até ao sangue” (p. 295), a perda e o ódio que a conduzirão à loucura, ao abismo.
“E a dor continuava, tumefacta. A sensação de perda envenenando-a, espalhando a morte dentro de si.
O ódio.
O começo do ódio a engrossar, sem remédio, no seu peito, tentacular, repetitivo (…)”. (p. 23)

Ao longo das páginas, assistimos ao grito dilacerante de uma mulher traída e vulnerável. Assistimos ao medo da sua “desorganização interior”, ao medo dos tratamentos e dos choques eléctricos, ao medo dos seus fantasmas. Assistimos à paixão doentia de Constança H.. Assistimos ao crescendo da sua loucura e ficamos arrasados.

A escrita poética e erótica de MTH é marcada pela sua sensibilidade e pela profundidade com que aborda as relações humanas e os desafios da mulher na luta contra as convenções sociais, nomeadamente na forma de encarar a sexualidade. Ela subverte a ideia de pecado associada ao acto sexual e exalta livremente o corpo e a descoberta do prazer feminino.

Pelo título e pela epígrafe inicial posso intuir que este romance estabelece um diálogo com A Paixão Segundo G.H., de Clarice Lispector. Como ainda não o li, fica a promessa de o fazer brevemente para descobrir as consonâncias e dissonâncias presentes nas duas obras. Vai ser, certamente, uma leitura prazerosa porque também gosto da escrita de Clarice Lispector.


18 maio, 2025

𝑪𝒐𝒎𝒃𝒐𝒊𝒐𝒔 𝑹𝒊𝒈𝒐𝒓𝒐𝒔𝒂𝒎𝒆𝒏𝒕𝒆 𝑽𝒊𝒈𝒊𝒂𝒅𝒐𝒔, de Bohumil Hrabal

 

Autor: Bohumil Hrabal
Título: Comboios Rigorosamnete Vigiados
Tradutora: Anna Almeida
N.º de páginas: 128
Editora: Antígona
Edição: Fevereiro 2022
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3376)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


Com Comboios Rigorosamente Vigiados, Bohumil Hrabal transporta-nos para uma pequena estação ferroviária Checa. Decorria o ano 1945, mais concretamente, os últimos dias da ocupação alemã da Segunda Guerra Mundial.
A narrativa acompanha o desenrolar diário das tarefas do chefe da estação, do sinaleiro, da telegrafista e do aprendiz que, entre chegadas e partidas de comboios, uns mais rigorosamente vigiados que outros, vão vivendo episódios de rotina, de resistência, entre outros bem divertidos e inesperados que vos convido a descobrir.

Apesar de pequeno, o livro é intenso pela forma como o autor aborda a vida destas personagens e nos narra o enquadramento histórico da ocupação, mas sobretudo da resistência e da coragem de alguns habitantes, nomeadamente, do jovem aprendiz, Milos Hrma, tal como o seu avô o fizera antes.
“O meu avô foi andando estrada fora com os olhos fixos no primeiro tanque, que encabeçava a guarda avançada daquelas tropas motorizadas (…)” (p. 11)
Poder-se-à intuir que o autor checo pretendeu erigir um louvor à resistência patriótica ao fazer explodir um comboio dos ocupantes nazis que transporta armamento, é bem possível, mas penso também, que ao dar relevo, com muito humor, à iniciação sexual do jovem aprendiz , destaca a idade com que muitos jovens participavam na guerra.

Sendo um livro que aborda questões relacionadas com a ocupação alemã, acaba por se tornar numa leitura saborosa porque os assuntos são tratados com subtileza e inteligência.
A escrita simples, mas profunda, flui agradavelmente. Sorrimos perante as hilariantes, porque inesperadas, histórias vividas na pacata estação.

15 maio, 2025

𝑪𝒂𝒓𝒕𝒂 𝒂 𝑩𝒐𝒔𝒊𝒆, de Oscar Wilde

 


Autor: Oscar Wilde
Título: Carta a Bosie
Tradutora: Maria Célia Coutinho
N.º de páginas: 108
Editora: Nova Vega
Edição (3.ª): 2022
Classificação: Cartas
N.º de Registo: (3564)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐



Albert Camus referiu-se a esta carta como “um dos mais belos livros que nasceram do sofrimento de um homem. Concordo inteiramente e vou tentar expor a minha apreciação.

Carta a Bosie é um texto de grande carga emocional e filosófica. Escrita durante o seu encarceramento em Reading, condenado por sodomia, é um enorme desabafo de introspecção e dor, mas também de lucidez e auto-conhecimento. Oscar Wilde expõe, de forma brutalmente honesta, as suas reflexões sobre o amor, a traição, o ódio, o sofrimento, a arte e a espiritualidade, além de nos facultar uma análise profunda sobre a sua relação com Lorde Alfred Douglas, isto é, Bosie.
Famoso e reconhecido pelo seu talento, Wilde apaixonou-se perdidamente por Douglas, um jovem vaidoso e mimado de hábitos caros, sofisticados e fúteis.

A sua escrita funciona como uma catarse, um modo de lidar com a humilhação, o sofrimento e a perda (“perdera o nome, a posição, a felicidade, a liberdade, a riqueza” e a mulher e os filhos). A angústia é palpável e intui-se como a desgraça de estar preso molda a sua visão sobre a vida, o amor e até sobre si próprio. A honestidade das palavras torna a crítica dirigida a Bosie, muito feroz. Wilde descreve-o como ingrato, egoísta, preguiçoso e como a principal causa da sua ruína “tanto do ponto de vista intelectual como ético”.

Carta a Bosie reflecte uma análise brutal sobre o amor, o poder e a manipulação. Wilde percebe que a sua devoção não foi correspondida de forma sincera e que Bosie se aproveitou tanto do amor que lhe foi dedicado como dos privilégios (estatuto e dinheiro) que essa relação lhe proporcionou. Essa revelação, aliada ao sofrimento físico e emocional do período na prisão, torna a carta ainda mais angustiante e implacável.

Wilde, exausto e devastado, não se poupa na crítica, lamenta não apenas a sua derrocada, mas também a cegueira que o impediu de perceber, em tempo útil, a verdadeira natureza daquele relacionamento. Mas, ao mesmo tempo, demonstra um certo desejo de que Bosie possa transformar-se. Wilde oscila entre o desencanto e a esperança, entre o rancor e o arrependimento, entre a racionalidade de quem vê a verdade e a fragilidade de quem ainda acredita no poder do amor.
"As pessoas cujo desejo é o da sua própria realização nunca sabem para onde estão a caminhar (…) conhecer-se a si próprio. Esta é a primeira realização do conhecimento. Mas reconhecer que a alma de um homem é incognoscível é a última realização da sabedoria. O mistério último somos nós próprios.” (p. 81)

Em suma, esta carta tão fascinante, tão intensa e pessoal é um testemunho poderoso de dor, arrependimento e reflexão, e um dos textos mais marcantes da literatura auto-biográfica. Wilde parece alcançar algum alívio ao expor a sua dor e a sua frustração, como se ao verbalizar tudo finalmente conseguisse distanciar-se emocionalmente da relação. No fundo, Wilde não escreve apenas sobre Bosie, mas sobre si próprio, sobre a sua ingenuidade e a necessidade de encontrar sentido no sofrimento.


12 maio, 2025

𝑨 𝑸𝒖𝒆𝒅𝒂 𝒅𝒖𝒎 𝑨𝒏𝒋𝒐, de Camilo Castelo Branco

 


Autor: Camilo Castelo Branco
Título: A Queda dum Anjo
N.º de páginas: 175
Editora: Aletheia / Expresso
Edição: Julho 2016
Classificação: Novela
N.º de Registo: (3057)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐


Actualíssimo. A sátira dos costumes políticos e sociais em A Queda dum Anjo (1865) assenta como uma luva nos dias de hoje.

Calisto Elói de Silos e Benevides de Barbuda, 44 anos, morgado transmontano conservador e de verve erudita é o protagonista. Amante dos clássicos ocupa o seu tempo mergulhado nos livros antiquíssimos, fechado na sua biblioteca. Eleito deputado pelo círculo de Miranda muda-se para Lisboa e deixa a sua mulher e prima, a morgada D. Teodora Barbuda de Figueiroa, na terra a cuidar dos bens.
O deputado conservador e defensor do passado, acérrimo crítico ao progresso e às inovações e modas causou grande impacto no Parlamento aquando da sua primeira intervenção. Aplaudido por uns e gozado por outros quer pela linguagem quer pela aparência, Calisto não se intimida, quando um deputado opositor “lhe observou o arcaísmo do traje” e outro gozou com “as botas aguçadas no bico”. Cala-os com sabedoria e ironia.
“Estas passagens, significativas do salgado espírito do provinciano, sobredoiravam a reputação que o trazia nas boas graças da fidalguia realista.” (p. 38)

Com o decorrer da sua estada em Lisboa, Calisto, o anjo, vai perder a pureza da vida provinciana e vai tornar-se homem, ao deixar-se moldar pelos costumes que imperam na capital. Vai envolver-se numa relação com uma viúva, ainda prima afastada, oriunda do Brasil e sucumbe aos vícios da modernidade, deixando-se corromper pelo luxo e pelo prazer.

A temática desta obra centra-se em dois aspectos, na minha opinião.
O primeiro, centra-se na vacuidade do discurso parlamentar e nos excessos linguísticos que evidenciam a presunção de certos deputados, como o Dr. Libório de Meireles. Este tipo de “retórica florida” que indispõem e irritam o protagonista, permite a Camilo Castelo Branco ridicularizar os deputados sem moral e sem talento. Vejamos como ele se serve de Calisto, que diz as coisas à moda velha, com correcção e saber, no parlamento:
“(…) Tomo a liberdade de perguntar a V. Ex.ª se as locuções repolhudas do ilustre colega são parlamentares; e, se o são, peço ainda a mercê de se me dizer onde se estudam tais farfalhices.” (p. 50).
O segundo, foca-se na fragilidade e imperfeição humanas em relação às ideologias individuais e colectivas, mas também à natureza dos casamentos sem amor e às paixões amorosas.
Calisto, o morgado que casara sem amor com uma prima, senhora escrupulosa nos seus deveres domésticos para com o marido e a casa, sempre combateu os seus impulsos de jovem refugiando-se, excessivamente, nas suas leituras. Porém, em Lisboa, acaba por ceder aos impulsos do coração. Conhece, finalmente, o amor e experimenta o ciúme e o desprezo.
“ (…) sentiu no lado esquerdo do peito, entre a quarta e a quinta costela, um calor de ventosa, acompanhado de vibrações elétricas, e vaporações cálidas, que lhe passaram à espinha dorsal, e daqui ao cérebro, e pouco depois a toda a cabeça, purpureando-lhe as maçãs de ambas as faces com o rubor mais virginal.” (p. 73)
(Não é uma descrição maravilhosa? Eu adorei!)

O “anjo” desprezado, perde todas as suas convicções. Até que surge na sua vida a viúva Ifigénia, também ela mal-amada e desamparada.
É neste processo de transformação que a auto-ironia do autor se evidencia, facto que enriquece sobremaneira a narrativa.

Camilo Castelo Branco interpela amiúde o leitor e leva-o a uma identificação com o protagonista, tornando-o cúmplice. Com esta estratégia, pretende mostrar que a queda do anjo é, afinal, a libertação de Calisto, o caminho da felicidade e não da imoralidade.
“Na qualidade de anjo, Calisto sem dúvida seria mais feliz; mas na qualidade de homem a que o reduziram as paixões, lá se vai concertando menos mal com a vida.” (p. 175).
Esta citação final revela evidentes marcas pessoais.

Concluo, reafirmando o meu deleite em ler CCB. Considero-o exímio na novela passional e na sátira social do Romantismo português.


09 maio, 2025

A Agulha bailarina e o Piano encantador

 

 Foto criada por IA - Copilot | 9.05.2025

                                                 

     Na sala de estar de uma casa acolhedora, iluminada pelo suave brilho do amanhecer, onde o aroma de chá perfuma o ar e as paredes guardam memórias de gerações, vive um piano imponente de madeira polida, com teclas de marfim brilhantes que já sentiram o toque de várias gerações. Ele é o coração do espaço, reverenciado pela sua capacidade de evocar emoções profundas.
     Ao lado, numa pequena cesta de costura repousa um bastidor com um bordado e uma agulha pequena, silenciosa e presa no tecido.
Nessa casa, as mãos que enfiam, movem e orientam a agulha são as mesmas que acariciam e dedilham as teclas de marfim. Mãos finas, alegres e cheirosas. As mãos de Maria Eduarda, a senhora da casa.
     A agulha e o piano gostam delas, sentem-se embevecidos perante tanta agilidade e segurança.
     Porém, certo dia, ambos pressentem um nervosismo e uma desmesurada insegurança: a agulha ora fica suspensa e pensativa, ora desliza e cai; o piano, maltratado, solta sons irregulares, desafinados. Esta desorientação prolonga-se no tempo, até que, uma manhã, a sala permanece sombria e    silenciosa.

    A agulha que sempre aspirou a ser bailarina ao som do piano que tanto admira e, secretamente, inveja, suspira de inacção e tédio. O piano, por sua vez, sente-se inútil e solitário. As suas teclas há muito que não ressoam melodias, que não são acariciadas, que não ouvem aplausos.

     Cansada de esperar, a agulha começa a treinar alguns passos de dança, em bicos de pé e devagarinho salta para a direita, salta para a esquerda, experimenta o plié, o tendu, o rond de jambe… Suspira e recomeça…
    Mas, certo dia, enquanto ensaia os seus passos sobre o pano de bordado esticado, ouve um gemido, um som mágico vindo do piano, ali mesmo ao seu lado. É uma melodia triste e encantadora. A agulha bailarina não resiste — salta para o chão de madeira e desliza até ele, atraída pela música como se fosse um apelo do destino.
    - Olá, senhor Piano, diz a agulha, numa voz fina, mas firme.
O piano surpreendido, suspende os seus sons, e responde gentilmente.
     - Olá, senhora Agulha. O que a traz até mim?
   - Ouvi a sua música e não resisti. Sabe, estou angustiada porque não tenho ninguém com quem conversar, nem nada para fazer. Farta de ficar presa, até já comecei a treinar uns passinhos de dança para ocupar o tempo e sacudir o corpo. Se não for assim, enlouqueço e …
   - Pois é… sinto o mesmo, atalhou o piano. Confesso que ouvi uma certa agitação e foi por esse motivo que comecei a mover as teclas.
  - Importa-se que suba até aí para conversarmos melhor? Pergunta a agulha.
  - Suba, suba. Terei todo o prazer em conhecê-la. Retorque o piano, esboçando um sorriso.
     A Agulha esguia e graciosa, não se faz rogada, sobe por aí acima e, sem resistir, começa imediatamente a esboçar uns passinhos hesitantes…
Nesse instante, Piano, o velho cavalheiro, sente algo que jamais havia sentido. A pequena Agulha, com a sua elegância delicada de movimentos leves, desliza sobre as suas teclas como uma estrela num céu escuro, transformando cada nota num afago melodioso, numa poesia viva.

    Nesse dia, entre uma Agulha e um Piano nasceu uma amizade improvável, assente na cumplicidade e no desejo de manter vivo o que, inexplicavelmente, se tornou sombrio.
  Dia após dia, semana após semana, a Agulha bailarina e o Piano encantador tornam-se inseparáveis. Ela dança, ele toca. Ele tange, ela baila. Ele afina-se, ela eleva-se. Juntos compõem harmonias que ecoam pela sala desabitada.

   E assim, juntos, emergem por entre as cortinas da solidão e do abandono, da dor e do luto. Juntos criam a mais bela dança, uma sinfonia de amor entre a música e o movimento. Um amor selado na melodia do tempo.




A agulha bailarina
improvisa e treina
voltas e reviravoltas

intensamente

O piano encantador
desafina a dor
nas teclas brancas e pretas

perdidamente

A agulha e o piano
juntos
tocam e volteiam
melodias breves e soltas

apaixonadamente


GR

08 maio, 2025

Conclave, de Edward Berger

 

2024 | 120 m | Suspense | M12 | Reino Unido e Estados Unidos
Realizador: Edward Berger
Argumento: Peter Straughan, Robert Harris
Elenco: Ralph Fiennes, Stanley Tucci, John Lithgow, Isabella Rossellini 


Conclave, do realizador Edward Berger (“A Oeste Nada de Novo”), mostra-nos um dos acontecimentos mais sigilosos e antigos do mundo - a escolha de um novo Papa. O Cardeal Lawrence é encarregue de dirigir este processo secreto após a inesperada morte de um Papa muito estimado. Com os líderes mais poderosos da Igreja Católica de todo o mundo reunidos e encerrados entre as paredes do Vaticano, Lawrence encontra-se no centro de uma conspiração e descobre um segredo que poderá abalar os alicerces da Igreja.

Conclave recebeu oito nomeações ao Óscar 2025, incluindo Melhor Filme e venceu Melhor Argumento Adaptado; seis nomeações aos Globos de Ouro 2025, incluindo Melhor Filme de Drama e venceu Melhor Argumento, e 12 nomeações ao BAFTA 2025, onde venceu como Melhor Filme e Melhor Argumento Adaptado.


Opinião:

Edward Berger adapta o romance de Robert Harris e cria um filme impressionante, focando-se na intriga decorrente do processo de escolha de um novo papa. O cardeal Thomas Lawrence (Fiennes), como decano, dirige o conclave e vê-se envolvido nos segredos e escândalos que se abatem sobre vários cardeais candidatos.

O filme apresenta uma excelente conjugação entre o desempenho das personagens e o enredo que levanta questões de moralidade  sobre a estrutura e o poder da Igreja, a ambição e a verdadeira fé. Mostra os conflitos internos sobre o processo de selecção que ocorre no Vaticano  e destaca os jogos de influência bem intrincados, plenos de rivalidades. Assistimos a uma exploração profunda da fé, do interesse e da ambição de cada um, na medida em que o filme proporciona uma reflexão sobre a transparência das atitudes e das decisões.  

A banda sonora e a fotografia elevam a atmosfera tensa que se verifica durante a investigação e as votações.


04 maio, 2025

Para Sempre | Carlos Drummond de Andrade







Por que Deus permite
Que as mães vão-se embora?
Mãe não tem limite
É tempo sem hora
Luz que não apaga
Quando sopra o vento
E chuva desaba

Veludo escondido
Na pele enrugada
Água pura, ar puro
Puro pensamento
Morrer acontece
Com o que é breve e passa
Sem deixar vestígio

Mãe, na sua graça
É eternidade
Por que Deus se lembra
Mistério profundo
De tirá-la um dia?

Fosse eu rei do mundo
Baixava uma lei
Mãe não morre nunca
Mãe ficará sempre
Junto de seu filho
E ele, velho embora
Será pequenino
Feito grão de milho



29 abril, 2025

𝑻𝒓𝒊𝒆𝒔𝒕𝒆, de Daša Drndić

 


Autora: Daša Drndić
Título: Trieste
Tradutor: António Pescada
N.º de páginas: 419
Editora: Sextante Editora
Edição: Setembro 2019
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3603)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐


Trieste, de Daša Drndić, é uma obra monumental que mescla ficção e factos, oscilando entre a verdade cruel e a vida sentimental de Haya Tedeschi. É mais uma perspectiva sobre o impacto do Holocausto, numa abordagem profunda e inovadora que nos obriga a reflectir sobre as cicatrizes deixadas pelo passado nazi. Drndić escava a memória para nos mostrar a importância de recordar para que a história não se repita.

A narrativa conta a história da protagonista, Haya Tedeschi, uma mulher italiana e judia que espera durante 62 anos o regresso do seu filho raptado pelas SS. Mas a autora não se fica, apenas, pelo percurso de Haya, constrói um mosaico pormenorizado sobre a presença e a actuação alemãs na Itália e os seus impactos quer nas pessoas quer nas localidades com a ascensão do nazismo. A trama expande-se incluindo fotografias, listas de vítimas de judeus deportados e assassinados, testemunhos de oficiais transcritos dos julgamentos, e relatos de atrocidades perpetuadas pelos nazis.

Drndić apresenta-nos, de forma crua e directa, uma experiência literária intensa, perturbadora e comovente, desafiando o leitor a confrontar a fragilidade da memória com a repetição dos mesmos erros e com a impunidade daqueles que os cometem. Drndić destaca testemunhos que exemplificam a forma como a responsabilidade pode ser diluída, distorcida e mesmo anulada no discurso de quem cometeu crimes horríveis.

Gostei da abordagem à memória dos julgamentos. A forma como Trieste expõe os testemunhos e os documentos históricos lembra muito a análise do julgamento de criminosos nazistas que Hannah Arendt empregou em Eichmann em Jerusalém. Há uma ressonância evidente com o pensamento de Arendt, especialmente na questão da banalidade do mal.

Trieste é um livro exigente que requer uma imersão completa do leitor e a necessidade de, em certas descrições, respirar profundamente. A maneira como a autora incorpora informação, documentos, testemunhos atribui um peso emocional e perturbador à narrativa.


23 abril, 2025

Ler a Liberdade


O grupo de leitores de Uma Casa Sem Livros esteve ontem reunido para falar de livros, de poesia, de música, de liberdade. As autoras em destaque foram Maria Teresa Horta, Maria Velho da Costa e Maria Isabel Barreno. Três Marias, três Mulheres que lutaram para que nós, mulheres, possamos, hoje, estar reunidas e falar livremente.

Apresentámos as nossa leituras, lemos excertos e poemas e ouvimos o poema "Segredo" cantado por Cristina Branco.
Os livros lidos pelos presentes e discutidos foram os seguintes:
As Novas Cartas Portuguesas, das três autoras;
A Desobediente - biografia de MTH, de Patrícia Reis
Minha Senhora de Mim; A Paixão Segundo Constança H.; As Luzes de Leonor, de Maria Teresa Horta;
Maina Mendes e Lucialima, de Maria Velho da Costa;
De Noite, Maria Isabel Barreno.

Hoje, dia 23, celebramos O Dia Mundial do Livro, objecto que nos faculta conhecimento; daqui a dois dias celebraremos a Liberdade que nos permite falar, ver e ouvir.
Vivemos dias conturbados, estranhos, não podemos permitir o regresso a um país triste, vestido de cobardia e hipocrisia.

O verso de Sophia ressoa, outra vez, com urgência: "Vemos, ouvimos e lemos não podemos ignorar".

Viva a Leitura. Viva a Liberdade.

Nota: hoje, no auditório durante a representação de Uma peça de teatro, ouvi a actriz clamar que "A Liberdade é a cedilha da palavra esperança!" E eu gostei porque quero acreditar que assim é.



Segredo | Maria Teresa Horta

Não contes do meu
vestido
que tiro pela cabeça
nem que corro os
cortinados
para uma sombra mais espessa
Deixa que feche o
anel
em redor do teu pescoço
com as minhas longas
pernas
e a sombra do meu poço
Não contes do meu
novelo
nem da roca de fiar
nem o que faço
com eles
a fim de te ouvir gritar


DIA MUNDIAL DO LIVRO

 





22 abril, 2025

𝑳𝒖𝒄𝒊𝒂𝒍𝒊𝒎𝒂, de Maria Velho da Costa


Autora: Maria Velho da Costa
Título: Lucialima
N.º de páginas: 351
Editora: O Jornal
Edição (2.ª): Junho 1983
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3306)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


Lucialima é um romance onde as múltiplas personagens nunca se cruzam. Maria Velho da Costa oferece-nos uma teia de histórias, que parecem contos, habitadas pelos traumas coloniais e pelos silêncios e receios vividos no período cinzento do antigo regime.

Num estilo muito próprio pela sua complexidade e inovação, MVC tece uma escrita com traços de erudição que desafia o leitor a ler devagar, com redobrada atenção, para poder descortinar o sentido do texto e captar a subtileza das diversas camadas de significação, presentes nas inúmeras referências. Nas seis partes que compõem o livro «Madrugada», «Manhã», «Meio-dia», «Três da Tarde», «Crepúsculo» e «Noite», a narrativa apresenta personagens distintas que, como já referi, nunca se encontram - Ramos, Mariana Amélia, Eugénia, Lima e Lúcia - e descreve episódios da vida de cada um, em sequências que se vão repetindo, de forma anacrónica. Ou seja, a narrativa inicia com «Madrugada», facilmente associada ao 25 de Abril, mas continua com outras referências de episódios anteriores.

A complexidade fragmentada e anacrónica, acrescida de uma fusão exímia do vivido e do imaginário, é susceptível de diversas interpretações e levam-me a intuir que a mensagem primordial é fazer coincidir as personagens num ambiente de isolamento, inacessível, mas desejado, numa oscilação ambígua entre o “eu” e os “outros”.
“ Eugénia levanta os olhos dos tecidos e suspira profundamente, do calor, do prazer de estar só. Só e em silêncio todo o dia. (…) A minha vida foi sempre pontuada por uma deliciosa relação com as pausas, o interior do silêncio dos interiores e das paisagens, a pulsação que as coisas tomam na ausência de outros, dos outros» (p. 271)

Maria Velho da Costa em Lucialima explora, na minha opinião, a solidão enquanto dimensão pessoal onde se reformulam opiniões, certezas e emoções a partir da memória (“Fiapos continuam a cruzar-se na memória”) e da imaginação, faculdades vitais que nos permitem (re)viver o passado e compreender o presente.




Arima | Eugénio de Andrade








ARIMA

Uma gaivota – dizes.

Sim, uma gaivota

passa distante e arde.

O teu rosto é azul,

e contudo está cheio

do oiro da tarde.



Uma gaivota.

Alma do mar e tua,

abandona-se à luz.



E na boca nem eu sei

se me nasce o coração

ou é a lua.




21 abril, 2025

Papa Francisco | 1927 - 2025

 



«Todos, todos, todos»


266.º Papa da Igreja Católica

Nascimento: Buenos Aires, Argentina · 16 de abril de 1927
Morte: Cidade do Vaticano · 7h35 -  21 de abril de 2025 (88 anos)

Nacionalidade: argentino

Nome de nascimento: Jorge Mario Bergoglio
Progenitores: Mãe: Regina Maria Sivori Gogna (1911-1981)
                    Pai: Mario Giuseppe Bergoglio Vasallo (1908-1959)

Funções exercidas: - Bispo auxiliar de Buenos Aires (1992-1997)
                             - Arcebispo coadjutor de Buenos Aires (1997-1998)
                             - Arcebispo de Buenos Aires (1998-2013)

Congregação: Companhia de Jesus
Diocese: Diocese de Roma
Eleição: 13 de Março de 2013 (12 anos e 39 dias) 
Entronização: 19 de março de 2013





16 abril, 2025

Devagar | Álvaro de Campos





Não: devagar.
Devagar, porque não sei
Onde quero ir.
Há entre mim e os meus passos
Uma divergência instintiva.
Há entre quem sou e estou
Uma diferença de verbo
Que corresponde à realidade.

Devagar...
Sim, devagar...
Quero pensar no que quer dizer
Este devagar...
Talvez o mundo exterior tenha pressa demais.
Talvez a alma vulgar queira chegar mais cedo.
TaIvez a impressão dos momentos seja muito próxima...
Talvez isso tudo...
Mas o que me preocupa é esta palavra devagar...
O que é que tem que ser devagar?
Se calhar é o universo...
A verdade manda Deus que se diga.
Mas ouviu alguém isso a Deus?


Álvaro de Campos

15 abril, 2025

Procuro-te

 



Procuro-te

nas palavras
nas entrelinhas 
de uma página, 
de outra 
e de outra... 
em vão

O tempo e os silêncios
impiedosos
apagam palavras,
esbatem gestos, olhares, sorrisos,
esvanecem sensibilidades

Nas noites insones
invento-te
palavras que não dirás
gestos, olhares, sorrisos que não repetirás
em vão

Sobejam-me
ilusões em ruína
silêncio 

GR



14 abril, 2025

Mario Vargas LLosa (1936 - 2025)

 





Morreu, aos 89 anos, em Lima, o escritor Mario Vargas Llosa. Prémio Nobel da Literatura em 2010 e "imortal" da Academia Francesa (2023), o autor peruano-espanhol confessou que gostaria de ser lembrado pela sua escrita.

Nascido em Arequipa, a 28 de março de 1936, Jorge Mario Pedro Vargas Llosa foi também político, jornalista, ensaísta e professor universitário.

Além do Nobel da Literatura, foi distinguido com vários outros prémios como o Rómulo Gallegos (1967), Princesa das Astúrias (1986), Planeta (1993), Miguel de Cervantes (1994), Jerusalém (1995), National Book Critics Circle Award (1997), PEN/Nabokov (2002) e Prémio Mundial Cino Del Duca (2008). Recebeu vários graus de doutor 'Honoris Causa'.

Em 2024, já depois de ter regressado ao país natal, publicou o seu último romance, Dedico-lhe o meu silêncio. 


12 abril, 2025

𝑻𝒓𝒊𝒍𝒐𝒈𝒊𝒂 𝒅𝒂 𝑪𝒊𝒅𝒂𝒅𝒆 𝒅𝒆 𝑲., de Agota Kristof

 


Autora: Agota Kristof
Título: Trilogia da Cidade de K. 
O Caderno Grande | A Prova | A Terceira Mentira
Tradutor: António Gonçalves
N.º de páginas: 393
Editora: Relógio D'Água
Edição: Março 2021
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3283)




OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


Agota Kristof escreveu O Caderno Grande, A Prova e A Terceira Mentira, entre 1986 e 1991. Em Portugal, estes três livros foram publicados num só volume intitulado Trilogia da cidade de K..
Kristof revela-nos uma história intensa e perturbadora. Há marcas de uma guerra que ocorre num país nunca nomeado, possivelmente na Hungria. No primeiro livro, também não temos indicação do nome das personagens, apenas sabemos que são dois meninos gémeos de nove anos. Com o desenvolvimento da narrativa, os gémeos vão entrando na adolescência e na vida adulta.

Num ambiente de guerra, há naturalmente privações, separações, exílio, sofrimento, mortes. E é pelo olhar inocente e cruel dos gémeos que vamos acompanhar muitas peripécias de luta pela sobrevivência que vão travar com a avó, conhecida na povoação pela “bruxa”, que os maltrata física e psicologicamente e os priva da escola e do conforto de um lar. Inteligentes, aprendem, com persistência, estratégias de enfrentar todas as crueldades a que são sujeitos. Acabam por criar situações absurdas e chocantes, não muito próprias para crianças.

A narração no primeiro livro, Caderno Grande, é feita integralmente na primeira pessoa do plural “nós”. Como se de uma única pessoa se tratasse, ou como se os dois funcionassem em uníssimo, em franca harmonia. Nesse caderno decidem escrever, apenas, as descrições dos objectos, dos seres humanos e deles próprios e evitar a utilização de palavras que definem sentimentos, palavras subjectivas.

No segundo livro, A Prova, há uma separação voluntária dos gémeos, Klaus e Lukas (aqui já nomeados), ou Lucas e Claus. Klaus, agora com 15 anos, decide separar-se do irmão e atravessar a fronteira para o país vizinho. Lukas, num período de pós-guerra, ainda com insurreições, narra-nos as suas vivências, os seus relacionamentos. Há momentos e relações ambíguos, surgem novas personagens, novas histórias encaixadas.

No terceiro livro, A Terceira Mentira, passados trinta anos, reaparece Klaus com uma história construída com fragilidades e contradições, o que levanta muitas dúvidas ao leitor sobre a veracidade das histórias. As duas partes que o compõem são narradas por cada um dos gémeos e tudo muda, de novo. Afinal, é tudo mentira? A metáfora do jogo de espelhos encaixa na perfeição, a história vai alterando ao sabor do narrador.

À medida que avançamos na leitura dos três livros, intuímos que a autora baralha as informações. Tal como os nomes se confundem, (anagramas), as memórias de cada um também se revelam desfocadas e contraditórias. A ambiguidade vai num crescendo e duvidamos da existência de um dos gémeos. Ao intitular o último livro com A Terceira Mentira, a autora confirma, ou não, a realidade da história. Se, neste livro, estamos perante uma terceira mentira, significa que os dois anteriores também o são? Afinal, há dois gémeos? Há só um? E qual deles? Quem é o narrador? As personagens do primeiro livro existiram de facto como foi narrado ou desempenharam outros papéis? Podemos confiar num narrador infantil que viveu traumas de abandono? Estamos perante delírios de um idoso ou meros exercícios de escrita? Tantas dúvidas que nos assolam! Estas e outras tantas!

Penso que com esta questão, a autora pretende reflectir sobre a perda de identidade, a manipulação da verdade veiculada por regimes autoritários, a perda de memória marcada por circunstâncias de guerra, de sofrimento, de destruição, em suma na fragilidade da verdade.

Esta trilogia escrita numa linguagem simples, directa, seca e dura, com diálogos curtos, por vezes pincelados de humor negro, e muito objectivos, no início, vão ganhando subjectividade e emotividade, compõe uma obra fabulosa que muito deve à sua originalidade na criação de um imbróglio que baralha por completo o leitor. Esta abordagem, de frieza calculada, torna a narrativa ainda mais impactante. A eliminação de qualquer excesso emocional, transfere para o leitor a interpretação dos factos.
Realidade e Ficção mesclam-se na perfeição. A relação dos irmãos é um reflexo da dualidade (o tal jogo de espelhos) presente em toda a obra: realidade versus ficção, verdade versus mentira, identidade versus anonimato.
Agota Kristof que nasceu na Hungria tendo deixado o país na sequência da repressão soviética que se seguiu à Revolução Húngara de 1956, acaba por expor a sua própria experiência e constrói essa dinâmica de forma magistral, deixando o leitor imerso num universo de incertezas e emoções intensas.

Uma última questão que me surge enquanto finalizo este texto. No título Trilogia da Cidade de K., mantém-se a ambiguidade que já referi. Que pode significar K. ? São várias as possibilidades: Kristof?, Klaus?, Köszeg? a cidade onde a autora se encontra sepultada na Hungria? Outra possibilidade?

Convido-vos a embrenharem-se na leitura desta obra magnífica.


09 abril, 2025

𝑨 𝑪𝒆𝒈𝒖𝒆𝒊𝒓𝒂 𝒅𝒐 𝑹𝒊𝒐, de Mia Couto

 


Autor: Mia Couto
Título: A Cegueira do Rio
N.º de páginas: 325
Editora: Caminho
Edição: Outubro 2024
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3628)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐


A Cegueira do Rio é um romance que recupera um facto histórico em África, em 1914, no início da Primeira Guerra Mundial. Esse facto trata-se de um incidente que ocorreu numa aldeia na fronteira entre a Tanzânia e Niassa, em que centenas pessoas foram assassinadas pelo exército alemão que colonizava a África Oriental Alemã, a atual Tanzânia, após uma revolta que ficou conhecida como Maji-Maji.
A narrativa vai alternar entre um narrador principal e múltiplas vozes, na primeira pessoa, fixando, assim, a história de um país sem a amarrar a uma única perspectiva.

O livro estabelece uma relação de memória com a escrita, na medida em que é importante lutar contra o esquecimento (recordar para não esquecer); explora temas como a identidade e o colonialismo; mescla sagrado e profano. O carácter distópico presente na “agrafia que se convertera numa epidemia planetária” (p.281) e que impedia os brancos de escrever, cria uma atmosfera ilusória e permite atribuir às personagens femininas um poder e uma sensibilidade únicos.
“ Fomos nós, mulheres, que sustentámos as nossas aldeias. Os homens foram levados, a maior parte deles nunca mais regressou. (…) Queremos que vás [Aluzi Msafiri] ao palácio. E ensines esses brancos a escrever (…) se estiverem cansados que deixem por escrito uma única palavra. Essa palavra é «desculpa». Depois os portugueses que peguem nas coisas deles e se metam num barco.” (pp. 312 e 313)

O papel da mulher, centrado na profetiza Aluzi Msafiri, é simbólico e reflecte questões de identidade, resistência e opressão. Como guardiã da história e das tradições, ela representa a sabedoria ancestral e a resiliência perante as adversidades, questiona as estruturas de poder e revela as fragilidades do homem, marcadas pela violência e pela imposição da autoridade. É recorrente, na obra de Mia Couto, o protagonismo feminino como agente de resistência e de mudança.

A escrita de Mia Couto é poética e policromática com laivos de realismo mágico onde o passado e o presente se entretecem de forma fluida. O recurso a provérbios e a uma narrativa fragmentada, dita a várias vozes, traduz a sabedoria ancestral tão própria da filosofia africana e garante a pluralidade de opiniões e saberes.

Mia Couto é um dos meus escritores de eleição. Recomendo muito a leitura dos seus livros. Mia tem uma maneira muito própria de olhar o mundo. E a sua poesia, seja em verso ou em prosa, é uma ferramenta fabulosa e única para o descrever.


06 abril, 2025

𝑭𝒍𝒐𝒓𝒃𝒆𝒍𝒂 𝑬𝒔𝒑𝒂𝒏𝒄𝒂, de Agustina Bessa Luís



Autora: Agustina Bessa Luís
Título: Florbela Espanca
N.º de páginas: 231
Editora: Guimarães Editores
Edição: Dezembro 1984
Classificação: Biografia
N.º de Registo: (3661)
Contém: Álbum de Retratos e uma Antologia com 6 cartas (pp. 187-203),  35 sonetos (pp. 204-227) e uma Cronologia (pp. 229-231)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐




Na biografia de Florbela Espanca (1894-1930) Agustina Bessa-Luís combina elementos biográficos e ficcionais para criar múltiplas interpretações de Florbela, rompendo com a lógica convencional do género biográfico. Numa abordagem criativa e inovadora que mescla romance e biografia, a autora desmistifica a figura da poetisa, inserindo-a no contexto social da época.

Sabemos que a escrita de Agustina é rica e densa, singular e introspectiva, na medida em que entretece a análise psicológica, a reflexão filosófica e a vivência social. O recurso a um vocabulário erudito e a metáforas complexas que evocam emoções intensas e conferem imagens poderosas, obriga o leitor a uma redobrada atenção.

Com estas ferramentas, que habilmente domina, Agustina capta a essência da sua biografada, pondo em relevo a sua feminilidade e explorando temas como a sua identidade, a inquietação existencial, o erotismo, os dilemas morais. Sabiamente, transforma pequenos episódios familiares, culturais e sociais em reflexões sobre a humanidade, a cultura, a sociedade.

Ao longo do seu texto, dividido em três partes, Agustina não se limita a narrar factos cronologicamente, ela baralha-os, repete-os com novas interpretações e novos significados históricos, sociais e literários. Quem conhece a obra de Agustina já se habituou ao percurso labiríntico das suas narrativas. E, nesta obra, o carácter labiríntico e circular, porque repetitivo, está bem patente.

Ela insere a poesia de Florbela como parte integrante da narrativa biográfica e oferece-nos, assim, uma visão dupla, a da mulher e a da poetisa. “Primitiva, Florbela tenta obter, por intermédio do elemento mágico da poesia, protecção contra o mundo exterior.” (p. 20). Um mundo ainda marcado por preconceitos sociais e de interdições impostas às mulheres.

É uma leitura aprazível e enriquecedora que nos revela uma poetisa genial e ousada e uma mulher melancólica, triste, narcísica, insubmissa, frágil e muito depressiva, sucessivamente “marcada pela decepção parental, a decepção social e a decepção literária.” (p. 142)

Recomendo a descoberta desta nossa poetisa sob o olhar muito particular e astuto de Agustina Bessa Luís.
Esta edição, de 1984, contém, ainda, um Álbum de Retratos e uma Antologia com 6 cartas (pp. 187-203), 35 sonetos (pp. 204-227) e uma Cronologia (pp. 229-231).