Autor: Valter Hugo Mãe
Título: Deus na Escuridão
N.º de páginas: 283
Editora: Porto Editora
Edição: Janeiro 2024
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3666)
OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐
Em Deus na Escuridão, Valter Hugo Mãe oferece-nos um romance que é ao mesmo tempo oração e manifesto. Narrada por Paulinho, a história decorre na ilha da Madeira, mais concretamente em Campanário, num cenário rural de encostas íngremes e abismos.
O enredo centra-se nos dois irmãos, Paulinho e Serafim, que vivem com os pais, Mariinha e Julinho dos Pardieiros. Receberam as alcunhas de Felicíssimo e Pouquinho, respectivamente: Felicíssimo pela alegria imensa que acompanhou o nascimento do irmão; Pouquinho porque “nasceu sem as origens. Era inteirinho um menino, mas vinha mordido entre as pernas como se algum predador o tivesse buscado na barriga de nossa mãe” (p. 29). É a partir desta diferença que o romance mergulha na vulnerabilidade humana, mostrando que amar é a força que move o mundo, mas também uma aposta feita sem garantias, na escuridão.
A diferença de Pouquinho não é apresentada como limitação, mas como possibilidade de outro olhar sobre o mundo. A sua vulnerabilidade revela a dignidade de existir fora da norma, tornando-se metáfora da condição humana: todos somos frágeis.
É neste espaço de fragilidade que surge a fé. Não uma fé dogmática, mas quotidiana, feita de gestos de amor e persistência. A fé é a aposta na escuridão — acreditar sem garantias, permanecer mesmo quando não há certezas. Assim, o romance aproxima Deus das mães: “Deus é exactamente como as mães. Liberta Seus filhos e haverá de buscá-los eternamente. Passará todo o tempo de coração pequeno à espera, espiando todos os sinais que Lhe anunciem a presença, o regresso dos filhos.” (p. 147). Deus aproxima-se também dos irmãos, mostrando que a fé é inseparável da lealdade e da ternura.
O livro insiste na ideia de que a felicidade tem um custo inevitável, e que esse custo é a própria condição de existir. A relação entre os irmãos é espelho de um amor maior, divino. Eles amam e protegem como uma mãe, esperam, cuidam e amam sem certezas. A escuridão, longe de ser ausência de luz, é espaço de vigilância, de amor incondicional, de fé, de resistência e de lealdade. “Deus está na escuridão, e tacteia por toda a parte na vontade intensa de um toque, do aconchego do corpo dos filhos, um gentil toque ou um abraço.” (p. 147). Felicíssimo entende o mundo com sabedoria infantil, através do coração, com ternura e simplicidade. É essa simplicidade que ilumina a escuridão.
A escrita de Valter Hugo Mãe mantém o lirismo que lhe é característico. Numa prosa delicada e profunda, exacerba o quotidiano e sublima os laços afectivos, a existência. Usa frases curtas, densas, quase aforísticas, que convidam à meditação. O ritmo lento e contemplativo transforma a leitura numa experiência estética, em que cada imagem simbólica — a ilha, o silêncio, os flamingos — abre portas para reflectir sobre a fragilidade, a gratidão e a persistência do amor.
Mas a força do romance não reside apenas na sua dimensão espiritual e poética. Valter Hugo Mãe incorpora o linguajar próprio da Madeira, com cadências e expressões insulares que dão corpo à oralidade local: “a bilhardice das pessoas”; “Era muito estranha, um trogalho”; “fabricar nos poios”; “barulhar”; “buzico”, por exemplo. Essa escolha estilística transforma a ilha em personagem viva, tornando a oralidade parte da atmosfera do livro.
A insularidade é também condição existencial. O isolamento da Madeira, com as suas encostas íngremes e poios laboriosos, traduz as dificuldades quotidianas dos ilhéus. A vida insular é feita de esforço, de vigilância comunitária e de resistência, e essa dureza atravessa o romance como figura da própria vulnerabilidade humana. Amar, aqui, é também persistir contra o isolamento e contra a escassez, transformando a ilha em espaço de fé e de lealdade.
Deus na Escuridão é um romance poderoso. Valter Hugo Mãe mostra que até na escuridão há uma luz que se inventa. É um livro que nos lembra que amar é sempre arriscar — e que a fragilidade pode ser, afinal, a forma mais radical de resistência.
E como afirmou o professor Carlos Reis no seu prefácio “É uma comovente, singular e ousada história de amor. Ou de amores, em vários registos”,
Esta obra é o quarto título da tetralogia Irmãos, Ilhas e Ausências.

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