04 maio, 2020

As Pessoas Felizes, de Agustina Bessa-Luís





OPINIÃO

A escrita de Agustina é profunda, complexa e requer uma leitura atenta com vários recuos e idas ao dicionário. No prefácio, António Barreto informa o leitor que “ este [romance] também não tem enredo. Quase não tem enredo. (…) os locais de Agustina são as memórias, os sentimentos, ou as consequências do real. E as alusões (…) a cronologia de Agustina é sempre incerta, ou antes, nunca é certa, pois é feita de memória e sem sequência”. Assim, ficamos logo a saber que não vai ser fácil, mas que é fascinante e compensador, isso é. 

O enredo situa-se no Porto no final do Estado Novo. Estamos perante uma burguesia muito tradicionalista e conservadora que circula entre a cidade e o meio rural. 
“O lugar era o Porto. Cidade com um preconceito a respeito do trabalho, como outras têm a respeito do prazer, ela era sobretudo uma terra onde a curiosidade é o vandalismo da inteligência e uma espécie de antologia do vazio. O gume da curiosidade actua nos mais insólitos campos, até no olhar que mede a miséria do pobre, esse pobre que vive na via pública e menos da caridade do que da curiosidade burguesa. “ (p. 63)

Nel, a personagem principal, é incapaz de ser feliz apesar da sua riqueza interior, “ O que faz as pessoas felizes é não terem vida interior. “ (p. 118). Ela é a ameaça da estabilidade familiar. Ela vive rodeada de gente frívola e medíocre que deve manter as aparências: “Carranca tinha um ideal, a bem dizer ao nível duma preocupação: conservar a fortuna, a honra e os amigos, o que é demais para um mundo em mutação onde a mediocridade ainda faz triunfar um homem, mas onde os seus talentos não servem para lhe assegurar o triunfo. “ (p.62)
Nel , desde muito jovem, era aconselhada a não pensar. “Pensar é um ofício para os pobres. Goze a vida, conheça gente bela, cultive alcachofras, coisas pouco substanciais. “ (p. 60). Era indesejada porque temida. 

No livro, Nel personifica a beleza e a riqueza de uma região que pretende mudar, modernizar-se, contudo rejeitada por uma sociedade conservadora e acomodada a valores ultrapassados que teme a novidade, a incerteza. 

Recomendo. Como todos os livros de Agustina que já li, também este nos enche a alma pois obriga à reflexão. Também apreciei a constante presença de Anna Karénina, de Tolstoi pela voz de Nel.



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