28 maio, 2020

O Egipto - Notas de Viagem, de Eça de Queiroz



OPINIÃO


Estas notas são os registos e impressões de Eça resultantes da viagem que realizou ao Oriente, em 1869, como convidado para assistir à inauguração do canal de Suez. Tinha então quase 24 anos, e a viagem prolongou-se por 2 meses e 10 dias… 

Eça conhece várias cidades e aí visita mesquitas, museus, túmulos, cemitérios, bazares, pirâmides, … ; toma um banho turco; viaja de comboio, de barco, de caleche, de burro; deambula pelas ruas estreitas e pelos bairros apinhadas de gente, pelo rio Nilo, pelo deserto e tudo e todos observa atentamente e regista nos seus cadernos.

“A pureza indizível da cor, da diafaneidade, da vida da água, o desenho nítido das pequenas vegetações formam um todo cheio de suavidade. Dá vontade de nos banharmos, de movermos o corpo naquela virgindade viva do elemento” (…) Ao fundo , o morro de Gibraltar, escuro sobre o doce azul, com o seu perfil violento e altivo (…) De longe o seu aspecto é duro, hostil, repulsivo e a cidade, amarelada e humilde, parece uma aldeia pobre perdida na serra áspera, sem nada das outras doces cidades do Sul, (…). O morro de Gibraltar é impenetrável como um deus bárbaro, severo como a lei inglesa.” (pp. 22 e 23)

Tudo nos é descrito com minúcia, por vezes de forma repetitiva, e com grande riqueza de detalhes.

[nos bazares do Cairo] “Tudo aquilo é feito de materiais ligeiros, ténues, frágeis: as traves são delgadas como dedos, esculpidos como cabos de punhais venezianos; vêem-se colunas finas como cajados de pastores, torcidas, dobradas sustentando galerias, amparando pórticos de uma fantasia estranha. As fachadas são rendilhadas, tão buriladas, tão cheias de galerias, de ornatos, de arabescos, que parece que de cima a baixo se estende uma cortina de renda suja, escura, deslavada, rasgada aos pedaços. (…) É uma visão, é uma caricatura, é uma fantasmagoria! “ (p. 156)
Nas suas descrições apreendemos e absorvemos os cheiros, os sabores, as cores, os sons, a música, os cantos , as danças. Parece que também nós, leitores, viajamos até ao Oriente e testemunhamos tudo isto.
Só mesmo Eça de Queiroz com um grande poder de observação e uma curiosidade inata para absorver e transmitir tudo o que viveu, visualizou e captou.
“O Nilo ali é estreito, menos largo que o Tejo. Uma vegetação poderosa, profunda, violenta, cobre as margens, e vem mergulhar as suas raízes na água. Ao longe, as culturas têm o aspecto de uma decoração maravilhosa. É solene, é quase bíblico, de uma serenidade profunda e consoladora. Sente-se que quem atravessa aquelas culturas deve falar baixo. Do céu cai uma luz imóvel e abundante. (…) Aquelas longas linhas, aquela transparência de cores, a serenidade daqueles horizontes, tudo faz pensar num mundo que se desprendeu das contradições da vida, e entrou, se fixou na imortalidade.” (pp. 52 e 53)
“ O fellah (cultivador do vale do Nilo) é alegre, risonho, loquaz, imaginoso; tem uma degradação profunda de carácter , desconhece o que é consciência, dignidade, individualidade. Mas no fundo é feliz. Possui o clima! Anda roto, quase nu, mas neste ar puro e tépido não é um sacrifício (…) de resto, o fellah tem vícios: é mentiroso com simplicidade, falsifica tudo.” (p. 60)
No seu estilo muito próprio, acutilante e sarcástico, Eça descreve a beleza da natureza e ataca ferozmente a degradação das cidades, dos portos, das mesquitas, enfim tudo o que caiu, ruiu e pereceu por culpa do homem, da ganância do homem. Este homem tão bem personificado pelo abutre que voa ´”no céu implacável”.
“ E o rio, a verdura vão perder-se ao longe nas culturas do Delta, que se esbatem nos distantes horizontes, sob a pulverização faiscante da luz. Depois, mais longe, sobre a linha amarelada e fulva do deserto, destacam-se com uma das faces alumiada de sol, nítidas, de contornos finos, poderosas, enormes, as três pirâmides de Gizé. (…)
"O Cairo, visto da cidadela, é o Cairo histórico, dramático, sombrio. É a imensa cidade escura, pobre e arruinada, caindo em pedaços. (…) O Cairo morre de todas as feridas que lhe tem feito cada um dos governos, que lhe têm dado uma dentada! (…) Ali sente-se uma política sem força e sem ideal, uma religião sem espírito, uma arquitectura sem ideia, um povo sem pátria, uma existência de acaso, a ignorância, a vaidade, a sensualidade!” (pp.96 e 97)

No final, não nos restam dúvidas sobre o que verdadeiramente extasiou e surpreendeu Eça .

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