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30 dezembro, 2025
𝑨 𝑰𝒏𝒔𝒖𝒔𝒕𝒆𝒏𝒕á𝒗𝒆𝒍 𝑳𝒆𝒗𝒆𝒛𝒂 𝒅𝒐 𝑺𝒆𝒓, de Milan Kundera
Autor: Milan Kundera
Título: A Insustentável Leveza do Ser
Tradutora: Joana Varela
Tradutora: Joana Varela
N.º de páginas: 364
Editora: D. Quixote
Edição: 1985
Classificação: Romance
N.º de Registo: (341)
OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐
25 dezembro, 2025
𝑨𝒔𝒕é𝒓𝒊𝒙 𝒏𝒂 𝑳𝒖𝒔𝒊𝒕â𝒏𝒊𝒂 /𝑨𝒔𝒕é𝒓𝒊𝒙 𝒆𝒏 𝑳𝒖𝒔𝒊𝒕𝒂𝒏𝒊𝒆, de Fabcaro & Conrad
Autor: Fabcaro
Ilustrador: Didier Conrad
Ilustrador: Didier Conrad
Título: Astérix na Lusitânia / Astérix en Lusitanie
Tradutoras: Maria José Pereira e Paula Caetano
Tradutoras: Maria José Pereira e Paula Caetano
N.º de páginas: 48
Editora: Edições ASA / Hachette Livre SA
Edição: Novembro 2025 (4.ª) / Octobre 2025 (1.ª)
Classificação: Banda Desenhada
N.º de Registo: (3757 / 3760)
OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐
Astérix na Lusitânia: duas línguas, duas maneiras de inventar um país
Ler Astérix na Lusitânia / Astérix en Lusitanie em português e em francês é descobrir que a Lusitânia não é apenas um cenário, mas uma construção cultural que se transforma conforme a língua que a acolhe. Para quem lê nas duas versões — e sobretudo para quem lê com atenção ao som, ao humor e ao gesto — a experiência torna‑se um pequeno laboratório de tradução criativa.
Na edição francesa, criada pelos autores, a Lusitânia surge com um exotismo leve, quase musical. Não há esforço para “portugalizar” o texto através de referências contemporâneas; há, sim, um jogo subtil com a língua, um sotaque gráfico que se insinua sem se impor. Palavras como "tradição", escritas à portuguesa, ou terminações em ‑ção, mantidas para dar cor sonora, funcionam como pequenos sinais de identidade.
O humor nasce dessa fricção suave entre línguas. Um português que fala francês diz:
« …ou du bacalhau, la tradição de chez nous »
A frase preserva a música da língua de origem sem cair na caricatura. É um gesto discreto, elegante, que cria cumplicidade.
A mesma subtileza aparece noutra vinheta:
« Soyez les bienvenus à Nulohouno, mon petit village ! »
Nada é forçado: – “mon petit village” é francês correcto; – Nulohouno soa estrangeiro sem pretender ser português; – o humor é leve, quase transparente.
A Lusitânia francesa é, assim, uma terra vista de fora: simpática, musical, ligeiramente exótica.
A tradução portuguesa faz o movimento inverso: aproxima a Lusitânia do leitor de cá, criando uma espécie de Portugal caricatural dentro da banda desenhada. Em vez de exotismo, há cumplicidade. Em vez de grafias estrangeiras, surgem referências que nos são íntimas: bacalhau, pastel de nata, azulejos, Benfica, Amália, a pedra da calçada. Nada disto pertence ao século I, mas tudo pertence ao nosso imaginário — e é essa anacronia assumida que dá graça à adaptação.
A oralidade é outro elemento marcante. O “ó pá” aparece com frequência, às vezes com brilho, outras vezes com excesso. É um marcador forte, que pode dar sabor ou pesar, dependendo do contexto.
Na mesma vinheta que na versão francesa é discreta, a tradução portuguesa opta por uma reinvenção exuberante:
« Ó pá, sejam bem‑vindos a Zepovinhium, a minha aldeiazita à beira‑mar plantada! »
Cada elemento é uma piscadela cultural:
– “Zepovinhium” brinca com Zé Povinho;
– “Ó pá” marca oralidade e proximidade;
– “Aldeiazita à beira‑mar plantada” parodia o verso pessoano.
– “Ó pá” marca oralidade e proximidade;
– “Aldeiazita à beira‑mar plantada” parodia o verso pessoano.
A tradução não procura equivalência: cria uma fala nova, profundamente portuguesa, cheia de humor interno.
Entre a versão francesa e a versão portuguesa nasce, para mim, uma terceira Lusitânia — não a que está impressa nas páginas, mas a que se forma no acto de ler. É uma Lusitânia construída no intervalo entre duas línguas, dois humores e duas maneiras de imaginar um país. Da francesa herdo a subtileza, o exotismo leve, a música discreta das palavras que se deixam contaminar por um sotaque gráfico. Da portuguesa recebo a cumplicidade, o riso de reconhecimento, a alegria das referências que nos pertencem.
A minha Lusitânia é, por isso, uma síntese imperfeita e viva: um território onde a tradução não é apenas passagem, mas criação; onde cada desvio, cada invenção, cada exagero ou subtileza se transforma num gesto de leitura. É nesse espaço entre línguas — esse espaço onde o humor muda de cor e a identidade se reinventa — que descubro a verdadeira riqueza desta banda desenhada. A Lusitânia que leio é a que se escreve dentro de mim, feita de ecos, de escolhas e de todas as pequenas diferenças que só um olhar bilingue consegue escutar.
24 dezembro, 2025
Manta de RetalhEcos
Eu passava horas a mover as figuras do presépio. Até que um dia, como se fosse a manipuladora de um teatro secreto, escolhi fazer diferente. O burro precisava de férias, coloquei-o em cima da televisão. O pastor sorridente juntou-se à vaca desconfiada, enquanto a ovelha indagava o céu de papel azul. O anjo, cansado de vigiar, mudava de lugar todas as noites, e os reis magos descansavam no sofá como se fosse paragem de viagem.
Entre risos e invenções, o camelo reclamava da falta de almofada, o cão refugiava-se na fruteira, as bagas vermelhas de azevinho brilhavam como pontos de fogo e o musgo guardava o cheiro da floresta molhada. Mas ao fundo, na cozinha, já se adivinhava o perfume doce das filhoses e dos sonhos, misturado com o lume da lenha e vozes familiares.
Foi então que Maria, curiosa e atenta, se afastou e caminhou até à biblioteca. Entre prateleiras silenciosas, escolheu livros para ler ao menino Jesus, como se cada página fosse um gesto de carinho, uma história guardada para embalar o tempo.
Havia também a expectativa silenciosa de surpresas embrulhadas em mistério, como se a noite trouxesse tesouros escondidos. E eu, sentada no chão, ria baixinho das novas posições das figuras, ao mesmo tempo que sentia que aquele cenário era uma parte de mim.
Não era apenas arrumar peças — era bordar segredos invisíveis, inventar diálogos, e guardar no coração lembranças que voltavam sempre, como se a mesa fosse palco de mundos eternos, feitos de doçuras e alegria.
Hoje, estas histórias fazem parte da minha manta de retalhecos, feita de ecos e ternura, como se cada gesto devolvesse lembranças guardadas — aquelas que voltam a acender-se sempre que o presépio ganha voz.
23 dezembro, 2025
𝑨𝒈𝒐𝒓𝒂 𝒆 𝒏𝒂 𝒉𝒐𝒓𝒂 𝒅𝒂 𝒏𝒐𝒔𝒔𝒂 𝒎𝒐𝒓𝒕𝒆, de Susana Moreira Marques
Autora: Susana Moreira Marques
Título: Agora e na hora da nossa morte
N.º de páginas: 116
Editora: Companhia das Letras
Edição: Outubro 2025
Classificação: Não ficção
N.º de Registo: (3761)
OPINIÃO ⭐⭐⭐
Agora e na hora da nossa morte nasce de um trabalho de campo com uma equipa de cuidados paliativos em Trás‑os‑Montes, mas o livro escapa a qualquer rótulo. Não é reportagem, nem diário, nem ensaio. É uma teia narrativa onde vozes, memórias e silêncios se entretecem com delicadeza. Susana Moreira Marques aproxima-se devagar, recolhe testemunhos frágeis e devolve-os com uma ética de cuidado que respeita a vulnerabilidade de quem está a partir.
Este livro é uma obra de estreia (2012, Tinta da China), e, talvez por isso, a sua voz surja tão nítida, tão contida, tão consciente da responsabilidade de escutar. Essa força inaugural encontra, na minha opinião, eco em Morreste-me, também o primeiro livro de José Luís Peixoto. Ambos se iniciam por caminhos de perda, de despedida, daquilo que custa nomear.
A relação entre os dois livros nasce dessa coragem inicial. Em Peixoto, a dor é íntima, concentrada no vínculo filial; em Marques, é plural, partilhada, quase comunitária. Mas nos dois casos, a morte escreve-se na delicadeza das linhas, com humildade e precisão, sem dramatismo nem excesso.
Em conclusão, o livro lembra‑nos que, por mais difícil e doloroso que seja, é importante encarar a morte — não como um abismo, mas como uma dobra da própria vida. Fugir dela não a suspende; apenas nos rouba a nitidez da vida. Susana Moreira Marques mostra que olhar o fim de frente — com cuidado, com verdade — é talvez o gesto mais humano que podemos fazer. A literatura ajuda-nos a dizer o indizível, a acompanhar o que dói e a reconhecer a dignidade que permanece.
20 dezembro, 2025
𝑶𝒍𝒉𝒐𝒔 𝑫'Á𝒈𝒖𝒂, de Conceição Evaristo
Autora: Conceição Evaristo
Título: Olhos D'Água
N.º de páginas: 114
Editora: Pallas
Edição: Fevereiro 2023
Classificação: Contos
N.º de Registo: (3683)
OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐
Olhos D’Água, de Conceição Evaristo, é um livro que se lê com inquietação. Em cada conto, a autora convoca uma escrita que nasce da vida e regressa a ela com a força de um testemunho. A dureza, a miséria e a violência estrutural atravessam todas as narrativas, não como espectáculo, mas como condição quotidiana. A escrita é crua, directa, sem adornos — uma linguagem que acompanha a aspereza do mundo que retrata e que recusa suavizar o que não pode ser suavizado.
A frase do conto “A gente combinamos de não morrer” — “Minha mãe sempre costurou a vida com fios de ferro”, citada também no prefácio, — funciona como metáfora de resistência. Nela se condensa a poética de Evaristo: a sobrevivência como trabalho manual, a vida como tecido remendado, a mulher negra como artesã da continuidade. Costurar com ferro é quase impossível, e é precisamente essa impossibilidade que define a força das personagens. A frase ecoa por todo o livro, iluminando cada gesto de resistência, cada silêncio, cada memória.
A morte, presente em muitos dos finais, surge como consequência inevitável de vidas marcadas pela desigualdade. São mortes que não surpreendem — e é isso que as torna devastadoras. Evaristo não usa a morte para chocar, usa-a para denunciar. Cada desfecho trágico expõe a violência estrutural que molda o quotidiano das personagens, revelando o que a sociedade insiste em ocultar. Ainda assim, mesmo quando a narrativa termina em morte, o conto não se fecha, abre-se ao leitor, convocando reflexão, inquietação e responsabilidade. A morte, aqui, não encerra — interpela.
Os contos, breves mas intensos, funcionam como estilhaços narrativos. A brevidade não suaviza, concentra. Cada texto é um golpe que deixa marca, um fragmento que obriga o leitor a preencher o não-dito. Evaristo confia na sensibilidade de quem lê, oferecendo finais abruptos que não resolvem a dor, mas a expõem com precisão.
A miséria, presente em todos os contos, nunca apaga a dignidade das personagens. Pelo contrário, é no meio da precariedade que surgem gestos de cuidado, laços comunitários, pequenas fagulhas de ternura. A memória — sobretudo a memória materna — é um fio que atravessa o livro, funcionando como herança e como ferida. No conto “Olhos D’Água”, lembrar é sobreviver.
Há, contudo, nomes de personagens — Luamanda, Ayoluwa, por exemplo, que carregam luz, futuro e ancestralidade. Nomear, para Evaristo, é um acto político, é afirmar existência num mundo que tenta apagar. O último conto, “Ayoluwa, a alegria do nosso povo”, encerra o livro com uma nota de esperança. Não uma esperança ingénua, mas uma esperança que nasce da própria luta. Depois de atravessar a dor, a fome e a perda, o leitor encontra uma criança que simboliza continuidade e possibilidade. É um gesto de cuidado da autora — e um gesto de resistência.
Olhos D’Água é um livro que denuncia sem simplificar, que expõe sem desumanizar, que fere e cura ao mesmo tempo. Conceição Evaristo escreve com a força de quem conhece a vida por dentro e a transforma em literatura sem perder a verdade. A sua escrevivência é uma poética da memória, da dor e da persistência — uma literatura que não pede licença e que permanece muito depois da última página. Ler este livro é entrar num território onde a dor não é abstrata e a esperança não é decorativa. Cada conto deixa uma marca, uma voz que continua a falar dentro de nós, lembrando que, mesmo costurada com fios de ferro, a vida insiste.
19 dezembro, 2025
𝑯𝒂𝒗𝒆𝒓á 𝑴𝒂𝒓, de Ann Yeti
Autora: Ann Yeti
Título: Haverá Mar
N.º de páginas: 88
Editora: Editorial Novembro
Edição: Novembro 2025
Classificação: romance
N.º de Registo: (3759)
OPINIÃO ⭐⭐⭐
“(…) Quanto à Ann Yeti tem um futuro promissor na escrita. Basta escrever e seduzir o leitor para novos caminhos, novas sensações.” Esta afirmação, que acompanhava a minha leitura de Um Fio de Sangue, confirma-se em Haverá Mar, onde a autora expande o seu horizonte narrativo e mergulha numa saga feminina que atravessa mais de um século.
Ann Yeti acompanha cinco gerações de mulheres da mesma linhagem, cada uma marcada por tempos de dureza e transformação. Da precariedade rural ao silêncio conventual, da mobilidade entre Lisboa e Austrália à rebeldia juvenil, dos desgostos amorosos à escolha pela escrita, estas vidas revelam como o patriarcado e a escassez atravessam épocas, mas também como a resistência e a solidariedade feminina abrem fissuras de luz. Entre elas, uma figura, aparentemente, secundária percorre discretamente as entrelinhas da narrativa, sustentando as outras com gestos de apoio, até que uma nova geração surge como promessa de futuro.
O romance percorre geografias concretas — a região Oeste, entre Caldas da Rainha e Leiria Lisboa, e cidades abertas ao mundo na Austrália. Cada espaço é mais do que cenário, é território simbólico que molda o destino das personagens.
A escrita de Ann Yeti é um tecido cuidado e fluido, pincelado de lirismo, onde se cosem referências históricas e culturais com a delicadeza de quem borda memória. Há nela um sopro autobiográfico, talvez, mas o leitor não precisa de separar o real do imaginado — importa antes deixar-se levar pela tapeçaria que ambos formam. O que prende e cativa é a narrativa em si, sustentada por uma voz capaz de transformar experiência em literatura, como quem recolhe fragmentos da vida e os devolve ao mar em forma de onda.
O mar é metáfora e geografia: guarda memórias, devolve histórias, abre horizontes. O romance mostra que, apesar das perdas e da dureza, haverá sempre mar — como promessa de continuidade e de futuro.
“ Balançamos na vida com a cadência das marés, quanto do teu sal são lágrimas…Mais tarde ou mais cedo, haverá mar dentro de nós.”, lê-se no prólogo.
16 dezembro, 2025
𝑳𝒊çõ𝒆𝒔 𝒅𝒆 𝑮𝒓𝒆𝒈𝒐, de Han Kang
Autora: Han Kang
Título: Lições de Grego
Tradutora: Maria do Carmo Figueira
Tradutora: Maria do Carmo Figueira
N.º de páginas: 193
Editora: D. Quixote
Edição (3.ª): Outubro 2024
Classificação: romance
N.º de Registo: (3647)
Na constelação literária de Han Kang — onde o corpo, o silêncio e a ferida são matéria de escrita — Lições de Grego surge como um romance de aproximação lenta, feito de gestos mínimos e de uma escuta atenta. Em diálogo com o universo de A Vegetariana, este romance volta a explorar o corpo que falha e a linguagem que se fragmenta, mas fá-lo com uma luz mais ténue, mais humana.
A protagonista vive num mutismo, consequência de traumas recentes: a morte da mãe e a perda da custódia do filho. A voz não lhe responde — não como função física, mas como gesto emocional. O silêncio torna-se o único território onde ainda consegue respirar. É um silêncio denso, activo, que organiza o luto e protege o que resta dela.
O professor de Grego enfrenta a perda progressiva da visão. O mundo estreita-se, desfoca-se, ameaça desaparecer. A cegueira iminente não é apenas diagnóstico, é metáfora da fragilidade, da dependência crescente, da necessidade de reaprender a ver para além do visível.
Ambos carregam fragilidades que não os definem, mas que moldam a forma como se aproximam do outro.
Ela conhece o professor nas aulas. Entra muda e permanece muda. E, no entanto, a sua presença é tudo menos passiva. O silêncio dela tem peso e ambivalência, como uma presença que se move sem fazer ruído. Obriga-o a abrandar, a ajustar o ritmo, a ensinar de outra maneira. Ele, que vê cada vez menos, aprende a perceber gestos, pausas, respirações. Ela, que não consegue falar, encontra outras formas de comunicar.
A relação nasce dessa interdependência discreta. Uma relação que não resolve, mas que ilumina. Uma relação que transforma o silêncio em gesto e a fragilidade em possibilidade.
Se A Vegetariana explora a recusa do corpo — o corpo que se nega, que se retira do mundo — Lições de Grego trabalha o corpo que falha, mas que continua a procurar ligação. Nos dois livros, Han Kang escreve a violência interior com uma delicadeza quase orgânica. Em ambos, o silêncio é linguagem. E em ambos, o corpo é metáfora e campo de batalha.
Aqui, ao contrário da radicalidade de A Vegetariana, há uma ternura subterrânea, uma aproximação lenta, quase respiratória. O que une estes dois romances é a capacidade de Han Kang de transformar o que é frágil em matéria luminosa.
A estrutura do romance acompanha essa respiração. Alterna momentos de introspecção com cenas de grande quietude, onde o gesto substitui a palavra e o silêncio ocupa o espaço narrativo. Não há pressa em avançar a acção; o que importa é o movimento interior, a forma como cada personagem se recria. A narrativa progride como quem tacteia no escuro — devagar, mas com intensidade crescente. A estrutura fragmentada espelha essa incompletude, essa tentativa de reconstruir sentido a partir do que se perdeu.
Há ainda uma musicalidade subtil: repetições, pausas, motivos que regressam como ecos. É uma escrita que pede atenção e convida o leitor a entrar no mesmo compasso das personagens — um compasso feito de silêncio e hesitação. Depurada, precisa, quase respiratória, a prosa de Han Kang assenta em frases curtas, ritmo contido e imagens sensoriais que traduzem o que as personagens não conseguem dizer.
Lições de Grego é um romance sobre duas solidões que se reconhecem. Sobre corpos que falham e, ainda assim, procuram sentido. Han Kang transforma fragilidade em forma literária, num livro que se lê devagar, como quem aprende uma língua nova — uma língua feita de silêncio, de cuidado e de uma luz que se insinua mesmo nos momentos mais sombrios.
11 dezembro, 2025
Depois do dia vem a noite
Depois da noite vem dia
E depois de ter saudades
Vêm as saudades que havia.
Fernando Pessoa
08 dezembro, 2025
𝑪𝒐𝒓𝒂çã𝒐 𝒅𝒆 𝒑á𝒔𝒔𝒂𝒓𝒐, de Mar Benegas e Rachel Caiano
Autora: Mar Benegas
Título: Coração de pássaro
Tradutora: Maria João Moreno
Ilustradora: Rachel Caiano
Ilustradora: Rachel Caiano
N.º de páginas: --
Editora: Akiara Books
Edição: Maio 2020
Classificação: Infantil
N.º de Registo: (3500)
OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐
Para o clube de leitura - Uma Casa sem Livros - promovido pela Biblioteca Municipal de Sines, o tema de leitura para este mês era um conto infantil / conto de Natal.
A minha escolha recaiu no conto Coração de pássaro escrito por Mar Benegas e ilustrado por Rachel Caiano.
Trata-se de uma releitura. Mantenho a minha opinião inicial. Quanto mais o leio, mais e mais o considero maravilhoso.
Remeto-vos para a apreciação que escrevi quando descobri este objecto lindíssimo pela história e pelas ilustrações.
leituras...trilhos...evasões...: Mar Benegas
06 dezembro, 2025
𝑽𝒊𝒔𝒊𝒕𝒂𝒓 𝒂𝒎𝒊𝒈𝒐𝒔 𝒆 𝒐𝒖𝒕𝒓𝒐𝒔 𝒄𝒐𝒏𝒕𝒐𝒔, de Luísa Costa Gomes
Autora: Luísa Costa Gomes
Título: Visitar amigos e outros contos
N.º de páginas: 228
Editora: D. Quixote
Edição (2.ª): Outubro 2024
Classificação: Contos
N.º de Registo: (3658)
OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐
Em Visitar Amigos e outros contos, Luísa Costa Gomes parte de um gesto simples — visitar — para construir um conjunto de 13 narrativas que iluminam o quotidiano com ironia fina e uma inteligência subtil. A visita, aparentemente banal, transforma-se num palco narrativo que expõe a teatralidade das relações, a fragilidade dos afectos e a estranheza que habita os gestos mais rotineiros. Cada conto funciona como uma porta entreaberta para a vida dos outros, mas também para a nossa: ao observarmos as casas, os hábitos e os silêncios alheios, reconhecemos os nossos próprios desconfortos, expectativas e pequenas ilusões.
A autora trabalha a frase com precisão e humor fino, revelando tensões íntimas e pequenas contradições humanas sem nunca perder a leveza. Há humor, mas nunca gratuito; há crítica social, mas sempre filtrada por uma atenção profunda ao comportamento humano.
Logo no conto inaugural, "A Ditadura do Proletariado", uma situação doméstica trivial — obras feitas por mãos inexperientes — transforma-se num retrato irónico das nossas ilusões: “a vida é breve e nem tudo é como sequer.” (p. 15) O título, carregado de ressonâncias políticas e históricas, contrasta de forma deliciosa com a realidade prosaica de quem tenta assumir tarefas para as quais não tem qualquer preparação. Entre ferramentas mal usadas, decisões improvisadas e um entusiasmo que rapidamente se transforma em caos, o conto expõe a fragilidade das nossas certezas e a tendência humana para acreditar que “qualquer um consegue fazer”.
Em "O lenço de seda italiano", um encontro de senhoras para beber chá torna-se num retrato certeiro da futilidade social: conversas que se enroscam em ninharias, uma coreografia de vaidades que revela mais do que pretende esconder. O lenço, delicado e aparentemente insignificante, torna-se metáfora da leveza — quase do vazio — das relações sustentadas em aparências.
Já em "Catilinária", a devoção exagerada aos gatos, superior à atenção concedida aos filhos, é observada com ironia afiada. O título, piscadela de olho a Cícero, acentua o humor: a indignação desloca-se para o desvio afectivo contemporâneo, onde é mais fácil amar quem não nos confronta. Entre tigelas gourmet, rituais de mimo felino e negligências silenciosas, o conto expõe afectos deslocados com graça e desconforto.
Outro traço distintivo do livro é a forma surpreendente como a autora escolhe terminar os seus contos. Em vez de oferecer conclusões fechadas, Luísa Costa Gomes prefere a ambiguidade que espelha a própria vida, onde o que não é dito pesa tanto quanto o que foi narrado. Estes desfechos interrompidos — ou melhor, deixados em aberto — reforçam a ideia de que o quotidiano raramente se resolve de forma clara.
Visitar Amigos confirma, assim, a mestria de Luísa Costa Gomes em transformar o quotidiano num retrato lúcido e irónico. Ao visitar os seus “amigos”, o leitor aproxima-se também das zonas menos iluminadas da convivência, descobrindo que o banal, quando observado com rigor e imaginação, é tudo menos simples.
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