13 agosto, 2020

Pão de Açúcar, de Afonso Reis Cabral

 




OPINIÃO

Neste romance, Afonso Reis Cabral “baralhou ficção” com uma história verídica que ocorreu em 2006, no Porto, e que foi bastante noticiada. Trata-se da história de Gisberta, cruelmente agredida e assassinada por um grupo de jovens. 

Confesso que iniciei a leitura com alguma apreensão pois conhecia o desfecho trágico, mas também com alguma curiosidade em perceber como o autor iria construir a sua narrativa sobre o caso. 

Na minha opinião, fê-lo muito bem, na medida em que soube suavizar a descrição dos actos violentos e dosear algumas emoções recorrendo a subentendidos e a uma escrita poética. 

“Engraçado como aos doze anos até circunstâncias de merda permitem camaradagem.” (pág. 201)
“E também omitiu que gostava de todas as histórias, não só dos contos da Gi, porque eram como desenhos com palavras.”(pág. 105) 

O autor, através de uma história (ou de várias) de amizade, vai narrando aspectos pessoais dos três miúdos, internados num lar e com um passado difícil. 

“Nós, os da Oficina, não conversávamos sobre o passado e não discutíamos o futuro, por isso surpreendeu-me ele [Samuel] anunciar que a conhecia, mas fiquei contente por não contar os pormenores ao Nélson, Só a mim. (…) O próprio acto de contar, esse sim, revelava uma vulnerabilidade que muitos poderiam entender como feminina – quer dizer, como fraqueza. Confiar em mim, pôs a nossa amizade à prova.” (p. 107) 

De forma alternada, vai-nos desvendando as suas histórias de vida e das pessoas com quem lidam, entre as quais a de Gisberta. É Rafa, um dos miúdos, que narra a história e que descobre Gi num edifício abandonado. A partir do momento em que partilha o seu segredo com os amigos Nelson e Samuel, a vida deles muda. Há momentos de amizade, de camaradagem, de solidariedade, de repulsa, de inveja, de insultos, de agressão, de crueldade. 

“Dali [do topo do torreão] veríamos as coisas de outra maneira, os problemas ficariam na cave. Os dela, a morte que a comia por dentro, que a obrigava a abdicar a cada dia; os meus, saber que a necessidade de a ajudar só fazia sentido por ambos não termos mais ninguém.” (p. 131). 

Afonso Reis Cabral põe em evidência os preconceitos de uma sociedade, a disfunção familiar e institucional, o abandono, a delinquência, a prostituição, a miséria e a sobrevivência. Trata-se de um mundo que ninguém quer ver e cada vez mais presente na nossa sociedade.

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