27 agosto, 2020

O Gesto Que Fazemos para Proteger a Cabeça, de Ana Margarida de Carvalho

 



OPINIÃO


Ana Margarida de Carvalho presenteia-nos, uma vez mais, com uma escrita cuidada, complexa e perturbadora. É com mestria que vai entrelaçando histórias, diálogos, personagens, que por vezes confundem o leitor. Porém, à medida que se avança na narrativa, como um “carreiro de formigas”, lentamente, esta vai-se perfilando e completando. A imagem da formiga é uma constante ao longo do enredo e acompanha um dos protagonistas, Simão. “Quanto a mim, cumpro o que me destinou este livro, continuo andarilho, vou de abalada, batendo a sola, acompanhando o carreiro de formigas que dão voltas ao mundo,” (p. 254) 

Estamos nos finais dos anos 30, durante a Guerra Civil Espanhola. Entre “dois entardeceres”, numa paisagem agreste da raia alentejana, os habitantes de duas aldeias, debatem-se com problemas de sobrevivência, de miséria e de ódio. É neste espaço fictício que vamos mergulhar no íntimo dos personagens, carregar as suas emoções e viver momentos trágicos e dolorosos. “É nestas paragens que vagueia a alma,” (p.107) 

Lençol de Telhados e Nadepiori, as duas aldeias, apresentam características completamente diferentes quer ao nível da geografia, do clima e do comportamento dos seus habitantes. 

A autora revela engenho e inteligência na condução da intriga, no desenrolar da acção e, sobretudo, na selecção das palavras que tão bem traduzem os estados de alma e os gestos dos protagonistas. Ao longo de seis extensos capítulos, o leitor deixa-se inebriar pelas descrições, pelos diálogos cruzados, pelas frases longas, apenas separadas por vírgulas, quase diria que cada capítulo é constituído de uma só frase, o ponto final apenas surge para encerrar o capítulo. Tal como um carreiro de formigas…

“(…) que este é o livro de uma caminhada,
sem pausas?
sem pausas, sempre a caminhar, sempre em andamento, sem descanso, sem repouso, nem alívio,
como a vida?
como a vida, essa ratoeira de homens,
escuta, que disso percebo eu, esta história, este livro, estas linhas, carreiros de formigas, com intermitências, mas sempre seguindo o seu curso, o fim da última linha pegando no princípio da seguinte e assim por diante…” (p. 40) 


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