16 setembro, 2025

Aquele dia

 

                                                               

Esta imagem-poema criada com IA (Copilot_16_09_25) nasce do encontro entre palavra e gesto, entre memória e matéria. O texto, dividido em quatro estrofes, percorre os contornos de um dia que se transforma — ora indesejado, ora festivo, ora contraditório — revelando camadas de tempo, afeto e transição. O tempo a virar página. 




Aquele dia
transitório
indesejado
marco de um retorno
já é passado

Aquele dia
taciturno
início de burocracia
de rotinas
já é finitude

Aquele dia
inicial
festivo
de reencontros e de sorrisos
já anuncia saudades

Aquele dia
contraditório
agora sem compromissos
é princípio de remoçamento


GR

15 setembro, 2025

A Espuma das Dúvidas

 

                                                        

Texto breve inspirado em Ítalo Calvino, com um toque de humor e inspiração política.

Num tempo em que até o mar parece hesitar, este exercício criativo acompanha o senhor Palomar — personagem de olhar minucioso e pensamento inquieto — enquanto observa o vai e vem das ondas. Mas há alguém que o observa também: uma narradora cúmplice, sentada na areia, que vê no seu gesto uma metáfora para o país à beira das eleições.
Entre a espuma e o silêncio, entre o olhar e o voto, nasce este texto de hesitação universal e muito pessoal.

“O mar está levemente encrespado e pequenas ondas vêm bater na costa arenosa. O senhor Palomar encontra-se na praia, de pé, e observa uma onda” com a solenidade de quem está a tentar decifrar um programa eleitoral redigido na gramática da espuma.

Eu, sentada a uns metros, observo Palomar. Ele observa o mar. O mar, por sua vez, parece ocupado demais, a repetir-se, para reparar em nós. A cena tem algo de coreográfico: a onda avança, recua, avança, recua, ora discreta ora vigorosa — como um candidato em campanha, cheio de promessas e pouco consistente.

Palomar não pisca. Mantém o olhar na onda. Eu já pisquei vinte vezes, e até já limpei os óculos. Ele permanece imóvel, como se o seu corpo fosse apenas um suporte para o olhar. A onda aproxima-se com mais vigor. Molha-lhe os pés. Ele não reage. Eu reajo por ele, num reflexo solidário. Mas ele continua firme, como quem acredita que o mar só revela os seus segredos a quem não se deixa influenciar por sondagens.

A próxima onda hesita. Palomar também. A espuma suspende-se por um instante.
Ele murmura:
— Esta onda... está indecisa.

Eu sorrio. Claro que está. Aproximam-se as autárquicas. Até o mar parece dividido entre manter o rumo ou votar na mudança. A espuma recua, como quem não quer comprometer-se. Palomar franze o sobrolho, talvez a tentar perceber se a ondulação é mais virada para o centro ou para a esquerda.

O vai e vem das ondas torna-se hipnótico. Há uma cadência, uma espécie de respiração do mundo. Palomar parece tentar sincronizar-se com ela. Eu tento sincronizar-me com Palomar, mas ele está num fuso horário diferente. Talvez esteja a contar as ondas como votos. Ou a tentar perceber se alguma delas é populista.

No fim, quando o sol começa a mergulhar no horizonte e a praia se pinta de dourado, Palomar dá um passo atrás. Olha para os pés molhados. Olha para mim. E diz, com a serenidade de quem passou o dia inteiro a conversar com o infinito:

— Acho que esta última... estava quase a decidir-se.

Eu sorrio. Talvez estivesse. Ou talvez fosse só mais uma onda. Mas mesmo entre espumas e incertezas, há sempre um momento em que é preciso escolher.


13 setembro, 2025

𝑮𝒆𝒏𝒕𝒆 𝒅𝒆 𝑫𝒖𝒃𝒍𝒊𝒏, de James Joyce

 

Autor: James Joyce
Título: Gente de Dublin
Tradutor: B. de Carvalho
N.º de páginas: 221
Editora: Vega/Público
Edição: 1995
Classificação: Contos
N.º de Registo: (563)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐




08 setembro, 2025

Onda Literária | 5, 6 e 7 Setembro 2025



A 3.ª Edição da Onda Literária promovida pelo Centro de Artes de Sines e Biblioteca Municipal ofereceu-nos um programa de luxo.Foram três dias intensos de iniciativas e de partilha de livros, leituras, conversas, fotografias, sorrisos, gargalhadas e abraços.
Adorei cada momento.
Descobri novos autores, confirmei valores certos da nossa literatura.
Este ano, tive o privilégio de moderar dois encontros com escritores que integram a minha lista de autores de leitura imperdível (tinha escrito obrigatória, mas alterei porque o pessoal detesta o que é obrigatório 😉)
A primeira moderação foi com Isabel Rio Novo e Paulo M. Morais e a segunda com Ondjaki. Dois momentos distintos, mas ambos enriquecedores e convincentes quanto à qualidade da obra que publicam.
Fiquei muito mais rica com as aprendizagens adquiridas e feliz com os momentos vividos.
O tempo ora quente, ora frescote, ora ainda chuvoso veio acrescentar alguma imprevisibilidade ao evento.
Apenas um lamento. Constatei, mais uma vez, que em Sines, um excelente Festival Literário não enche recintos. Valeu-nos a presença de um gato atento e curioso para colmatar um pouco esse vazio.
Até pró ano!









30 agosto, 2025

𝑶 𝑻𝒆𝒎𝒑𝒐 𝒅𝒐 𝑪ã𝒐, de Ondjaki e António Jorge Gonçalves

 



Autor: Ondjaki
Título: O Tempo do Cão
Ilustrador: António Jorge Gonçalves
N.º de páginas: ---
Editora: Caminho
Edição: Fevereiro 2025
Classificação: Conto / novela gráfica
N.º de Registo: (3679)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


O Tempo do Cão é um livro delicioso. A conjugação do texto poético de Ondjaki e os desenhos e grafismos de António Jorge Gonçalves tornam este livro num autêntico objecto de arte, uma obra-prima. Não é a primeira obra que criam em conjunto. Já se conhecem bem de outros projectos, como Uma Escuridão Bonita e O Convidador de Pirilampos.
Nesta novela gráfica de capa dura e avermelhada, com desenhos a branco num fundo azul forte, “Há o guevara” e “havia um cão” que criam laços afectivos, num sítio real, ao pé do lago Tanganica, no Congo.
Não me vou pronunciar muito mais sobre a estória porque tudo o que referir vai retirar ao leitor o prazer da descoberta e da sua própria leitura, já que este livro oferece múltiplas interpretações.

O que posso aconselhar é que desfrutem da leitura. Leiam o texto e os desenhos com prazer



22 agosto, 2025

𝑵𝒆𝒎 𝑻𝒐𝒅𝒂𝒔 𝒂𝒔 Á𝒓𝒗𝒐𝒓𝒆𝒔 𝑴𝒐𝒓𝒓𝒆𝒎 𝒅𝒆 𝑷é, de Luísa Sobral

 

~

Autora: Luísa Sobral
Título: Nem Todas as Árvores Morrem de Pé
N.º de páginas: 222
Editora: D. Quixote
Edição: Fevereiro 2025
Classificação: Romance
N.º de Registo: (Emp.)



OPINIÃO ⭐⭐⭐


Conhecemos bem a Luísa Sobral como cantora e compositora. Uma voz muito própria do mundo musical, pelo que havia uma certa expectativa em relação a este seu primeiro romance. Admito que ainda não constava na minha lista de leituras mais imediatas, mas como estava agendada a sua participação na Onda Literária, decidi lê-la já.
A leitura é fluída muito graças à delicadeza da escrita e às frases curtas e poéticas.
Fiquei a saber pela Luísa Sobral que a história que acabou em romance, começou por ser canção, Maria Feliz, e que a história, verídica, recria o passado de um casal alemão que se suicidou em Portugal.

No romance, a narrativa centra-se em duas mulheres, Emmi e M., com histórias muito paralelas, vítimas da época mais sombria de uma Alemanha dividida, literalmente, pelo muro de Berlim, mas também e, sobretudo por visões cultural, social e política bem distintas. Luísa Sobral lega-nos as vivências e as emoções de duas vidas feridas e marcadas por mágoas familiares.

O livro apresenta, ainda, uma característica muito peculiar e interessante. Os capítulos dedicados à vida de M. iniciam com o nome comum e científico de uma planta (árvore, flor, erva aromática), completados com uma característica e ilustração da mesma. Pelo que as plantas desempenham um papel importante na vida desta personagem e enriquece, em muito, a narrativa.

Gostei da leitura, mas confesso que não foi arrebatadora. Contudo, recomendo a sua leitura.


17 agosto, 2025

𝑨 𝑴𝒂𝒕é𝒓𝒊𝒂 𝑫𝒂𝒔 𝑬𝒔𝒕𝒓𝒆𝒍𝒂𝒔, de Isabel Rio Novo




Autora: Isabel Rio Novo
Título: A Matéria Das Estrelas
N.º de páginas: 191
Editora: D. Quixote
Edição: Maio 2025
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3711)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


Já o referi, mais do que uma vez, e reitero que considero a Isabel Rio Novo uma das melhores escritoras portuguesas na nossa produção literária contemporânea.
Ao iniciar, A Matéria das Estrelas, já sabia que a fasquia estava elevada. O romance já recebera um prémio e as críticas eram muito positivas. Sabia de antemão que ia gostar, quando se gosta muito de um(a) autor(a) nunca se fica desiludido. Mas sabendo tudo isto, ainda fui surpreendida e fiquei muita agradada ao perceber que este romance dava uma enorme “piscadela de olho” a uma obra de Paulo M. Morais (obra magnífica e que recomendo muito). Não vou revelar muito desta interacção, para não retirar o prazer da descoberta, refiro, apenas que o protagonista, Jacinto, é também uma personagem do livro A Boneca Despida.
Esta cumplicidade entre os dois escritores, engrandece-os, na minha opinião. E se no livro, a dedicatória de Isabel Rio Novo “Ao Paulo, com quem caminho pelos terrenos da realidade e da ficção”, já fazia sentido pelo apoio mútuo com que se brindam, agora, faz ainda muito mais sentido.

Em A Matéria das Estrelas, Isabel Rio novo conduz o leitor até meados do século XX (anos 60 e 70) com incursões ao tempo das navegações, sobretudo de Bartolomeu Dias. A narrativa balança harmoniosamente entre a história de Jacinto, de Bartolomeu Dias e a do narrador investigador e omnisciente. A autora revela uma grande mestria ao cruzar os diversos tempos da narração: o histórico, o psicológico, o da memória, e o da ficção.

A narrativa oferece diversas camadas de leitura. São vários os temas abordados, mas podemos referir que se foca, essencialmente, no incidente misterioso que alterou o destino do jovem oficial da marinha, Jacinto da Silva Fernandes. É através da investigação conduzida pelo médico, com quem ainda mantém laços familiares, que tomaremos conhecimento, de forma não cronológica, da história de Jacinto, de alguns aspectos familiares que influíram na vida do jovem e de acontecimentos de um Portugal bafiento, injusto e hipócrita.

Isabel Rio Novo numa escrita simples e cuidada cria personagens fortes e perturbadoras e oferece-nos uma viagem maravilhosa sobre memórias, paixões e segredos da qual nunca saímos indiferentes porque, na história dos outros, encontramos, por vezes, a nossa, como referiu o doutor Eduardo a certa altura da investigação.

Recomendo muito.


12 agosto, 2025

𝑺𝒆𝒋𝒂 𝒇𝒆𝒊𝒕𝒂 𝒂 𝒕𝒖𝒂 𝒗𝒐𝒏𝒕𝒂𝒅𝒆, de Paulo M. Morais



Autor: Paulo M. Morais
Título: Seja feita a tua vontade
N.º de páginas: 128
Editora: Casa das Letras
Edição: Junho 2017
Classificação: romance
N.º de Registo: (3721)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


Seja feita a tua vontade, de Paulo M. Morais, é um romance comovente que aborda a morte como escolha consciente e a despedida como reencontro. Através da relação entre um avô e o seu neto, o autor constrói uma narrativa íntima, onde se cruzam memórias, silêncios e afectos.

O enredo centra-se na figura do avô, médico octogenário, que, cansado de lutar contra os “bichos imaginários” que lhe devoram o corpo, decide pôr fim à sua vida de forma metódica e consciente. Esta decisão, comunicada à família, desencadeia uma série de dilemas éticos e emocionais, especialmente para o neto, que assume o papel de cuidador e confidente.
“Passamos tardes inteiras a falar de intimidades. No recato do teu quarto, exponho-me e exponho-te. Damos as mãos. Faço-te festas no rosto. Para passarmos o tempo que falta (ou será recuperarmos o tempo perdido?), partilhamos histórias nestes dias em que a morte ronda.” (p. 43)

O livro confronta-nos com questões delicadas como a eutanásia, o envelhecimento, o direito à morte digna e a desumanização da morte hospitalar. A decisão do avô é apresentada como um acto de lucidez e de dignidade, desafiando convenções sociais e familiares.
Nesse período de tempo (dezanove dias), avô e neto revisitam memórias e afectos, num processo de despedida íntimo. Porém, a narrativa ganha uma reviravolta quando, inesperadamente, o avô informa que pretende continuar a viver, abalando a serenidade conquistada e reabrindo feridas emocionais.

Paulo M. Morais constrói personagens densas e realistas, explorando a complexidade das relações inter-geracionais. O avô, inicialmente rígido, revela-se vulnerável e humano, enquanto o neto, jornalista e pai de uma menina, emerge como uma figura de escuta e ternura.
Questiono-me se não haverá, neste romance, um carácter auto-biográfico?

A escrita é contida, mas carregada de emoção. A economia de palavras releva o impacto dos momentos de ternura e de dor, conferindo maior autenticidade à narrativa. E a escrita diarística, na segunda pessoa, reforça o tom confessional e aproxima o leitor das personagens.

A citação de Morreste-me, de José Luís Peixoto no livro não é apenas uma referência literária — é uma ponte emocional entre duas obras que exploram o luto com uma tremenda delicadeza.

Os dois livros partem da dor da perda para construir uma narrativa íntima e reflexiva. A diferença, é que em Morreste-me, José Luís Peixoto escreve com uma linguagem poética e fragmentada, como se cada frase fosse um eco da ausência do pai. A dor é crua, mas contida, e o texto transforma-se num espaço de memória onde o filho tenta manter vivo o que já não está. Já em Seja feita a tua vontade, Paulo M. Morais aborda a morte antecipada — não como perda súbita, mas como escolha consciente. O avô decide serenamente morrer e o neto acompanha esse processo, criando uma despedida que é também uma reconstrução de afectos.

Seja feita a tua vontade é um livro que nos toca profundamente. Mais do que uma história sobre o fim, é um convite à escuta, à ternura e à coragem de estar presente quando o tempo finda.


10 agosto, 2025

𝑨 Ú𝒍𝒕𝒊𝒎𝒂 𝑨𝒖𝒓𝒐𝒓𝒂, de Simão Resendes Cabral



Autor: Simão Resendes Cabral
Título: A Última Aurora
N.º de páginas: 51
Editora: Editorial Novembro
Edição: Dezembro 2024
Classificação: Poesia
N.º de Registo: (3678)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐



Simão Resendes Cabral publica o seu primeiro livro de poesia. São doze os poemas que constituem A Última Aurora. Tratando-se de uma primeira obra, o autor revela já uma notável sensibilidade poética.
Estamos perante uma escrita muito visual, luminosa e sensorial com a qual o sujeito poético se propõe transpor “os portais do devaneio decisivo”; escrita de contemplação que pelo viés de metáforas e de antíteses constrói um universo de demanda e de contemplação onde o “eu”, o “nós”, envolto em silêncios, descobre novos caminhos, novas auroras, novas sensações e se permite sonhar.

“ Sonho
Transporto comigo a fórmula
Para um estado de perpétua contemplação
Com audácia, harmonizo-me continuamente
E tudo reluz como mil sonhos unidos num só brilho
Tudo repleto de vida e significado
Enche de luz a minha alma
Até ao alvorecer do meu ideal”

Que o sonho se materialize em palavras. Que este livro seja o primeiro de muitos.


04 agosto, 2025

𝑨 𝑷𝒆𝒅𝒊𝒂𝒕𝒓𝒂, de Andréa Del Fuego

 


Título: A Pediatra
N.º de páginas: 203
Editora: Companhia das Letras
Edição (3.ª): Abril 2025
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3716)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐





A Pediatra é um romance que se destaca pela abordagem provocadora e intensa que desafia o convencional sobre a maternidade e o papel da mulher na medicina e no casamento.

Ao construir uma protagonista segura e desconcertante que rejeita os papéis tradicionais atribuídos às mulheres, sobretudo o da maternidade, a autora tece uma crítica às estruturas sociais que ditam os padrões aceitáveis de uma sociedade ainda patriarcal.

Cecília, sem problemas financeiros e habituada a um conforto aburguesado, acaba com um casamento sem afecto, vive uma sexualidade plena e evita compromissos emocionais; como pediatra neonatalogista mantém um consultório com sucesso, faz parcerias com uma colega obstetra no hospital, apesar de afirmar que “detesta crianças”.

Cecília revela-se competente e pragmática, mas afasta qualquer vínculo afectivo sendo julgada, pelos seus pares, como uma pessoa fria e cínica. “O afeto é uma doença contagiosa. Prefiro manter distância.”
O romance centra-se em duas visões da prática médica: a de Cecília, racional e distante, e a de um novo pediatra adepto de práticas alternativas e acolhedoras.
A chegada deste causa-lhe alguma instabilidade profissional, na medida em que perde pacientes, mas não altera em nada a sua postura e as suas convicções.

Na minha opinião, Cecília usa a rejeição à maternidade como uma armadura. Ela constrói uma vida onde a racionalidade e o auto-domínio são os seus pontos fortes. A frieza com que trata os pacientes, mães e crianças, e a distância emocional que mantém com os seus próximos, parecem esconder algo mais vulnerável. Isto fica claro quando ela se envolve com Bruninho, o filho do amante. A sua relação com a criança escapa ao seu controle e surge uma empatia inesperada, mas não resolvida. Ela não sabe reagir com os sentimentos que a invadem e que escapam à sua lógica fria e insensível. Pelo que a sua aversão é uma defesa, mas não uma essência.

Cecília, provavelmente, não odeia as crianças — talvez ela odeie os papéis que lhe são impostos como mulher. A maternidade é encarada por Cecília como uma vontade pessoal, sem imposição. Nem toda a mulher quer ser mãe.

A narrativa feita na primeira pessoa, com um ritmo acelerado e cínico, pretende, da mesma forma, afastar o leitor emocionalmente, o que reforça a ideia de que há algo reprimido. Ao longo do romance, vamos detectando camadas complexas que causam algum desconforto:
Cecília é uma mulher, médica, bem-sucedida, mas sem qualquer traço de empatia ou de afecto; ela desmonta o arquétipo da mulher cuidadora, recusando o papel de mãe, de esposa, de profissional; ela promove uma sexualidade livre, crua e sem culpa, o que contraria a moral tradicional e a sua atitude final é completamente desconcertante.

Será que é Cecília que está errada ou é a sociedade com as suas imposições?
Convido-vos a descobrir esta personagem tão segura quanto frágil, tão detestável quanto sedutora.



03 agosto, 2025

Exposição | Figure Out (Personagens de Literatura) - Capítulo II | Ana Baleia

Exposição de esculturas têxteis criadas por Ana Baleia  a partir de personagens literárias de livros conhecidos. Encontra-se patente no Centro de Artes de Sines até 24 de Agosto. 
Iniciativa paralela da 25.ª edição do FMM 



          


           



               


               


30 julho, 2025

Balumuka !

BALUMUKA ! Narrativa poética da liberação --- ou ainda Rebelião Poética Kaluanda

Curadoria de Kiluanji Kia Henda e André Cunha
Exposição conjunta patente no Centro de Artes de Sines até 15 de Outubro
Iniciativa paralela da 25.ª edição do FMM




        


       

      

     

29 julho, 2025

𝑱𝒆𝒔𝒖𝒔 𝑪𝒓𝒊𝒔𝒕𝒐 𝑩𝒆𝒃𝒊𝒂 𝑪𝒆𝒓𝒗𝒆𝒋𝒂,de Afonso Cruz



N.º de páginas: 248
Editora: Alfaguara
Edição (3.ª): Janeiro 2013
Classificação: Romance
N.º de Registo: (2765)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐




Afonso Cruz, em O vício dos livros (p. 81), refere que "Os livros são seres pacientes. Imóveis nas suas prateleiras, com uma espantosa resignação, podem esperar décadas ou séculos por um leitor." Ora, este Jesus Cristo bebia cerveja soube esperar resignadamente (12 anos) até que nos encontrássemos. Foi o primeiro livro que comprei do autor, em 2013, no FMM, com direito a conversa e autógrafo. Depois, li muitos, mas mesmo muitos do autor e este foi ficando para trás…

Jesus Cristo bebia cerveja apresenta-nos uma narrativa insólita e divertida povoada de personagens originais e marcantes num Alentejo rural. Toda a ação se configura em torno de Rosa que cuida da sua avó doente, que gosta de ler westerns e policiais, apesar dos poucos estudos, e que tem o bizarro costume de chupar pedras.

Ao longo da narrativa surgem indícios que inquietam o leitor e que anunciam uma possível tragédia: "- O amor não se compra. - Mas paga-se caro."; “Eu não jogo aos dados. Deus é que joga.” (alusão directa ao livro de Ian Stewart ou, então, a Albert Einstein «Deus não joga aos dados»)

Jesus Cristo bebia cerveja é um livro criativo, caricato e controverso que, subtilmente, nos afasta de certezas triviais, de preconceitos e nos oferece, pelo viés da ironia pincelada de humor negro e de uma escrita poética (“ a tarde boceja pelas ruas”), outras perspectivas de vida e nos encaminha para uma reflexão sobre a maneira como encaramos o amor, a família, a religião e como percebemos a morte.

Claro que recomendo a leitura deste e de todos os livros do Afonso Cruz. E para reforçar a minha recomendação, fica a dica do autor:
"Lembra-te de que quando Deus fecha uma porta abre-nos um livro." (p. 76)




26 julho, 2025

𝐏𝐚𝐥𝐨𝐦𝐚𝐫, de Italo Calvino




Autor: Italo Calvino
Título: Palomar
Tradutor: João Reis
N.º de páginas: 130
Editora: Planeta D'Agostini
Edição: 2001
Classificação: Contos 
N.º de Registo: (1223)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


Palomar está dividido em três partes "As Férias de Palomar", "Palomar na Cidade" e "Os Silêncios de Palomar". Cada parte está subdividida em três capítulos que por sua vez apresentam 3 contos cada, reunindo, assim, 27 pequenos contos independentes que apenas têm em comum a personagem - o senhor Palomar.

Em todos os textos, o autor explora a relação entre o indivíduo e a natureza através da observação minuciosa e das reflexões do senhor Palomar.
Calvino aborda temas existenciais a partir de situações do dia-a-dia, com recurso à ironia transforma banalidades em momentos de profunda contemplação. Palomar, pela sua capacidade original de olhar para as coisas (uma onda, uma folha, um planeta, um seio, um insecto…), descobre significados pouco comuns, divaga sobre aspectos que o preocupam e tece reflexões sobre a vida, sobre as relações humanas e que acabam por conquistar o leitor.

“ O senhor Palomar decidiu que a sua principal actividade será sempre observar as coisas do lado de fora. (…) põe-se a observá-las quase sem dar por isso e o seu olhar começa a percorrer todos os detalhes e não consegue mais afastar-se delas. O senhor Palomar (…) redobrará as suas atenções: em primeiro lugar, para não deixar fugir os apelos que lhe chegam das coisas; em segundo lugar, para atribuir à operação de observar a importância que ela merece.” (p. 117)

Palomar exige do leitor uma efectiva atenção, não nos iludamos pelos textos curtos. Para captarmos a verdadeira essência da sua escrita, é importante entrar em estado de contemplação, como se fôssemos a personagem principal e usássemos um telescópio (para olhar as estrelas, por exemplo) ou uma lupa. É, igualmente, importante apreender o sentido do texto, retirar de cada observação o verdadeiro (auto) conhecimento, saber equilibrar racionalidade e sensibilidade. Isto só será possível se realizarmos uma leitura lenta e cuidada, se desfrutarmos das descrições detalhadas, se soubermos descortinar a ironia, as metáforas, os paradoxos, se estabelecermos comparações com o nosso mundo, se reflectirmos sobre as coisas observadas.
“Mas como se faz para observar alguma coisa deixando de lado o eu? De quem são os olhos que olham? (…) Para se olhar a si próprio o mundo tem necessidade dos olhos (e dos óculos) do senhor Palomar” (p. 118)
É um pequeno livro muito interessante. Que nos faz reflectir a sorrir.



20 julho, 2025

Jantar memorável

 No dia 17, os meus colegas da Escola Secundária Poeta Al Berto (ESPAB) surpreenderam-me com uma linda homenagem que guardarei na gaveta das boas memórias. 

O evento teve lugar no Restaurante Arte e Sal, em S. Torpes. Vista maravilhosa para o mar e com direito a um pôr-do-sol brilhante. 

Foi um jantar memorável, de (re)encontros, sorrisos e abraços. Recebi muito afecto, muitas flores e presentes valiosos. Registei boa disposição, ouvi poesia da boa e houve poses para registos fotográficos. 
As três moças organizadoras, Rosarinho, Bete e Célia, pensaram em tudo com muito carinho. Posso garantir que me conhecem bem.  

Houve, ainda, tempo para um sorteio de  livros, leitura de um discurso e de um poema escrito a duas mãos.  

Partilho um pequeno vídeo que revisita os momentos importantes.
Transcrevo também o discurso e o poema   

a de Graciosa Reis


Quero agradecer muito, mas mesmo muito este momento. É um prazer enorme ter-vos a todos e a todas aqui presentes.
Como sei que estes encontros dão muito trabalho, sou grata às moças organizadoras, Rosarinho, Bete e Célia. E como para haver festejos é bom que haja participantes, também quero agradecer, a cada um e a cada uma, pessoalmente, a vossa presença.

Não vou fazer um grande discurso. O que tinha a dizer, já o disse num texto que vos enviei e que publiquei no primeiro dia de “boa vida”.

Retomo, apenas, a parte mais importante, a dos amigos, a das pessoas com quem me cruzei, em especial, na ESPAB.
Ao longo dos anos e foram muitos, conheci, lidei e convivi com muitas pessoas.
Pessoas bonitas e maravilhosas e outras menos bonitas e um pouco menos maravilhosas. Mas todas foram importantes, com todas aprendi e partilhei conhecimentos, ensinamentos, gargalhadas, sorrisos, tristezas, desabafos, abraços, fotografias, livros, leituras, muitas leituras, …; com muitas continuarei a aprender e a partilhar…
Muitas destas pessoas estão aqui;
Muitas não estão por múltiplas razões: pessoais, profissionais, familiares, ou porque simplesmente não o quiseram;
Algumas porque já não leccionam nesta escola, nem habitam por perto;
Outras, ainda, já não estão entre nós.

A TODAS o meu ENORME agradecimento e carinho.
Saberei manter vivas as boas memórias. E este momento, será para acrescentar.

Citando Epicuro “As pessoas felizes lembram o passado com gratidão, alegram-se com o presente e encaram o futuro sem medo.”

Que, assim, seja!



Ó Arte e Sal, quanto do teu manjar
São sorrisos destes comensais
Para aqui chegarmos, a S. Torpes
É preciso que topes
Quanta areia já roubou o mar
Quantos banhos ficaram por dar
Mas ainda, assim, valeu o jantar
E daqui saímos mais fraternais
Mesmo com um copito a mais.

(GR e JR)



18 julho, 2025

𝑨 𝑳𝒊𝒔𝒕𝒂 𝒅𝒆 𝑳𝒆𝒊𝒕𝒖𝒓𝒂, de Sara Nisha Adams

 

Autora: Sara Nisha Adams
Título: A Lista de Leitura
Tradutora: Maria Ferro
N.º de páginas: 397
Editora: Topseller
Edição: Novembro 2022
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3691)



OPINIÃO ⭐⭐⭐


Comprei este livro pelo título. Fiquei com imensa curiosidade em descobrir como os oito clássicos da lista iriam ser abordados a partir da indicação sugestiva “só para o caso de precisares…”.

A Lista de Leitura é um romance de leitura fácil e agradável que promove a descoberta do prazer de ler e de partilhar opiniões sobre os livros lidos.
“Havia algo mágico nisso, na partilha de um mundo que amámos.” (p. 301)
Só por esta razão já vale a pena lê-lo. Mas o enredo oferece-nos, ainda, a perspectiva, de que é possível, a partir dos livros, encontrar um novo sentido para a vida.

A história ocorre em Wimbledon, numa pequena biblioteca pública. Lugar de silêncio, de refúgio e de partilha de livros, de amizade, de preocupações, de (auto)ajuda.
É neste espaço privilegiado que a jovem Aleisha, adversa a livros e com uma vida complicada em casa, trabalha aborrecida durante as férias de verão. Aqui, conhece Mukesh que um dia vai devolver um livro que encontrou em casa e que tinha sido requisitado e não devolvido pela sua esposa - A mulher do viajante no tempo, de Audrey Niffenegger.

Esta simples tarefa vai revelar-se numa vitória para o velho homem e irá perturbar a sua pacata forma de viver. Mukesh é um idoso viúvo que não sabe lidar com a perda da esposa Naina, nem tão pouco com as vidas atarefadas e independentes das suas três filhas que o tratam como um incapacitado.

Aleisha e Mukesh, duas pessoas de gerações diferentes, com problemáticas diversas, têm em comum o facto de não gostarem de ler. Contudo, encontram-se na biblioteca e a lista de leitura encontrada, por acaso, pela jovem dentro de um livro – Mataram a Cotovia - vai transformar-se no elo de ligação entre os dois e vai, sobretudo, a ajudá-los a descobrir o prazer da leitura e a ultrapassar os problemas que cada um carrega.

Os oito livros que integram a lista de leitura facultam abordagens múltiplas. Cada leitor fará a sua interpretação de cada obra de acordo com as suas vivências presentes e passadas (“Hum – disse Aleisha (…) Suponho que os livros digam coisas diferentes a pessoas diferentes.” (p. 171)). Mukesh faz as suas leituras tendo sempre presente a memória da sua mulher. Cada um dos oito livros, desempenha, assim, uma função. Justiça, preconceitos, resiliência, violência, dependência, doença, família, amor, amizade, perda e morte são alguns dos temas abordados e que, em jeito de terapia, vão facultar ensinamentos e cumplicidades e fortalecer uma “amizade improvável.”

Tratando-se de um livro sobre livros (e que livros!), recomendo, seguramente, a sua leitura.



17 julho, 2025

Escola Poeta Al Berto - Fotodocumentário biográfico de Al Berto

Quando acordei tinha este presente maravilhoso no meu telemóvel. Tem um significado muito especial recebê-lo, precisamente, hoje.
Obrigada, Gustavo Cerqueira Guimarães

Fotodocumentário biográfico do português Al Berto (1948-1997), de Sines, destacando a voz do poeta e fotografias de seus livros.
REALIZAÇÃO: Qeracê
PESQUISA, ROTEIRO & CANÇÃO: Gustavo Cerqueira Guimarães
PeDRa LeTRa
Minas Gerais, Brasil, 2025





15 julho, 2025

Encontro Regional de Bibliotecas Escolares



Nos dias 10 e 11 de Julho de 2025, em Évora, decorreu o Encontro Regional, subordinado ao tema “Legados de Engenho, Arte e Pedagogia”, colaboração entre o CFAE Beatriz Serpa Branco e as Bibliotecas Escolares do Alentejo. As sessões plenárias tiveram lugar no auditório da DGEstE e os workshops no Agrupamento de Escolas André de Gouveia.


Foram dois dias plenos de aprendizagens, partilhas e convívio.
Na abertura do encontro Jorge Serafim brilhou e animou o pessoal ainda entorpecido.
O programa seguiu o seu curso com uma homenagem a Beatriz Serpa Branco e com a apresentação de Boas Práticas de várias bibliotecas escolares do Alentejo (nos dois dias realizaram-se três sessões plenárias). São momentos enriquecedores e que evidenciam o que de bom se pratica nas nossas bibliotecas escolares.
Os dois momentos previstos de workshops simultâneos oferecem-nos possibilidades de aprendizagem, algumas fora da nossa zona de conforto, de contacto com outras artes, de partilha de saberes, de sorrisos e boa disposição. Gostei de descobrir a “Ciência em Camões” com o Mário e o Alexis, do Centro de Ciência Viva de Estremoz e adorei conhecer a actriz Cátia Terrinca que, sabia e assertivamente, nos envolveu nas “Palavras para lá do papel” . Trabalhámos a desconstrução da palavra, da escrita, da poesia; criámos sons com sentido; inventámos onomatopeias; percebemos o poder da palavra escrita, dita, ouvida, compreendemos a importância do silêncio, do saber escutar.

Nestes dois dias, fomos ainda brindados com duas conferências magníficas. A primeira, dita pelo Professor Carlos Reis – “Legados de um ‘épico d’outrora’: figurações camonianas”; a segunda, pelo Dr. Pacheco Pereira – “Engenho, arte e saber ao serviço das bibliotecas”.
Dois oradores cultos e inteligentes que nos concedem conhecimentos válidos e nos incitam à reflexão.

O encerramento do encontro contou com uma tertúlia sob o tema “Legados de Engenho, Arte e Pedagogia”. Cinco convidados, entre os quais o Professor Carlos Reis, moderados pela Doutora Zélia Parreira, Directora da Biblioteca Pública de Évora, discorreram sobre o assunto. Foi um momento empolgante com opiniões controversas de um dos palestrantes.
Entusiasmei-me com o rumo da conversa, com os argumentos dos restantes convidados e sobretudo com a arte e engenho do Professor Carlos Reis. Terminámos maravilhosamente. 

Após a conclusão dos trabalhos agendados para o primeiro dia, um grupo de amigas bibliotecárias do Alentejo Litoral, deambulou pelas ruas de Évora e refastelou-se numa esplanada para conversar, gargalhar, degustar uns saborosos petiscos e beber uma generosa sangria. Apesar do vento frio que se impôs ao anoitecer, fomos felizes.

Foram dois dias maravilhosos. Eu, no papel de aposentada, desfrutei serenamente de tudo.
Até pró ano, se ainda me aceitarem.




08 julho, 2025

𝑶 𝑬𝒙é𝒓𝒄𝒊𝒕𝒐 𝑰𝒍𝒖𝒎𝒊𝒏𝒂𝒅𝒐, de David Toscana

 

Autor: David Toscana
Título: O Exército Iluminado
Tradutora: Helena Pitta
N.º de páginas: 180
Editora: Parsifal
Edição: Outubro 2014
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3718)





OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐

Em O Exército Iluminado, David Toscana, pelo viés de uma visão quixotesca, tece uma metáfora do patriotismo, do nacionalismo ferido.
É uma narrativa ousada e provocadora plena de ironia e emoção que transforma os fracassos em heroísmo e o absurdo em beleza.

Ignacio Matus, protagonista e motor da narrativa, é um professor ressentido e obcecado por perdas importantes: do território do Texas para os Estados Unidos e pela medalha de bronze de maratonista que alega ter-lhe sido roubada por um atleta norte-americano, Clarence DeMar, nas Olimpíadas de Paris, em 1924.
Matus é expulso da escola onde lecciona, por insistir, junto dos seus alunos, naquilo que ele considera a “vergonha nacional”. Inconformado, decide formar um exército – o Exército Iluminado - de crianças com deficiência para recuperar o território perdido no século XIX.

Toscana cria uma utopia, e como tal, recorre a uma trama inusitada, absurda, misturando delírio com idealismo, trágico com cómico e humor negro e brinda-nos com uma narrativa magnífica recheada de personagens carismáticas. Tomemos, por exemplo, “o gordo Comodoro”, que apesar da sua condição física e das suas evidentes limitações, é retratado com afeto e humor.

Assim, Toscana transforma personagens marginalizadas, com limitações graves, em heróis, em símbolos de resistência. É a celebração dos fragilizados que se tornam iluminados.

O Exército Iluminado é, por isso, um livro fabuloso pela sua imprevisibilidade e ao mesmo tempo pela total falta de senso do protagonista que acredita ganhar uma guerra com estas cinco crianças. A missão de recuperar o Texas é absurda, mas é através desta metáfora que o autor estabelece uma relação directa com os delírios de D. Quixote.
Toscana constrói uma trama carregada de ironia para nos falar de uma realidade que marcou um país, da história mexicana. Cria uma narrativa original e sensível. De forma comovente, mas não lamecha, mescla a dimensão histórica com a efabulação para explorar a complexidade do ser humano. Ao estruturar a narrativa de forma fragmentada, como se revisitasse memórias soltas, permite que passado, presente e futuro coabitem naturalmente com as vivências das suas personagens, estabelecendo uma relação entre a vida e a história; o presente e o passado, ou melhor, a fragilidade da vida retratada nestes anti-heróis e a força da memória de um homem patriota.

Toscana conduz o leitor para um universo de realismo mágico, bem nos trilhos de um Gabriel Garcia Márquez ou de um Juan Rulfo. O leitor, facilmente, seduzido deixa-se comover pela escrita poética e crua com que narra os acontecimentos insólitos vividos pelas crianças e deixa-se, sobretudo, invadir ora pela tristeza ora pela esperança e determinação. Tudo isto é um convite à reflexão. David Toscana eleva a sua narrativa a um patamar tão quixotesco que nos impele a questionar o sentido da vida e a natureza da violência num mundo tão caótico.

Foi uma bela descoberta. Mais um autor a acrescentar à já longa lista de autores sul-americanos.


30 junho, 2025

Rota Literária | Festa do Livro

A Fundação Caixa Agrícola Costa Azul organizou, nos dias 27, 28 e 29 de junho, a IV Edição da Festa do Livro em Santiago do Cacém.

Durante três dias,  e respondendo ao mote Entre Mundos e Palavras, foram realizadas múltiplas actividades no âmbito do livro e da leitura.
No dia 29, das 9h00 às 13h00, concretizou-se, sob  um calor intenso, a Rota Literária com 18 paragens em espaços históricos/emblemáticos da cidade.  Previamente, a Fundação atribuiu cada paragem a um embaixador/leitor que, por sua vez, escolheu livremente um texto  que se adaptasse ao local.
Foi-me destinado o ponto n.º 4 - Passeio das Romeirinhas (junto aos Espiguinhas) para o qual seleccionei um poema de Al Berto. 

Foi um prazer enorme, apesar do calor, ter participado neste evento. Aprendi imenso sobre Santiago e conheci novos entusiastas da leitura bem como da história e do património locais. 




4


oxidadas albas líquidas povoações
onde abandonámos os corpos a sonhar

voragem do mar ruínas de sal lodo basaltos
eis a devassada nudez da terra
argilas quartzos granitos calcários
esculpidos pelo contínuo vento

ali está a vereda de giesteiras floridas
onde o sol fabrica o doloroso mel
e o corpo estendido expele imagens de água
enquanto a morte tudo corrói vagarosamente

depois continuámos pela orla branca do papel
regressámos felizes à falsidade das palavras
mas já não conseguimos ser os mesmos
que ali tinham vivido e amado


In O Medo – Uma Existência de Papel (1984/85), Al Berto, Assírio & Alvim, 2000, p. 498



28 junho, 2025

𝑩𝒊𝒐𝒈𝒓𝒂𝒇𝒊𝒂 𝒅𝒐 𝑳í𝒏𝒈𝒖𝒂, de Mário Lúcio Sousa

 

Autor: Mário Lúcio Sousa
Título: Biografia do Língua
N.º de páginas: 340
Editora: D. Quixote
Edição: Outubro 2015
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3626)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


Com este livro, Mário Lúcio Sousa criou uma deliciosa utopia “em que a história fosse sobretudo a magnífica missão de contar histórias.” (p.12)
Este objectivo do autor foi totalmente alcançado, já que o fio condutor da narrativa é um condenado à morte que, para atrasar o fatídico momento da sua execução, pede, como ultimo desejo, para contar a história de Esteban Montejo, um escravo chamado Língua, que revela a habilidade incomum de falar aos sete meses de idade e a capacidade de traduzir as falas dos colonizadores aos povos africanos.
“Aos sete meses de idade, o preto abriu a boca e, quando toda a gente pensou que ele ia cuspir o leite, disse: Tenho uma língua. (…) Mando que me escrevam, pois, a biografia desse Língua. Palavra de rei, leia-se lei, portanto cumpra-se. Assim, em cumprimento da ordem real, a partir daquele momento, o menino, preto ao nascer, passou a chamar-se oficialmente Língua, mas nas circunstâncias de então, Língua era mais profissão do que apelido.” (pp. 22 e 23)

O condenado narrador, sabiamente, entrelaça a história de vida do Língua com histórias de outras pessoas, com momentos históricos de Cabo Verde e de África e com o surgimento de uma nova cidade, Falésia, vai construindo um mosaico de experiências que revelam e formam a complexidade da identidade e da memória de todo um povo.

Para tal, recorre a estratégias que nos transportam para as 1001 Noites de Xerazade. Sem pausas na sua narrativa, provoca a curiosidade do povo que se vai aproximando e instalando no local. Num jogo de palavra passa-palavra, a comunidade vai crescendo, a cidade vai-se construindo. Falésia constitui-se e os falesianos instituem o silêncio como condição de habitabilidade para, assim, poderem acompanhar a narração.
“Cento e noventa anos a contar histórias. Será mesmo esse o tempo que passou? Como haveremos de saber se aqui medimos tudo pelo tempo da história? Dormimos e acordamos sem mais pretensão do que ouvir narrar. Acontece que agora Falésia já introduziu um novo conceito de território e de propriedade no mundo e no tempo.” (p. 251)

E, assim, maravilhado pelas palavras e pela construção da narrativa, numa atmosfera de realismo mágico, tão característico do autor, o leitor deixa-se conduzir deleitosamente ao longo das páginas. Mais do que um romance sobre um escravo com atributos invulgares e prodigiosos, estamos perante algo delicioso sobre a arte de narrar estórias e, sobretudo, sobre o poder que estas acarretam para criar um mundo melhor.

Apesar do seu cariz utópico, este romance impele o leitor a reflectir sobre aspectos importantes como o colonialismo, a abolição da escravatura, a independência, o capitalismo, o comunismo, a liberdade, a educação, o amor e a morte.

Se ainda não leram este autor, fica a recomendação.