28 outubro, 2024

A face por trás da máscara

                                                      Foto retirada da Internet, do filme Joker: 
https://disparada.com.br/coringa-otimo-filme-mediano/
 



Desilusão.
Enorme desilusão.

Levo muito tempo a assumir que o relacionamento que tenho com uma pessoa se possa tornar numa verdadeira e sincera amizade. Dou-me bem com a maioria das pessoas com quem privo, quer pessoal quer profissionalmente. Mas quando se coloca a possibilidade de ter um/a amigo/a, fico ali num limbo e não avanço com confiança porque temo a desilusão de não ser correspondida. Torno-me exigente, crio parâmetros elevados e fico atenta aos mínimos pormenores. Este meu carácter vai-se agravando com a idade, no sentido em que vou afunilando as características que exijo para aceitar e retribuir a amizade de alguém.

Esta minha maneira de ser, implica que tenha poucos amigos. Mas os que tenho, posso garantir que o são mesmo.

Apesar de todo o meu cuidado (exagerado, dir-me-ão), vou tendo algumas decepções. E, recentemente, esbarrei numa enorme.
No início, parece que adivinhava, foi um percurso difícil de aproximação, de aceitação da amizade. Não foi uma “amizade “ à primeira vista. Como quase sempre, criei as minhas barreiras e duvidei de algumas palavras, de algumas atitudes. Porque, como diz Saramago, “Dentro de nós há uma coisa que não tem nome, essa coisa é o que somos.” E, quando o que somos, é nutrido por algum aparente fingimento, a dúvida instala-se.
Hoje, entendo que essas minhas hesitações iniciais eram óbvias e que devia ter seguido a minha intuição. Ainda me pergunto como, com tanto cuidado que tenho, me deixei envolver e intuí que podia ser uma amizade sincera e recíproca.
Eu, fui ingénua, mas sincera. Acreditei nas palavras, não cudei nos sinais que ia detectando em pequenas acções, em algumas atitudes e que me lembro de ter questionado.
Fui considerada amiga enquanto deu jeito, enquanto havia proveito.
Lamento a desonestidade. Repugno a hipocrisia. Vivi tempos de inquietação, de incompreensão. Perguntar-me-ão se, por perder um/a amigo/a, vale a pena tanto desassossego. Sim, vale, porque, como já o referi, quando escolho ser “amiga” é porque acredito que é um ganho. Mas, desta vez, enganei-me e, recorro a uma citação de Bukowski que, talvez, clarifique o meu falhanço: “Para você, eu era um capítulo. Para mim, você era o livro”. Valorizei em demasia a relação de amizade. 

Passado cerca de um ano, o tempo curou a revolta, amansou a inquietação, mas a tristeza do engano ainda permanece.

Eu sei que “Uma andorinha não faz a Primavera”, mas a vida ensina-me a não colocar as expectativas muito elevadas, a duvidar, a agir com precaução. As pessoas desiludem-me cada vez mais e, isto, é tão válido nas amizades, como nas relações profissionais. As virtudes e os valores humanos estão em défice. 

GR


27 outubro, 2024

𝒄𝒐𝒎𝒑ê𝒏𝒅𝒊𝒐 𝒑𝒂𝒓𝒂 𝒅𝒆𝒔𝒆𝒏𝒕𝒆𝒓𝒓𝒂𝒓 𝒏𝒖𝒗𝒆𝒏𝒔, de Mia Couto

 


Autor: Mia Couto
Título: compêndio para desenterrar nuvens
N.º de páginas: 142
Editora: Caminho
Edição: Outubro 2023
Classificação: Contos
N.º de Registo: (3509)

OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


Em compêndio para desenterrar nuvens, Mia Couto presenteia-nos com vinte e dois contos que testemunham fragmentos de vida de uma realidade moçambicana actual. Estas estórias entretecem o real e o imaginário, exploram cenários de um quotidiano difícil onde, ainda prevalece a guerra, a miséria, a violência, o analfabetismo.
“A vizinha fazia o luto, tal como fizera o viver: sem que ninguém se apercebesse de que existia.
Sabia-se dela quando, para além das paredes, escutávamos o marido que a espancava e nunca ninguém no bairro se deu ao incómodo de intervir. (…) Acudir, seria, além disso, um imperdoável desrespeito para com o dono da casa.” (p. 23)

Ao longo do livro e nos diversos textos, o autor de forma irónica relata factos e denuncia situações de violência, de alcoolismo, de “raivas milenares”, de “vozes subversivas”, de maleitas próprias da velhice, de “modernices” como as redes sociais e as tecnologias. Denota-se a preocupação do autor com a sociedade, com a guerra, com as pessoas que ainda se encontram enraizadas numa cultura “de um país sem chão”.

Mia Couto usa um estilo poético que lhe é bem particular, contudo, nestes textos distancia-se dos usuais neologismos, que tanto aprecio, e apropria-se de alguns provérbios (“Mais vale ter o tempo como doença do que o futuro como inimigo”) e do uso da oralidade tão característica das estórias africanas.

“Nessa noite, ninguém dormiu na aldeia, as pestanas palpitando como descontrolados ponteiros de um enlouquecido relógio.” (p. 35). É com imagens deliciosas como esta que Mia Couto convida o leitor a mergulhar nas emoções de um povo sofredor, apesar da sua riqueza cultural. Recomendo muito. 


25 outubro, 2024

F(o)lio 2024 | Festival Literário de Óbidos | Inquietação

 


18, 19 e 20 de Outubro de 2024. Três dias de Inquietação. Três dias de mergulho literário em boa companhia. 
Conversas feitas de palavras... de inquietação... de questionamento... Medo... Luto... Filosofia... Arte.... Humor... de sorrisos... de aplausos... de abraços...  de descobertas... Encontros...
Conversas feitas de música... de histórias contadas e cantadas com chapéus...
Convívio feito de brindes... degustação... chocalate...  palavras... sorrisos... abraços...
Autógrafos... Fotografias... Exposições... Ilustrações... Cartoons... Ecomercado... Tapetes... Beleza... 

Livrarias. Muitas livrarias. Livros. Muitos livros. Palavras leves, belas, pesadas... Muitas palavras...


  

. Madalena Sá Fernandes

. Mónica Ojeda
. Isabel Lucas

. José Luís Peixoto

. Max Potter
. Tiago Ferro
. José Mário Silva

. Orquestra Juvenil da SMRO 
. Inês Fouto

. António Castro Caeiro
. Valério Romão

. Sérgio Godinho
. Luís Afonso
. Cláudia Marques Santos

:Rui Couceiro
. Rafael Gallo

. Luisa Sobral
. Paula Cusati

. José Eduardo Agualusa
. Marta Lança
. Isabel Lucas

. Mia Couto
. Zeferino Coelho

. Juan gabriel Vásquez
. Karina Sainz Borgo
. Luís Ricardo Duarte

. Alberto Manguel
. Irene Vallejo
. António Costa Santos

. Melanie Russo 

. André Carrilho
. João Fazenda
.Pedro Piedade Marques









23 outubro, 2024

Morre lentamente...


  

Morre lentamente quem não viaja,
quem não lê, quem não ouve música,
quem não encontra graça em si mesmo.

Morre lentamente quem destrói o seu amor-próprio,
quem não se deixa ajudar.

Morre lentamente quem se transforma em escravo do
hábito,
repetindo todos os dias os mesmos trajetos,
quem não muda de marca,
não se arrisca a vestir uma nova cor
ou não conversa com quem não conhece.

Morre lentamente quem faz da televisão o seu guru.

Morre lentamente quem evita uma paixão,
quem prefere o negro sobre o branco
e os pontos sobre os "is" em detrimento de um
redemoinho de emoções justamente as que resgatam o brilho dos olhos, sorrisos dos bocejos, corações aos tropeços e sentimentos.

Morre lentamente quem não vira a mesa quando está infeliz,
quem não arrisca o certo pelo incerto para ir atrás de um
sonho, quem não se permite pelo menos uma vez na vida
fugir dos conselhos sensatos.

Morre lentamente, quem passa os dias queixando-se da
sua má sorte ou da chuva incessante.

Morre lentamente, quem abandona um projeto antes de
iniciá-lo, não pergunta sobre um assunto que desconhece
ou não responde quando lhe indagam sobre algo que sabe.

Morre lentamente...


Pablo Neruda

21 outubro, 2024

𝑶𝒍𝒉𝒂𝒓 𝒑𝒂𝒓𝒂 𝒕𝒓á𝒔, Juan Gabriel Vásquez


Autor: Juan Gabriel Vásquez
Título: Olhar para trás
Tradutor: Vasco Gato
N.º de páginas: 490
Editora: Alfaguara
Edição: Setembro 2021
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3342)

OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐


Olhar para trás entrelaça uma história de vida, a de Sergio Cabrera, realizador colombiano, e a trajetória política da Colômbia e da China do século XX.
Juan Gabriel Vásquez (JGV) mesclando realidade e ficção, de forma sublime, oferece-nos um relato avassalador. Pela voz do protagonista, Sergio Cabrera, percorremos caminhos complexos da Guerra Civil de Espanha, do exílio na América Latina (vários países), da Revolução Cultural da China de Mao e da guerrilha na selva colombiana.

A morte de Fausto Cabrera, pai de Sergio, com 92 anos surge no início da narrativa e é o pretexto para a rememoração de uma vida fascinante repleta de lutas, de convicções, de mágoas, de silêncios, mas também de amor pela família, pela causa política, pelo cinema.
Sergio Cabrera e a sua família (avô, pais e irmã) viveram de forma activa e determinada os ideais de esquerda. Viveram na China para um melhor entendimento da ideologia de Mao e regressaram à Colômbia com o intuito de replicarem os seus conhecimentos, integrando os grupos de guerrilha durante alguns anos.
Decepcionados e desencantados pelas acções do partido comunista, acabam por abandonar a guerrilha e fugir do país. “ A decepção de Luz Elena (a mãe) foi dilacerante. Sentia-se traída pelo partido ao qual entregara os últimos anos da sua vida.” (p. 420). O pai que “era uma figura de renome, da qual a gente do teatro (mas também a da televisão e do cinema) falava com o respeito suscitado pelos pioneiros, ainda que as controvérsias sempre o tivessem rodeado e tivesse tantos amigos como inimigos.” (p. 16).
A morte do pai marca, para o filho, o fim de um ciclo. Sérgio, então em Lisboa, com uma restrospectiva dos seus filmes agendada para Barcelona, decide que não viajará para assistir ao funeral do seu pai, na Colômbia. O seu “lugar é com os vivos, não com os mortos.” (p. 24)

Este livro, Olhar para trás, resgata a memória de um passado doloroso da história colombiana. A partir das conversas que JGV manteve com Sergio Cabrera e a sua irmã Marianella, ao longo de sete anos, e da recolha de testemunhos, o autor constrói a narrativa de uma família devastada e decepcionada pelo fanatismo comunista. A partir dos factos vividos, nas contradições e nas emoções reveladas por Sergio, o autor acrescenta-lhe a sua subjectividade e interpretação e lega-nos um romance brutal que tem tanto de histórico como de vida privada e intima.

No F(o)lio, em Óbidos, JGV referiu que “um romancista não vale nada se não for um historiador de emoções”. Penso que neste romance o conseguiu muito bem porque a sua narração vai muito para além da mera descrição dos factos vividos por Sergio Cabrera. Esta afirmação, também referida por outras palavras, na Nota do autor, clarifica a epígrafe de abertura deste livro:
“Pois, segundo a nossa visão das coisas, um romance deveria ser a biografia de um homem ou de um caso, e toda a biografia de um homem ou de um caso deveria ser um romance” (FORD MADOX FORD)

Recomendo. Li, apenas, dois dos vários livros publicados em Portugal, mas fica a promessa de outras leituras.


13 outubro, 2024

Desafio de escrita criativa lançado por João Pinto Coelho

 


Querem um desafio a sério? Então leiam até ao fim:

Há uns dias, vi esta mulher numa praia às moscas. Chegou cedo ao areal, não se despiu, sentou-se, olhou para o mar e começou a escrever.
Para um romancista, o voyeurismo é tão irresistível como as leituras vorazes, por isso, expondo-me aos vosso insulto, fotografei-a às escondidas.
Usei zoom para os pormenores, preservo-lhe o anonimato.
Vejam a sequência das imagens, uma sequência que se repetiu pela manhã fora:
1 - escreve,
2 - olha demoradamente sei lá para onde,
3 - volta a escrever, olha em frente. (o que a detém? Será sintaxe? Será paixão?)
... e por aí adiante.

Quem é ela?
Para quem escreve?
O que escreve?
Uma carta de amor? de despedida? Com o que sei desta mulher, pode não passar de uma lista do supermercado.
Mas não vos apetece propor outra coisa? Não vos apetece escrever um conto?
Se não vos parecer irresistível, por favor, nem tentem. Será sempre coisa pequena, 1500 palavras, no máximo.
Não sei se precisam de detalhes para a vossa história, mas ela escreve a lápis numa folha azul. E pousa-a num romance…  ou será num livro de poemas?
E se for num livro de poemas, será provável que um deles, se calhar o de abertura, lhe seja dirigido?
Já adivinharam até onde podem ir com quatro fotografias?

Escrevam, partilhem com quem goste de escrever, mandem-me o que fizeram e, se quiserem, publico-o na minha página.

_____________



O resultado:


O mar. Sempre o mar

Era cedo. O sol ainda se escondia para além das nuvens. O mar, no seu vai e vem, cortava o silêncio de uma praia ainda vazia, ou quase.

A mulher chegou num passo decidido, estendeu a toalha, descalçou as sandálias e sentou-se. Repentinamente, tirou do saco um livro e abriu-o para retirar as folhas azuis que lá se encontravam. Com um lápis escreveu, riscou o que escrevera, olhou para o horizonte como se ensaiasse as palavras que ia escrever, respirou profundamente, debruçou-se sobre as folhas e escreveu. Escreveu durante uns longos minutos. Riscou, mirou de novo o mar, e voltou a escrever. Pressentia-se a urgência da escrita.

Maria já antes tinha tentado resgatar no papel as emoções de um longo fim-de-semana passado a dois. O sorriso de M. veio quebrar a monotonia de uma vida arrumada, há muito sem surpresas. Foram três dias de companheirismo, de risadas, de sol, de mar, de desejos saciados. Três dias que passaram num ápice e, provavelmente, sem repetição. M. habitava noutro lugar.

Sentia necessidade de transpor para o papel tudo o que viveu. Pareceu-lhe a única maneira fiável de manter viva essa memória e, quem sabe, um dia, talvez ousasse enviar uma cópia a M.

Em casa, no pouco tempo livre que dispunha, tentou fazê-lo mas faltava-lhe a concentração, achava ela. Desculpou-se com o barulho do autoclismo do vizinho ao lado, com a música do adolescente do piso inferior, com a agitação da rua, com o cansaço do dia de trabalho. O papel permanecia virgem, não era capaz de expressar o que sentira, o que vivera.

Certo dia, levantou-se cedo, não tinha obrigações definidas. Procurou o livro que andava a ler, Mãe, Doce Mar. Há vários dias que não lhe pegava. A cabeça andava desarrumada, as palavras que aí se emaranhavam eram outras. Olhou de novo para a capa do livro e esboçou um sorriso. Pegou nele, colocou no interior as folhas azuis e saiu apressada e convictamente. Como não pensara nisso antes.

Sentada na praia ainda pouco movimentada, as frases que em casa lhe faltaram, surgiram, primeiro, impetuosas e atabalhoadas. Depois, as palavras alinharam-se com as emoções e foi construindo uma história, a sua, que espelhava os momentos vividos e partilhados naquele engate de verão.

Quando pensou ter concluído, satisfeita e orgulhosa, olhou em redor, calmamente e avistou um casal deitado lado a lado. Pensou em M. e gostaria que fossem eles, ali, a saborear o sol ainda fraco àquela hora da manhã. Retirou o olhar e o pensamento e viu, mais atrás, um homem sentado numa toalha com uma máquina fotográfica na mão. Se tivesse olhado mais atentamente, talvez, reconhecesse o autor do livro que tinha no colo e que lhe insinuou o caminho. Um homem hábil nas palavras e caçador de instantes, que lhe captou alguns gestos que mais, tarde, serviriam para uma proposta de desafio de escrita ou, quem sabe, para um novo romance.

Desviou o olhar para o areal e para as ondas que aí se desfaziam suavemente. Respirou a tranquilidade do mar e regressou ao seu texto. Escreveu mais umas linhas, melhorou algumas frases, substituiu algumas palavras. Sorriu aliviada. Perdeu-se nas memórias ainda vivas e alimentou-as com novos ingredientes. Os sonhos eram seus. Ninguém lhos poderia roubar nem mesmo condenar. A sua vida, a partir de agora, alimentar-se-ia de uma nova vitamina. O amor.

Levantou-se e passeou no areal, mesmo junto ao mar, como se acariciasse a espuma das ondas desfeitas, num agradecimento. Demorou-se na sua quietude.

Quando regressou à toalha, pegou no saco, calçou as sandálias e retornou a casa. Tomou um banho, escolheu um vestido alegre e saiu.
Na rua, o sol, agora brilhante, acariciou-lhe o rosto.


30 de Agosto de 2024
GR

10 outubro, 2024

Nobel da Literatura | 2021 - 2024

 




2021 - Abdulrazak Gurnah (1948–) | Tanzânia | Ficção

“Pelo seu entendimento intransigente e compassivo dos efeitos do colonialismo e do destino dos refugiados no abismo entre culturas e continentes”


2022 - Annie Ernaux (1940–) | França | Romance, Memórias, Autobiografia

“Pela coragem e acuidade clínica com que desvenda as raízes, os estranhamentos e os constrangimentos coletivos da memória pessoal”


2023 - Jon Fosse (1959 - ) | Noruega | Drama, Romance

"Pelas suas peças e prosa inovadoras que dão voz ao indizível"


2024 - Han Kang (1970 - ) | Coreia do Sul  |  Romance, Poesia

"Pela sua intensa prosa poética que confronta traumas históricos e expõe a fragilidade da vida humana".


Han Kang vence Prémio Nobel da Literatura 2024

 

                                                         Foto retirada da Internet


 A Academia Sueca distinguiu a escritora sul-coreana, Han Kang, «pela sua prosa poética intensa que confronta traumas históricos e expõe a fragilidade da vida humana» e pela sua «consciência única das ligações entre o corpo e a alma, os vivos e os mortos», inovadora na prosa contemporânea, através do seu «estilo poético e experimental».

Han Kang é a 18.ª mulher a receber o Nobel de Literatura entre os 121 laureados. É a primeira escritora da Coreia do Sul a receber este prémio.
Em 2016, com A Vegetariana venceu o International Booker Prize de Ficção e, em 2018, recebeu o mesmo prémio com O Livro Branco.

A autora tem quatro livros publicados na D. Quixote: A Vegetariana (2007), Lições de Grego (2011); Atos Humanos (2014) e O Livro Branco (2016).



Li apenas um livro da autora - A Vegetariana. A minha apreciação está em   leituras...trilhos...evasões...: Han Kang (fragmentos-lte.blogspot.com) 


06 outubro, 2024

Quantos anos tenho? | José Saramago (?)




Quantos anos eu tenho?
O que importa isso?

Tenho a idade que escolho e que sinto!
A idade em que posso gritar sem temor o que penso,
fazer o que desejo sem receio de errar,
pois trago comigo a experiência dos anos vividos
e a força inabalável das minhas convicções.
Não importa quantos anos tenho,
não quero saber disso!
Alguns dizem que estou velho,
outros afirmam que estou no auge.
Mas não são os números que definem a minha vida,
não é o que dizem,
mas sim o que o meu coração sente
e o que a minha mente dita.

Tenho os anos suficientes para gritar minhas verdades,
fazer o que quero,
reconhecer velhos erros,
corrigir rotas e valorizar vitórias.
Já não preciso ouvir:
“Você é jovem demais, não vai conseguir”,
ou “Você está velho demais, o seu tempo já passou”.

Tenho a idade em que as coisas são vistas com serenidade,
mas com o desejo incessante de continuar crescendo.
Tenho os anos em que os sonhos
podem ser tocados com os dedos,
e as ilusões se transformam em esperança.

Tenho os anos em que o amor,
às vezes, é uma chama ardente,
ansiosa para se consumir no fogo de uma paixão.
Outras vezes, é um porto de paz,
como o pôr do sol que se reflete nas águas tranquilas do mar.
Quantos anos eu tenho?
Não preciso contar,
pois os desejos que alcancei,
os triunfos que obtive,
e as lágrimas que derramei pelas ilusões perdidas,
valem mais do que qualquer número.
O que importa se fiz cinquenta, sessenta ou mais?
O que realmente importa é a idade que sinto,
a força que tenho para viver sem medo,
seguir meu caminho com a experiência adquirida
e o vigor dos meus sonhos.

Quantos anos eu tenho?
Isso não importa!

Tenho os anos suficientes para não temer mais nada,
e para fazer o que quero e sinto.
A idade? Não importa quantos anos ainda tenho,
porque aprendi a valorizar o essencial
e a carregar comigo apenas o que realmente importa!




03 outubro, 2024

𝑵ã𝒐 𝑯á 𝑳𝒖𝒈𝒂𝒓 𝒑𝒂𝒓𝒂 𝑫𝒊𝒗𝒐𝒓𝒄𝒊𝒂𝒅𝒂𝒔, Francisco Moita Flores

 


Autor: Francisco Moita Flores
Título: Não Há Lugar para Divorciadas
N.º de páginas:166
Editora: Casa das Letras
Edição (6.ª): Fevereiro 2005
Classificação: Romance
N.º de Registo: (BE)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐



O que eu me diverti ao ler este livro. À boa maneira de Gil Vicente, e cumprindo o lema “ridendo castigat mores”, em Não Há Lugar para Divorciadas, Francisco Moita Flores (FMF) apresenta-nos uma história mordaz e divertida. Ele eleva ao ridículo a forma como Leônidas Júlio de Tábuas e Távora, um homem sem estudos e sem escrúpulos, se filia num partido e chega a ministro.

A acção desta paródia “decorre trinta anos depois da leitura deste livro.” (p. 76). Esta premissa é importante porque atribui à história um factor de actualidade e de continuidade futura, isto é, como o tempo da história parte do tempo da leitura (pelo leitor) e não da escrita (2003), os acontecimentos estão sempre actualíssimos.

O oportunismo, a hipocrisia, a vaidade e o adultério são os traços principais do protagonista. FMF é corrosivo na criação da sua personagem. Desta forma a política e os governantes, bem como a comunicação social são fortemente ridicularizados. Pela figura de Leónidas, o autor destaca a presunção, a preguiça, a estupidez intelectual, a manipulação e o interesse pelo poder dos políticos de ontem, de agora e de amanhã.

Recomendo este como outros livros de FMF. De leitura fácil, este livro cativa pela ironia sempre presente, pelas farpas lançadas e pelas aventuras dos “comparsas políticos”.
É uma delicia tentar atribuir as características deste ministro a outro(s) dos que nos governam nos nossos dias.




22 setembro, 2024

Canção de Outono | Cecília Meireles




Perdoa-me, folha seca,
não posso cuidar de ti.
Vim para amar neste mundo,
e até do amor me perdi.

De que serviu tecer flores
pelas areias do chão,
se havia gente dormindo
sobre o próprio coração?

E não pude levantá-la!
Choro pelo que não fiz.
E pela minha fraqueza
é que sou triste e infeliz.
Perdoa-me, folha seca!
Meus olhos sem força estão
velando e rogando àqueles
que não se levantarão…

Tu és a folha de outono
voante pelo jardim.
Deixo-te a minha saudade
– a melhor parte de mim.
Certa de que tudo é vão.
Que tudo é menos que o vento,
menos que as folhas do chão…


18 setembro, 2024

𝑫𝒆𝒔𝒈𝒓𝒂ç𝒂, de J. M. Coetzee

 



Autor: J. M. Coetzee
Título: A Desgraça
Tradutor: José Remelhe
N.º de páginas: 234
Editora: D. Quixote
Edição (7.ª): Maio 2023
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3484)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐


Dizem que é a sua obra-prima. Se é a “sua obra-prima”, não o posso confirmar porque ainda não li todos os seus livros. Mas que é uma obra-prima, é com toda a certeza.

Desgraça narra a história de sobrevivência de David Lurie, um professor de Literatura na Universidade Técnica da Cidade do Cabo, África do Sul e retrata o conjunto de tragédias que ocorrem ao longo da obra, numa sociedade decadente.
É pela voz de um narrador colado à pele do protagonista, que nas duas primeiras linhas nos é apresentado David Lurie “Para um homem de sua idade, cinquenta e dois anos, tem resolvido bastante bem, segundo ele, o problema do sexo”.

Desde logo, Coetzee antecipa o problema que conduzirá o professor universitário a uma auto-destruição que por razões óbvias não vou divulgar. Posso, contudo, referir que num país que enfrenta uma tensão sócio racial, pós-apartheid, os preconceitos dominam, a vingança estabelece-se e as acusações sobrepõem-se à realidade. O professor de poesia romântica, homem branco, culto e grande entusiasta da cultura europeia, vai passar por um processo complexo de exoneração. Humilhado perante os seus colegas e alunos decide não se defender e abandonar o ensino. Sai da cidade e vai viver com a sua filha Lucy, numa pequena propriedade rural. A relação não é fácil entre eles. E a situação agrava-se quando David e Lucy são assaltados e agredidos de forma inominável por três homens de raça negra. A partir daqui Coetzee é sublime na exploração dos conflitos raciais marcados pela segregação e pelos costumes geracionais.
(…) foi isso que os invasores conseguiram; foi isso que fizeram a esta jovem confiante e moderna. Tal como uma nódoa, a história espalha-se pela região. Não a história dela, mas sim a deles: eles é que mandam. Como a colocaram no seu lugar, como lhe mostraram aquilo para que serve uma mulher.” (p. 125)

Coetzee, numa escrita incisiva, sóbria e sincera, coloca o leitor numa situação ambígua que, ora sente compaixão pela personagem, ora o critica pelas atitudes e decisões que toma. Ao longo da narrativa e à medida que os problemas se vão avolumando, Lurie não consegue resolvê-los, não consegue resolver-se. Tudo isto faz que o leitor anseie pelo final. E que final. Que metáfora da vida.

Recomendo muito. Para além da força das palavras nos assuntos abordados, gosto sobremaneira da forma como estruturou a narrativa e do recurso ao discurso indirecto livre e aos diálogos curtos e secos que colocam a narrativa num patamar superior.

 


14 setembro, 2024

𝑨 𝑫𝒆𝒔𝒐𝒃𝒆𝒅𝒊𝒆𝒏𝒕𝒆 - 𝑩𝒊𝒐𝒈𝒓𝒂𝒇𝒊𝒂 𝒅𝒆 𝑴𝒂𝒓𝒊𝒂 𝑻𝒆𝒓𝒆𝒔𝒂 𝑯𝒐𝒓𝒕𝒂, de Patrícia Reis

 


Autora: Patrícia Reis
Título: A Desobediente
N.º de páginas: 423
Editora: Contraponto
Edição (4.ª): Maio 2024
Classificação: Biografia
N.º de Registo: (3582)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐



Trata-se de mais uma importante biografia sob a chancela da Contraponto. À semelhança de outras que já li (curiosamente, ainda só no feminino) também esta revela um inegável trabalho de pesquisa e uma qualidade que dá a conhecer a relevância literária, política e cívica da biografada.

Patrícia Reis entra hábil e exemplarmente no mundo d’ A Desobediente poetisa, escritora, jornalista, e feminista Maria Teresa Horta (MTH). É com admiração que percorremos as páginas escritas e descobrimos o seu percurso.

MTH desde pequenina que demonstrou coragem e coerência na luta dos seus ideais. Ao longo da sua vida sofreu desilusões que deixaram marcas profundas, como o abandono da mãe, a indiferença do pai, a incompreensão de muitos, a censura, a ameaça, a doença, a morte do marido. Cedo, captou “o sentido do proibido, daquilo que importava calar” e percebeu que ser mulher em Portugal era uma grande desvantagem. Era estar sujeita a um homem que decidisse por ela. Carecia de uma autorização para estudar, trabalhar, viajar e até para ler determinados livros. Era estar proibida de votar, de emitir opinião abertamente, não ter direito a uma conta bancária, em nome próprio, e não ter privacidade em determinados assuntos. Para fugir à pressão e à vigilância do pai, MTH decide casar e assim, conquistar a sua emancipação e uma identidade própria, isto é, reivindicar a sua feminilidade, a sua liberdade e sobretudo o seu lugar no mundo.

Inteligente, curiosa, activa, desobediente, de uma lucidez incrível, MTH incentivada pela avó (“uma mulher especial, feminista, uma alma capaz de guardar um segredo”) dedica horas à leitura e à escrita e descobre o cinema. A escrita, a poesia “era uma forma de sossego”. Os poemas “nasciam-lhe nos dedos” e neles encontraremos a sua dor, o seu desamor, a sua paixão pelo marido, “o seu muso” (Luís de Barros), a luta pelos direitos da mulher, pelo debate das questões de sexualidade, da nudez do corpo, pela libertação sexual. Este último aspecto tornou-se amplamente revelador no livro Minha Senhora de Mim.
“ (…) não era só o erotismo, era a noção de liberdade que estava em causa. (…) Trata-se de uma poesia amorosa, sensual, erótica.” (p. 212). É óbvio que o livro foi apreendido pela PIDE.


Para ultrapassar dificuldades financeiras, MTH trabalhou como jornalista em vários jornais. Tem várias obras publicadas e foi uma das três Marias que escreveu As Novas Cartas Portuguesas, uma das mais importantes obras feministas portuguesas, publicada antes do 25 de abril que as levou à prisão, mas também as catapultou para o reconhecimento.

Sobre tudo isto e muito mais, Patrícia Reis, habilmente, cativa e surpreende o leitor. Escreve com elegância sobre Teresinha, uma amiga, a mulher revolucionária, libertária que viveu em tempos de opressão política. No prefácio, a autora refere que há uma relação de amizade entre as duas e acrescenta que se trata de “uma biografia com colaboração da biografada”. É um privilégio contar com o contributo das memórias ainda vivas de MTH, mas é simultaneamente uma enorme responsabilidade. Patrícia Reis fê-lo muito bem e cumpriu a sua missão.

Na revista Ler (Verão 2024 - n.º 171), Isabel Lucas inicia o seu artigo “Considerem o Leitor” com uma referência ao livro O Prazer da Leitura, de Proust, mais concretamente sobre a perdição do leitor em relação a um livro, no sentido em que tudo “o que rodeia o leitor passe a secundário face à intimidade que se cria entre ele e o objeto que lê. ( …) porque nada é mais real naquele momento do que esse encontro entre duas subjetividades: a do escritor e a do leitor.” E eu acrescentaria uma terceira, a da biografada.

Esta leitura, transformou-se, para mim, no tal “prazer divino” (epíteto de Proust) da descoberta de uma mulher que viveu e lutou intensamente. Por tudo o que nos deu, a nós mulheres, devemos-lhe o reconhecimento e a leitura da sua vasta obra. Já li alguns, mas não ainda, o suficiente.





08 setembro, 2024

𝑩𝒖𝒅𝒂𝒑𝒆𝒔𝒕𝒆, Chico Buarque

 


Autor: Chico Buarque
Título: Budapeste
N.º de páginas: 135
Editora: D. Quixote
Edição: Fevereiro 2004
Classificação: Romance
N.º de Registo: (1719)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


Trata-se de uma releitura. Na viagem que realizei a Budapeste, considerei que seria oportuno fazer-me acompanhar do romance de Chico Buarque. Confesso que da primeira leitura (2005) já não tinha muita memória, apenas a de um homem, escritor… pelo que foi bom rememorar a história e concluir que o Chico tem razão em relação à língua húngara. No tempo em que lá estive não consegui pronunciar nem entender uma única palavra. É uma língua imperscrutável. “é a única língua do mundo que, segundo as más-línguas, o diabo respeita.” (p. 12)

Chico como amante das palavras que é, no romance foca-se na dificuldade de pronunciar e de entender as palavras húngaras e não tanto na cidade. O protagonista deambula pela cidade à descoberta do novo idioma, estranho e complicado, pelo qual se apaixona. Esta paixão arrebatadora vai alterar por completo a sua vida.

Budapeste é uma narrativa na primeira pessoa. José Costa, o protagonista, é um escritor fantasma (ghost-writer) de talento e após a conclusão de “ O Ginógrafo” encomendado por um alemão que vive no Rio de Janeiro, vai a um Congresso e acaba por ir parar, numa escala, a Budapeste. A partir daí na busca de um entendimento de si próprio começa a ter uma vida dupla. Dois países, duas línguas, duas culturas, duas mulheres (Vanda e Kriska), dois filhos. É no vai e vem destes mundos que se cruzam as histórias fragmentadas de um homem atormentado que vagueia pelas ruas das duas cidades e se recriam outros sentidos que levantam questões de existência, de identidade.

Numa escrita clara e labiríntica com laivos de humor, o autor ao apresentar uma sobreposição de histórias, reflexo de uma aflição existencial, transporta o leitor para situações absurdas e, em determinados momentos, chega mesmo a confundi-lo na mente desorientada do protagonista. E leva-o a reflectir sobre o sentido da vida e das opções que nela fazemos.
Recomendo a leitura porque como referiu Wisnik “ Budapeste, no exacto momento em que termina, transforma-se em poesia.”


03 setembro, 2024

Budapeste

Budapeste, a capital da Hungria, é dividida pelo rio Danúbio é uma cidade bonita e rica em termos arquitectónicos. É agradável passear nas largas avenidas e descobrir os edifícios da época imperial,  portadas e varandas art nouveau, algumas lojas antigas, monumentos majestosos, parques e pontes. Destaco a ponte Széchenyi Lánchíd que liga o Monte de Buda à margem plana de Peste.













02 setembro, 2024

𝑨 𝑻𝒓𝒊𝒍𝒐𝒈𝒊𝒂 𝒅𝒆 𝑵𝒐𝒗𝒂 𝑰𝒐𝒓𝒒𝒖𝒆, de Paul Auster

 

Autor: Paul Auster
Título: A Trilogia de Nova Iorque
Tradutor: Alberto Gomes
N.º de páginas: 298
Editora: Biblioteca Sábado
Edição: Junho 2008
Classificação: Novelas
N.º de Registo: (3557)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐



Livro surpreendente. O que de início aparenta um romance policial, vai evoluindo para questões existenciais, de reflexão e questionamento do “eu” a partir de um “outro”.

Nas três histórias - Cidade de Vidro, Fantasmas e Quarto Fechado - que compõem o livro, o efeito-surpresa está nos nomes das personagens e no absurdo das tramas vividas pelos protagonistas, todos detectives, que se encontram completamente à deriva.

As três histórias, que podiam bem ser apenas uma, perturbam e incomodam na medida em que a obsessão excessiva da personagem principal se cola à pele do leitor. Não é possível desvincular-se da agitação interior que a invade e com ela mergulha no abismo.
"Nova Iorque era um espaço inesgotável, um labirinto de passos intermináveis;(…) ficava sempre com a sensação de estar perdido. Perdido, não apenas na cidade, mas também dentro de si (…). Ao caminhar sem destino, todos os lugares se tornavam semelhantes, deixando de ter importância o sítio onde se encontrava. Nos seus melhores passeios, conseguia atingir o sentimento de que não estava em sítio algum. Nova Iorque era esse nenhures que havia construído à sua volta, e apercebeu-se de que não tencionava abandonar aquela cidade, nunca." (pp. 7 e 8).

No final da última história, o autor, explica a relação entre os três livros, sem, contudo, desvendar alguns mistérios, mantendo o leitor a pairar perante o não-dito, a incerteza do enigma.

A escrita de Auster é enganosa porque a simplicidade inicialmente aparente, torna-se intrincada e densa. O jogo de misturar narrador e escritor (Paul Auster é também personagem) confunde o leitor para o melhor prender à história. (“Para si, Auster não passava de um nome, um invólucro sem conteúdo. Ser Auster significava ser um homem sem interior, um homem sem pensamentos.”(p. 62)).Também não pretende apresentar soluções para os mistérios, pelo contrário, constrói personagens complexas e caóticas que na busca de um sentido acabam por se perder completamente. E o leitor deixa-se conduzir página a página e, no final, sai maravilhado com a originalidade da escrita, mesmo sem entender toda a complexidade da trama.

Sempre fugi dos livros de Paul Auster. Tenho uma amiga que há muito tenta que eu os leia, mas sempre me esquivei. Não tenho nenhuma razão que o justifique. Manias. Porém, com a morte dele, achei que tinha chegado o momento de lhe dar uma oportunidade. Gostei. Já cá tenho mais dois à espera da sua vez.



01 setembro, 2024

Leituras | 8 Meses

 


29 agosto, 2024

𝑼𝒎 𝑶𝒖𝒕𝒓𝒐, Imre Kertész

 

Autor: Imre Kertész
Título: Um Outro 
Tradutor: Ernesto Rodrigues
N.º de páginas: 97
Editora: Editorial Presença
Edição: Junho 2009
Classificação: Não ficção
N.º de Registo: (3613)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


Um outro é ao mesmo tempo o diário de um escritor em busca de uma identidade criativa e existencial; a crónica de um país também em busca de uma orientação; um conjunto de observações sobre o seu percurso literário, a civilização europeia, e o seu país, a Hungria; notas para futuros romances; lembretes de memórias fugazes de algumas viagens em trabalho; lembranças dos campos de concentração (esteve em dois); reflexões sobre o anti-semitismo, o sentimento nacional, o extermínio, a verdade e a mentira.

Após ter sobrevivido ao Holocausto, Kertész foi basicamente condenado ao silêncio durante quarenta anos pelo partido comunista que na altura acedeu ao poder, tendo os seus livros sido ignorados. Com a queda do muro de Berlim, deixa o seu país e, e vai viver para a capital alemã.
“Abriu-se, assim, a porta da cela em que me fecharam durante quarenta anos, e pode dar-se que seja bastante para me perturbar. Não se pode viver a liberdade onde se viveu o cativeiro”. (p. 10)

Por isso, neste livro Kertész está “numa relação de reciprocidade com a minha (sua) vida. Esta relação tem um nome: sujeição – Se fosse só isso, até ia bem. Mas que fragmento desta vida estilhaçada diz “eu”?” (p. 13) . É um autor em busca de um outro “eu”, isto é, em busca da sua identidade e da compreensão da sua realidade. “Eu, um outro” é um verso de Rimbaud (Je, est un autre) que o autor cita várias vezes ao longo dos seus textos e consta também como epígrafe. Aliás, as quatro epígrafes selecionadas remetem claramente para a problemática do “Eu”.

Ao longo das páginas, os seus apontamentos, apresentados como um caleidoscópio, reflectem claramente a ideia de alteridade. O autor apresenta-nos o seu entendimento do mundo quer através das suas vivências presentes, das suas memórias quer ainda da sua natureza criativa, questionando-se sempre sobre quem é, o que foi a sua vida (“o que é a vida perfeita?”), as suas obras, a sua qualidade como escritor.

Kertész foi considerado de forma crítica por alguns como sendo o “autor do Holocausto”. É um facto que os seus livros desenvolvem essa temática, mas vão muito para além disso. Como já referi, e neste livro fica bem claro, a sua preocupação é o questionamento das ideologias, das ditaduras, do horror, da sua interpretação do mundo.

Posso concluir que Kertész é um homem amargurado e sofredor que vive em constante questionamento, que duvida do que pensa, que não compreende a sua vida, que se autocritica (“ o eu estranho enraizado em mim o moralista que se autojustifica, o criador de fábulas mentiroso.” (p. 75)), que não se interessa pelo ser que é, que não sabe quem é. Mas uma coisa é certa e é ele próprio que a confessa “ tenho uma só identidade, a identidade da escrita.” (p. 46)
Felizmente, que esta identidade existe, pois só assim podemos desfrutar da sua obra. Não é uma leitura fácil. O texto não é cronológico, encontra-se entrecortado (em jeito de apontamentos) e saltita no tempo e nos espaços.

Vou procurar outros livros do autor.



Traz outro amigo também

 

                                                             Ilustração de Rachel Caiano



Amigo
Maior que o pensamento
Por essa estrada amigo vem
Por essa estrada amigo vem
Não percas tempo que o vento
É meu amigo também
Não percas tempo que o vento
É meu amigo também
Em terras

Em todas as fronteiras
Seja bem vindo quem vier por bem
Seja bem vindo quem vier por bem
Se alguém houver que não queira
Trá-lo contigo também
Se alguém houver que não queira
Trá-lo contigo também

Aqueles
Aqueles que ficaram
Em toda a parte todo o mundo tem
Em toda a parte todo o mundo tem
Em sonhos me visitaram
Traz outro amigo também
Em sonhos me visitaram
Traz outro amigo também

Zeca Afonso


27 agosto, 2024

𝑶 𝑰𝒕𝒂𝒍𝒊𝒂𝒏𝒐, Arturo Pérez-Reverte



Autor: Arturo Pérez-Reverte
Título: O Italiano
Tradutores: Cristina Rodriguez e Artur Guerra
N.º de páginas: 365
Editora: Asa
Edição: Agosto 2023
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3513)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐



É o terceiro livro que leio de Arturo Pérez-Reverte e estou completamente rendida à sua escrita. Ora apreciem:
“ O dia languidesce aprazível, rotineiro: o céu torna-se violáceo sobre os terraços das casas e a luz crepuscular alonga e estende as sombras.” (p. 37)

Gosto da lucidez como narra os factos. Este romance é baseado em acontecimentos reais que ocorreram durante a Segunda Guerra Mundial na baía de Algeciras e Gibraltar, em 1942 – 1943. Na baía, um pequeno grupo de mergulhadores de combate italianos altamente especializados fazem explodir e afundar navios dos países aliados.
O Italiano é assim um romance de estratégia, de espionagem, de sabotagem, de guerra, mas também de amor, de uma paixão contida.

Por norma, o autor oferece-nos narrativas cativantes com contornos insólitos e com personagens de carácter, e esta não é excepção.
Pérez-Reverte executa na perfeição a alternância entre o passado (os acontecimentos) e o presente (a escrita), o ritmo da narrativa, as marcas do tempo, os silêncios que indiciam a tensão e a quietude das ações quer debaixo de água quer nos diálogos entre as personagens. O domínio da sua escrita, que se intensifica nas descrições, é fabuloso; a elegância como cala alguns dados sobre os protagonistas, a imparcialidade como descreve os factos, mais centrada nas acções em si do que no que elas representam; o reconhecimento do mérito e da honra do adversário atribuem a este romance uma intensidade e uma beleza fascinantes.

Pérez-Reverte ao ser personagem no enredo dá mais credibilidade à história. Como jornalista e escritor, tal como na sua vida, acrescenta informação sem atrapalhar a acção dos protagonistas. “Chegámos a um ponto desta narrativa em que os factos cedem o lugar à imaginação: um espaço em branco que, apesar da sua importância no que aconteceu mais tarde, só pode ser preenchido com suposições. E algumas delas são, inclusivamente, contraditórias. ” (p. 129)
A complexa relação que se estabelece entre os dois protagonistas Teseo (o italiano) e Elena (a livreira) é narrada de forma sublime, com uma enorme delicadeza.
“ O mar está calmo e só se ouve o rumor suave da água que lambe com suavidade a areia, onde um reflexo ténue assinala o contorno da margem. (…)
O italiano.
É isto o que realmente ela tem na cabeça.
Lombardo, Teseo, recorda; e por alguma estranha razão estremece ao fazê-lo, ao ponto de, sentada no selim da bicicleta, afastar as mãos do guiador e cruzar os braços como se de repente sentisse frio.” (p. 39)

Ao longo da narrativa, o leitor acompanha silenciosamente os mergulhadores e, intimamente, deseja que as suas acções obtenham sucesso; anseia que a paixão entre Elena e Teseo se cumpra e sobreviva à guerra; testemunha e admira a coragem e a frieza de Elena perante a sua iniciativa.

Estamos perante uma obra magistral, uma intensa “história de amor, mar e guerra” que de forma equilibrada mistura ficção e realidade e desperta no leitor a curiosidade sobre estes heróis anónimos da Segunda Guerra Mundial que não têm sido muito divulgados.

Recomendo este e todos os livros do autor, mesmo os que ainda não li, pois fico com a certeza de que não desiludirá.




26 agosto, 2024

Tertúlia com Rodrigo Guedes de Carvalho sobre o livro As Cinco Mães de Serafim

 

Foto Centro de Artes | Município de Sines


Um momento de tertúlia para falar de livros é sempre agradável. Mas quando contamos com a presença do escritor, torna-se bem mais interessante e enriquecedor. Perceber o porquê daquele enredo e das personagens, ouvir falar do processo criativo eleva-nos a outro patamar no entendimento da obra.

Foi muito bom. è importante que se dê continuidade a este tipo de iniciativas que promovem a leitura e a partilha de opiniões.

A minha opinião sobre o livro está publicada mais abaixo. Aceder aqui



25 agosto, 2024

Espectáculo RUGE

 

                                 Foto Centro de Artes | Município de Sines (divulgação)

                   

Poemas e canções pelas vozes de Rodrigo Guedes Carvalho e Daniela Onís e  música de Ruben Alves. Auditório Centro de Artes de Sines, 24 agosto 2024, 22 horas. 

Mais de hora e meia de um espectáculo bem concebido, inteligente, emotivo e oportuno que nos convoca a sentir as palavras ditas e cantadas com raiva, paixão, ironia e sentido de humor e  nos convida a reflectir e a RUGIR.


                                   Foto de Dina Rito - Centro de Artes | Município de Sines 


21 agosto, 2024

𝑪𝒂𝒓𝒖𝒏𝒄𝒉𝒐, de Leyla Martínez

 


Autora: Layla Martínez
Título: Caruncho
Tradutor: Guilherme Pires
N.º de páginas: 122
Editora: Antígona
Edição: Março 2024
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3579)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


Caruncho é uma história que entretece ficção e realidade muito condimentada de sobrenatural, “o combustível da raiva e o motor da fuga possível à musculada mão de aço patriarcal”. Narrada a duas vozes, a avó (a velha) e a neta, tem ainda como protagonista a casa onde vivem.

“Quando passei a soleira da porta, a casa precipitou-se sobre mim. Este monte de tijolos e sujidade faz sempre a mesma coisa, lança-se sobre qualquer pessoa que atravesse a porta e retorce-lhe as entranhas até a deixar sem fôlego.”

Este é o início da narrativa que prende e assusta de imediato o leitor. Que casa é esta? Que personagens vivem nesta casa?
Uma casa assombrada, suja, carunchosa que corrói e destrói. Uma “casa que range, que treme, que se encolhe e agiganta (…) que suspende a soberba dos poderosos e a violência arcaica, porém contemporânea, contra as mulheres”, que guarda sombras e segredos. Uma casa visitada por “anjos perigosos e pouco inocentes”, santos e vozes e lamentos. Uma casa que mantém cativas as mulheres que nela permanecem e por inerência o leitor que se deixa conduzir pela trama e da qual vai sair maravilhosamente perturbado. 
Fará isto sentido? Faz, faz todo o sentido porque, afinal, é da guerra civil espanhola, do período negro do franquismo, de uma Espanha agreste, traumatizada pela violência e pela opressão que a autora nos fala. Só que fá-lo de uma forma sublime. Recorre a fantasmas, bruxas, santos, anjos, maldições para retratar os traumas geracionais, o ódio, o desejo de vingança, a ânsia de punir os opressores.
Na aldeia onde vivem, a avó e a neta são evitadas e temidas pelos habitantes. São bruxas.

Assim, neste romance, as duas mulheres vivem uma pesada herança de memórias dolorosas da qual não conseguem escapar e que, como o caruncho, as corrói e destrói. A raiva, o ódio e o horror patentes na casa, nas paredes, nas portas, nos armários surgem num crescendo ao longo da narrativa e reflectem o ambiente de desespero e de sofrimento de décadas de violência e opressão.

A cada página, o leitor vive intensamente as emoções das personagens e com elas celebra raivosamente a força e a garra pela superação das injustiças sociais e de género, a consumação da vingança, a aniquilação dos poderosos.

Recomendo a leitura e fico à espera do próximo livro de Leyla Martínez.