04 agosto, 2025

A pediatra, de Andréa Del Fuego

 


Título: A Pediatra
N.º de páginas: 203
Edição (3.ª): Abril 2025
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3716)




OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐








03 agosto, 2025

Exposição | Figure Out (Personagens de Literatura) - Capítulo II | Ana Baleia

Exposição de esculturas têxteis criadas por Ana Baleia  a partir de personagens literárias de livros conhecidos. Encontra-se patente no Centro de Artes de Sines até 24 de Agosto. 
Iniciativa paralela da 25.ª edição do FMM 



          


           



               


               


30 julho, 2025

Balumuka !

BALUMUKA ! Narrativa poética da liberação --- ou ainda Rebelião Poética Kaluanda

Curadoria de Kiluanji Kia Henda e André Cunha
Exposição conjunta patente no Centro de Artes de Sines até 15 de Outubro
Iniciativa paralela da 25.ª edição do FMM




        


       

      

     

29 julho, 2025

𝑱𝒆𝒔𝒖𝒔 𝑪𝒓𝒊𝒔𝒕𝒐 𝑩𝒆𝒃𝒊𝒂 𝑪𝒆𝒓𝒗𝒆𝒋𝒂,de Afonso Cruz



N.º de páginas: 248
Editora: Alfaguara
Edição (3.ª): Janeiro 2013
Classificação: Romance
N.º de Registo: (2765)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐




Afonso Cruz, em O vício dos livros (p. 81), refere que "Os livros são seres pacientes. Imóveis nas suas prateleiras, com uma espantosa resignação, podem esperar décadas ou séculos por um leitor." Ora, este Jesus Cristo bebia cerveja soube esperar resignadamente (12 anos) até que nos encontrássemos. Foi o primeiro livro que comprei do autor, em 2013, no FMM, com direito a conversa e autógrafo. Depois, li muitos, mas mesmo muitos do autor e este foi ficando para trás…

Jesus Cristo bebia cerveja apresenta-nos uma narrativa insólita e divertida povoada de personagens originais e marcantes num Alentejo rural. Toda a ação se configura em torno de Rosa que cuida da sua avó doente, que gosta de ler westerns e policiais, apesar dos poucos estudos, e que tem o bizarro costume de chupar pedras.

Ao longo da narrativa surgem indícios que inquietam o leitor e que anunciam uma possível tragédia: "- O amor não se compra. - Mas paga-se caro."; “Eu não jogo aos dados. Deus é que joga.” (alusão directa ao livro de Ian Stewart ou, então, a Albert Einstein «Deus não joga aos dados»)

Jesus Cristo bebia cerveja é um livro criativo, caricato e controverso que, subtilmente, nos afasta de certezas triviais, de preconceitos e nos oferece, pelo viés da ironia pincelada de humor negro e de uma escrita poética (“ a tarde boceja pelas ruas”), outras perspectivas de vida e nos encaminha para uma reflexão sobre a maneira como encaramos o amor, a família, a religião e como percebemos a morte.

Claro que recomendo a leitura deste e de todos os livros do Afonso Cruz. E para reforçar a minha recomendação, fica a dica do autor:
"Lembra-te de que quando Deus fecha uma porta abre-nos um livro." (p. 76)

26 julho, 2025

𝐏𝐚𝐥𝐨𝐦𝐚𝐫, de Italo Calvino




Autor: Italo Calvino
Título: Palomar
Tradutor: João Reis
N.º de páginas: 130
Editora: Planeta D'Agostini
Edição: 2001
Classificação: Contos 
N.º de Registo: (1223)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


Palomar está dividido em três partes "As Férias de Palomar", "Palomar na Cidade" e "Os Silêncios de Palomar". Cada parte está subdividida em três capítulos que por sua vez apresentam 3 contos cada, reunindo, assim, 27 pequenos contos independentes que apenas têm em comum a personagem - o senhor Palomar.

Em todos os textos, o autor explora a relação entre o indivíduo e a natureza através da observação minuciosa e das reflexões do senhor Palomar.
Calvino aborda temas existenciais a partir de situações do dia-a-dia, com recurso à ironia transforma banalidades em momentos de profunda contemplação. Palomar, pela sua capacidade original de olhar para as coisas (uma onda, uma folha, um planeta, um seio, um insecto…), descobre significados pouco comuns, divaga sobre aspectos que o preocupam e tece reflexões sobre a vida, sobre as relações humanas e que acabam por conquistar o leitor.

“ O senhor Palomar decidiu que a sua principal actividade será sempre observar as coisas do lado de fora. (…) põe-se a observá-las quase sem dar por isso e o seu olhar começa a percorrer todos os detalhes e não consegue mais afastar-se delas. O senhor Palomar (…) redobrará as suas atenções: em primeiro lugar, para não deixar fugir os apelos que lhe chegam das coisas; em segundo lugar, para atribuir à operação de observar a importância que ela merece.” (p. 117)

Palomar exige do leitor uma efectiva atenção, não nos iludamos pelos textos curtos. Para captarmos a verdadeira essência da sua escrita, é importante entrar em estado de contemplação, como se fôssemos a personagem principal e usássemos um telescópio (para olhar as estrelas, por exemplo) ou uma lupa. É, igualmente, importante apreender o sentido do texto, retirar de cada observação o verdadeiro (auto) conhecimento, saber equilibrar racionalidade e sensibilidade. Isto só será possível se realizarmos uma leitura lenta e cuidada, se desfrutarmos das descrições detalhadas, se soubermos descortinar a ironia, as metáforas, os paradoxos, se estabelecermos comparações com o nosso mundo, se reflectirmos sobre as coisas observadas.
“Mas como se faz para observar alguma coisa deixando de lado o eu? De quem são os olhos que olham? (…) Para se olhar a si próprio o mundo tem necessidade dos olhos (e dos óculos) do senhor Palomar” (p. 118)
É um pequeno livro muito interessante. Que nos faz reflectir a sorrir.



20 julho, 2025

Jantar memorável

 No dia 17, os meus colegas da Escola Secundária Poeta Al Berto (ESPAB) surpreenderam-me com uma linda homenagem que guardarei na gaveta das boas memórias. 

O evento teve lugar no Restaurante Arte e Sal, em S. Torpes. Vista maravilhosa para o mar e com direito a um pôr-do-sol brilhante. 

Foi um jantar memorável, de (re)encontros, sorrisos e abraços. Recebi muito afecto, muitas flores e presentes valiosos. Registei boa disposição, ouvi poesia da boa e houve poses para registos fotográficos. 
As três moças organizadoras, Rosarinho, Bete e Célia, pensaram em tudo com muito carinho. Posso garantir que me conhecem bem.  

Houve, ainda, tempo para um sorteio de  livros, leitura de um discurso e de um poema escrito a duas mãos.  

Partilho um pequeno vídeo que revisita os momentos importantes.
Transcrevo também o discurso e o poema   

a de Graciosa Reis


Quero agradecer muito, mas mesmo muito este momento. É um prazer enorme ter-vos a todos e a todas aqui presentes.
Como sei que estes encontros dão muito trabalho, sou grata às moças organizadoras, Rosarinho, Bete e Célia. E como para haver festejos é bom que haja participantes, também quero agradecer, a cada um e a cada uma, pessoalmente, a vossa presença.

Não vou fazer um grande discurso. O que tinha a dizer, já o disse num texto que vos enviei e que publiquei no primeiro dia de “boa vida”.

Retomo, apenas, a parte mais importante, a dos amigos, a das pessoas com quem me cruzei, em especial, na ESPAB.
Ao longo dos anos e foram muitos, conheci, lidei e convivi com muitas pessoas.
Pessoas bonitas e maravilhosas e outras menos bonitas e um pouco menos maravilhosas. Mas todas foram importantes, com todas aprendi e partilhei conhecimentos, ensinamentos, gargalhadas, sorrisos, tristezas, desabafos, abraços, fotografias, livros, leituras, muitas leituras, …; com muitas continuarei a aprender e a partilhar…
Muitas destas pessoas estão aqui;
Muitas não estão por múltiplas razões: pessoais, profissionais, familiares, ou porque simplesmente não o quiseram;
Algumas porque já não leccionam nesta escola, nem habitam por perto;
Outras, ainda, já não estão entre nós.

A TODAS o meu ENORME agradecimento e carinho.
Saberei manter vivas as boas memórias. E este momento, será para acrescentar.

Citando Epicuro “As pessoas felizes lembram o passado com gratidão, alegram-se com o presente e encaram o futuro sem medo.”

Que, assim, seja!



Ó Arte e Sal, quanto do teu manjar
São sorrisos destes comensais
Para aqui chegarmos, a S. Torpes
É preciso que topes
Quanta areia já roubou o mar
Quantos banhos ficaram por dar
Mas ainda, assim, valeu o jantar
E daqui saímos mais fraternais
Mesmo com um copito a mais.

(GR e JR)



18 julho, 2025

𝑨 𝑳𝒊𝒔𝒕𝒂 𝒅𝒆 𝑳𝒆𝒊𝒕𝒖𝒓𝒂, de Sara Nisha Adams

 

Autora: Sara Nisha Adams
Título: A Lista de Leitura
Tradutora: Maria Ferro
N.º de páginas: 397
Editora: Topseller
Edição: Novembro 2022
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3691)



OPINIÃO ⭐⭐⭐


Comprei este livro pelo título. Fiquei com imensa curiosidade em descobrir como os oito clássicos da lista iriam ser abordados a partir da indicação sugestiva “só para o caso de precisares…”.

A Lista de Leitura é um romance de leitura fácil e agradável que promove a descoberta do prazer de ler e de partilhar opiniões sobre os livros lidos.
“Havia algo mágico nisso, na partilha de um mundo que amámos.” (p. 301)
Só por esta razão já vale a pena lê-lo. Mas o enredo oferece-nos, ainda, a perspectiva, de que é possível, a partir dos livros, encontrar um novo sentido para a vida.

A história ocorre em Wimbledon, numa pequena biblioteca pública. Lugar de silêncio, de refúgio e de partilha de livros, de amizade, de preocupações, de (auto)ajuda.
É neste espaço privilegiado que a jovem Aleisha, adversa a livros e com uma vida complicada em casa, trabalha aborrecida durante as férias de verão. Aqui, conhece Mukesh que um dia vai devolver um livro que encontrou em casa e que tinha sido requisitado e não devolvido pela sua esposa - A mulher do viajante no tempo, de Audrey Niffenegger.

Esta simples tarefa vai revelar-se numa vitória para o velho homem e irá perturbar a sua pacata forma de viver. Mukesh é um idoso viúvo que não sabe lidar com a perda da esposa Naina, nem tão pouco com as vidas atarefadas e independentes das suas três filhas que o tratam como um incapacitado.

Aleisha e Mukesh, duas pessoas de gerações diferentes, com problemáticas diversas, têm em comum o facto de não gostarem de ler. Contudo, encontram-se na biblioteca e a lista de leitura encontrada, por acaso, pela jovem dentro de um livro – Mataram a Cotovia - vai transformar-se no elo de ligação entre os dois e vai, sobretudo, a ajudá-los a descobrir o prazer da leitura e a ultrapassar os problemas que cada um carrega.

Os oito livros que integram a lista de leitura facultam abordagens múltiplas. Cada leitor fará a sua interpretação de cada obra de acordo com as suas vivências presentes e passadas (“Hum – disse Aleisha (…) Suponho que os livros digam coisas diferentes a pessoas diferentes.” (p. 171)). Mukesh faz as suas leituras tendo sempre presente a memória da sua mulher. Cada um dos oito livros, desempenha, assim, uma função. Justiça, preconceitos, resiliência, violência, dependência, doença, família, amor, amizade, perda e morte são alguns dos temas abordados e que, em jeito de terapia, vão facultar ensinamentos e cumplicidades e fortalecer uma “amizade improvável.”

Tratando-se de um livro sobre livros (e que livros!), recomendo, seguramente, a sua leitura.



17 julho, 2025

Escola Poeta Al Berto - Fotodocumentário biográfico de Al Berto

Quando acordei tinha este presente maravilhoso no meu telemóvel. Tem um significado muito especial recebê-lo, precisamente, hoje.
Obrigada, Gustavo Cerqueira Guimarães

Fotodocumentário biográfico do português Al Berto (1948-1997), de Sines, destacando a voz do poeta e fotografias de seus livros.
REALIZAÇÃO: Qeracê
PESQUISA, ROTEIRO & CANÇÃO: Gustavo Cerqueira Guimarães
PeDRa LeTRa
Minas Gerais, Brasil, 2025





15 julho, 2025

Encontro Regional de Bibliotecas Escolares



Nos dias 10 e 11 de Julho de 2025, em Évora, decorreu o Encontro Regional, subordinado ao tema “Legados de Engenho, Arte e Pedagogia”, colaboração entre o CFAE Beatriz Serpa Branco e as Bibliotecas Escolares do Alentejo. As sessões plenárias tiveram lugar no auditório da DGEstE e os workshops no Agrupamento de Escolas André de Gouveia.


Foram dois dias plenos de aprendizagens, partilhas e convívio.
Na abertura do encontro Jorge Serafim brilhou e animou o pessoal ainda entorpecido.
O programa seguiu o seu curso com uma homenagem a Beatriz Serpa Branco e com a apresentação de Boas Práticas de várias bibliotecas escolares do Alentejo (nos dois dias realizaram-se três sessões plenárias). São momentos enriquecedores e que evidenciam o que de bom se pratica nas nossas bibliotecas escolares.
Os dois momentos previstos de workshops simultâneos oferecem-nos possibilidades de aprendizagem, algumas fora da nossa zona de conforto, de contacto com outras artes, de partilha de saberes, de sorrisos e boa disposição. Gostei de descobrir a “Ciência em Camões” com o Mário e o Alexis, do Centro de Ciência Viva de Estremoz e adorei conhecer a actriz Cátia Terrinca que, sabia e assertivamente, nos envolveu nas “Palavras para lá do papel” . Trabalhámos a desconstrução da palavra, da escrita, da poesia; criámos sons com sentido; inventámos onomatopeias; percebemos o poder da palavra escrita, dita, ouvida, compreendemos a importância do silêncio, do saber escutar.

Nestes dois dias, fomos ainda brindados com duas conferências magníficas. A primeira, dita pelo Professor Carlos Reis – “Legados de um ‘épico d’outrora’: figurações camonianas”; a segunda, pelo Dr. Pacheco Pereira – “Engenho, arte e saber ao serviço das bibliotecas”.
Dois oradores cultos e inteligentes que nos concedem conhecimentos válidos e nos incitam à reflexão.

O encerramento do encontro contou com uma tertúlia sob o tema “Legados de Engenho, Arte e Pedagogia”. Cinco convidados, entre os quais o Professor Carlos Reis, moderados pela Doutora Zélia Parreira, Directora da Biblioteca Pública de Évora, discorreram sobre o assunto. Foi um momento empolgante com opiniões controversas de um dos palestrantes.
Entusiasmei-me com o rumo da conversa, com os argumentos dos restantes convidados e sobretudo com a arte e engenho do Professor Carlos Reis. Terminámos maravilhosamente. 

Após a conclusão dos trabalhos agendados para o primeiro dia, um grupo de amigas bibliotecárias do Alentejo Litoral, deambulou pelas ruas de Évora e refastelou-se numa esplanada para conversar, gargalhar, degustar uns saborosos petiscos e beber uma generosa sangria. Apesar do vento frio que se impôs ao anoitecer, fomos felizes.

Foram dois dias maravilhosos. Eu, no papel de aposentada, desfrutei serenamente de tudo.
Até pró ano, se ainda me aceitarem.




08 julho, 2025

𝑶 𝑬𝒙é𝒓𝒄𝒊𝒕𝒐 𝑰𝒍𝒖𝒎𝒊𝒏𝒂𝒅𝒐, de David Toscana

 

Autor: David Toscana
Título: O Exército Iluminado
Tradutora: Helena Pitta
N.º de páginas: 180
Editora: Parsifal
Edição: Outubro 2014
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3718)





OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐

Em O Exército Iluminado, David Toscana, pelo viés de uma visão quixotesca, tece uma metáfora do patriotismo, do nacionalismo ferido.
É uma narrativa ousada e provocadora plena de ironia e emoção que transforma os fracassos em heroísmo e o absurdo em beleza.

Ignacio Matus, protagonista e motor da narrativa, é um professor ressentido e obcecado por perdas importantes: do território do Texas para os Estados Unidos e pela medalha de bronze de maratonista que alega ter-lhe sido roubada por um atleta norte-americano, Clarence DeMar, nas Olimpíadas de Paris, em 1924.
Matus é expulso da escola onde lecciona, por insistir, junto dos seus alunos, naquilo que ele considera a “vergonha nacional”. Inconformado, decide formar um exército – o Exército Iluminado - de crianças com deficiência para recuperar o território perdido no século XIX.

Toscana cria uma utopia, e como tal, recorre a uma trama inusitada, absurda, misturando delírio com idealismo, trágico com cómico e humor negro e brinda-nos com uma narrativa magnífica recheada de personagens carismáticas. Tomemos, por exemplo, “o gordo Comodoro”, que apesar da sua condição física e das suas evidentes limitações, é retratado com afeto e humor.

Assim, Toscana transforma personagens marginalizadas, com limitações graves, em heróis, em símbolos de resistência. É a celebração dos fragilizados que se tornam iluminados.

O Exército Iluminado é, por isso, um livro fabuloso pela sua imprevisibilidade e ao mesmo tempo pela total falta de senso do protagonista que acredita ganhar uma guerra com estas cinco crianças. A missão de recuperar o Texas é absurda, mas é através desta metáfora que o autor estabelece uma relação directa com os delírios de D. Quixote.
Toscana constrói uma trama carregada de ironia para nos falar de uma realidade que marcou um país, da história mexicana. Cria uma narrativa original e sensível. De forma comovente, mas não lamecha, mescla a dimensão histórica com a efabulação para explorar a complexidade do ser humano. Ao estruturar a narrativa de forma fragmentada, como se revisitasse memórias soltas, permite que passado, presente e futuro coabitem naturalmente com as vivências das suas personagens, estabelecendo uma relação entre a vida e a história; o presente e o passado, ou melhor, a fragilidade da vida retratada nestes anti-heróis e a força da memória de um homem patriota.

Toscana conduz o leitor para um universo de realismo mágico, bem nos trilhos de um Gabriel Garcia Márquez ou de um Juan Rulfo. O leitor, facilmente, seduzido deixa-se comover pela escrita poética e crua com que narra os acontecimentos insólitos vividos pelas crianças e deixa-se, sobretudo, invadir ora pela tristeza ora pela esperança e determinação. Tudo isto é um convite à reflexão. David Toscana eleva a sua narrativa a um patamar tão quixotesco que nos impele a questionar o sentido da vida e a natureza da violência num mundo tão caótico.

Foi uma bela descoberta. Mais um autor a acrescentar à já longa lista de autores sul-americanos.


30 junho, 2025

Rota Literária | Festa do Livro

A Fundação Caixa Agrícola Costa Azul organizou, nos dias 27, 28 e 29 de junho, a IV Edição da Festa do Livro em Santiago do Cacém.

Durante três dias,  e respondendo ao mote Entre Mundos e Palavras, foram realizadas múltiplas actividades no âmbito do livro e da leitura.
No dia 29, das 9h00 às 13h00, concretizou-se, sob  um calor intenso, a Rota Literária com 18 paragens em espaços históricos/emblemáticos da cidade.  Previamente, a Fundação atribuiu cada paragem a um embaixador/leitor que, por sua vez, escolheu livremente um texto  que se adaptasse ao local.
Foi-me destinado o ponto n.º 4 - Passeio das Romeirinhas (junto aos Espiguinhas) para o qual seleccionei um poema de Al Berto. 

Foi um prazer enorme, apesar do calor, ter participado neste evento. Aprendi imenso sobre Santiago e conheci novos entusiastas da leitura bem como da história e do património locais. 




4


oxidadas albas líquidas povoações
onde abandonámos os corpos a sonhar

voragem do mar ruínas de sal lodo basaltos
eis a devassada nudez da terra
argilas quartzos granitos calcários
esculpidos pelo contínuo vento

ali está a vereda de giesteiras floridas
onde o sol fabrica o doloroso mel
e o corpo estendido expele imagens de água
enquanto a morte tudo corrói vagarosamente

depois continuámos pela orla branca do papel
regressámos felizes à falsidade das palavras
mas já não conseguimos ser os mesmos
que ali tinham vivido e amado


In O Medo – Uma Existência de Papel (1984/85), Al Berto, Assírio & Alvim, 2000, p. 498



28 junho, 2025

𝑩𝒊𝒐𝒈𝒓𝒂𝒇𝒊𝒂 𝒅𝒐 𝑳í𝒏𝒈𝒖𝒂, de Mário Lúcio Sousa

 

Autor: Mário Lúcio Sousa
Título: Biografia do Língua
N.º de páginas: 340
Editora: D. Quixote
Edição: Outubro 2015
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3626)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


Com este livro, Mário Lúcio Sousa criou uma deliciosa utopia “em que a história fosse sobretudo a magnífica missão de contar histórias.” (p.12)
Este objectivo do autor foi totalmente alcançado, já que o fio condutor da narrativa é um condenado à morte que, para atrasar o fatídico momento da sua execução, pede, como ultimo desejo, para contar a história de Esteban Montejo, um escravo chamado Língua, que revela a habilidade incomum de falar aos sete meses de idade e a capacidade de traduzir as falas dos colonizadores aos povos africanos.
“Aos sete meses de idade, o preto abriu a boca e, quando toda a gente pensou que ele ia cuspir o leite, disse: Tenho uma língua. (…) Mando que me escrevam, pois, a biografia desse Língua. Palavra de rei, leia-se lei, portanto cumpra-se. Assim, em cumprimento da ordem real, a partir daquele momento, o menino, preto ao nascer, passou a chamar-se oficialmente Língua, mas nas circunstâncias de então, Língua era mais profissão do que apelido.” (pp. 22 e 23)

O condenado narrador, sabiamente, entrelaça a história de vida do Língua com histórias de outras pessoas, com momentos históricos de Cabo Verde e de África e com o surgimento de uma nova cidade, Falésia, vai construindo um mosaico de experiências que revelam e formam a complexidade da identidade e da memória de todo um povo.

Para tal, recorre a estratégias que nos transportam para as 1001 Noites de Xerazade. Sem pausas na sua narrativa, provoca a curiosidade do povo que se vai aproximando e instalando no local. Num jogo de palavra passa-palavra, a comunidade vai crescendo, a cidade vai-se construindo. Falésia constitui-se e os falesianos instituem o silêncio como condição de habitabilidade para, assim, poderem acompanhar a narração.
“Cento e noventa anos a contar histórias. Será mesmo esse o tempo que passou? Como haveremos de saber se aqui medimos tudo pelo tempo da história? Dormimos e acordamos sem mais pretensão do que ouvir narrar. Acontece que agora Falésia já introduziu um novo conceito de território e de propriedade no mundo e no tempo.” (p. 251)

E, assim, maravilhado pelas palavras e pela construção da narrativa, numa atmosfera de realismo mágico, tão característico do autor, o leitor deixa-se conduzir deleitosamente ao longo das páginas. Mais do que um romance sobre um escravo com atributos invulgares e prodigiosos, estamos perante algo delicioso sobre a arte de narrar estórias e, sobretudo, sobre o poder que estas acarretam para criar um mundo melhor.

Apesar do seu cariz utópico, este romance impele o leitor a reflectir sobre aspectos importantes como o colonialismo, a abolição da escravatura, a independência, o capitalismo, o comunismo, a liberdade, a educação, o amor e a morte.

Se ainda não leram este autor, fica a recomendação.



19 junho, 2025

𝑽𝒆𝒋𝒂𝒎 𝒄𝒐𝒎𝒐 𝒅𝒂𝒏ç𝒂𝒎𝒐𝒔, Leïla Slimani

 

Autora: Leïla Slimani
Título: Vejam como dançamos
Tradutora: Tânia Ganho
N.º de páginas: 338
Editora: Alfaguara
Edição: Outubro 2022
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3414)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐




Vejam como dançamos é o segundo livro da trilogia de Leïla Slimani, iniciada com O País dos Outros. Nele, continua a história da família Belhaj, nomeadamente no crescimento e na adaptação dos filhos Aïcha e Selim, às transformações sociais e políticas de Marrocos nos anos 1960 e 70.
A narrativa foca-se em Aïcha que representa uma geração em transição entre a tradição e o desejo de emancipação. Ela estuda medicina em França, na cidade de Estrasburgo. Este facto afasta-a temporariamente das suas raízes marroquinas e aproxima-a de uma nova maneira de encarar a vida e de questionar o papel da mulher na sociedade. Os conhecimentos e amizades que aí trava, levam-na para trilhos de descobertas, de questionamento, de reflexão.
O desejo de independência, por um lado, e a lealdade à herança familiar, por outro, mantém-na num limbo identitário, num conflito interior que a vai tornar mais humana e sensível. Como um passo de dança, Aïcha desliza entre Marrocos e França, entre a tradição e a liberdade.

Selim, ao contrário da irmã, revela uma trajetória marcada por certos desvios – não gosta de estudar, alia-se ao movimento hippie, sai de casa, pratica o amor livre, experimenta drogas. A sua relação com os pais é distante e provocatória.

Quanto a Mathilde e a Amine, estão mais aburguesados, cederam à modernidade apesar das raízes e do peso da cultura marroquina que atravessa uma época conturbada. Este peso cultural sente-se, sobretudo, em Mathilde, que ainda vive entre duas culturas, e mais condescendente deixa-se engordar e acomoda-se à traição de Amine com outras mulheres.

Leila Slimani para além da história familiar, dá-nos a conhecer muito da História de Marrocos. Foca-se na transformação das pessoas que têm de se adaptar às mudanças sociais, culturais e políticas do país. “Naquele país que vivera da terra e da guerra durante séculos, já só se falava da cidade e do progresso.” (p. 37)
Percebemos que, apesar das mudanças em curso, a mulher ainda desempenha um papel subalterno, as desigualdades ainda subsistem. Os ecos de um Maio de 68 começam a instalar-se, a emancipação da mulher dá os primeiros passos, vagarosa e timidamente.
Leïla é sublime. Através de uma escrita cativante e fluída, de cariz autobiográfica, conduz-nos pelas teias da (sua) família, mergulha-nos na intimidade das personagens, incita-nos à descoberta de um país e oferece-nos uma narrativa comovente.

Recomendo muito e como incentivo à leitura desta trilogia (o terceiro livro já foi publicado em Portugal), transcrevo um excerto do final da carta que Mehdi escreveu a Aïcha. Uma carta que me deslumbrou pela beleza das palavras, pela sensibilidade que nelas perpassam.
“Um dia, mais tarde, num dos nossos passeios, disseste-me, rindo-te, que eu era um ateu da vida. Ah, não. A vida possui-me. Aïcha, acredito piamente nela, a vida ilumina-me, rasga-me a cada instante, amo-a sob todas as formas, felicidade, prazer, dor, silêncio. E, graças a ti, nunca estive tão próximo dela. Reconheci-te. Esperava-te desde o dealbar da infância e tu chegaste. Vejo o céu, a luz nas palmeiras, o voo das cegonhas e fico deslumbrado. Acredita quando te digo que essa beleza é feita de nós. É feita para nós.” (p. 196).



18 junho, 2025

Faz 15 anos (18.06.2010)

 



Não me Peçam Razões...

Não me peçam razões, que não as tenho,
Ou darei quantas queiram: bem sabemos
Que razões são palavras, todas nascem
Da mansa hipocrisia que aprendemos.

Não me peçam razões por que se entenda
A força de maré que me enche o peito,
Este estar mal no mundo e nesta lei:
Não fiz a lei e o mundo não aceito.

Não me peçam razões, ou que as desculpe,
Deste modo de amar e destruir:
Quando a noite é de mais é que amanhece
A cor de primavera que há-de vir.

José Saramago


16 junho, 2025

Um poema de Joaquim Cardoso Dias

 

The Couple | Jennifer Lombardo | 2014




NA LINGUAGEM DE UM AMOR


estas árvores tocam
com as folhas
o murmúrio das searas
os dedos húmidos da paisagem
o branco vivo 
de um pássaro a correr nas mãos

choram o poeta triste
do outro lado da floresta
longe
muito longe dessas terras

esse rio de árvores e de pássaros

levantando no silêncio
todas as suas asas azuis

bebendo do rumor dos beirados
essa luz doente

para adormecer assim
no prolongamento dos ombros
nesses abraços de olhos nos olhos

a mão de tocar outra mão
e um suspiro de ficar sozinho


O Preço das Casas, Joaquim Cardoso Dias 



13 junho, 2025

Al Berto | 13.06.1997

 

                                                              Foto GR - Sines



Cromo


andamos pelo mundo
experimentando a morte
dos brancos cabelos das palavras
atravessamos a vida com o nome do medo
e o consolo dalgum vinho que nos sustém
a urgência de escrever
não se sabe para quem

o fogo a seiva das plantas eivada de astros
a vida policopiada e distribuída assim
através da língua... gratuitamente
o amargo sabor deste país contaminado
as manchas de tinta na boca ferida dos tigres de papel

enquanto durmo à velocidade dos pipelines
esboço cromos para uma colecção de sonhos lunares
e ao acordar... a incoerente cidade odeia
quem deveria amar

o tempo escoa-se na música silente deste mar
ah meu amigo... como invejo essa tarde de fogo
em que apetecia morrer e voltar

Salsugem, Al Berto

Al Berto faleceu em Lisboa no dia 13 de junho de 1997, com apenas 49 anos



12 junho, 2025

𝑫𝒐𝒓 𝒇𝒂𝒏𝒕𝒂𝒔𝒎𝒂, de Rafael Gallo

 


Autor: Rafael Gallo
Título: Dor Fantasma
N.º de páginas: 275
Editora: Porto Editora
Edição: Março 2023
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3685)




OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


O enredo centra-se em Rómulo Castelo, um pianista conceituado, que ambiciona o reconhecimento mundial como “um dos maiores intérpretes de Liszt” ao estrear “a peça intocável” pelo seu grau de dificuldade - Rondeau Fantastique - na tournée pela Europa que já tem agendada.

O protagonista é professor universitário de piano. Herdou do pai, um famoso maestro, o gosto e a valorização da música que deve ser praticada com rigor e disciplina para alcançar a perfeição, a excelência. “O zelo exige rigor.” 

Rafael Gallo é exímio na condução da sua narrativa. Nas primeiras três páginas coloca o pianista em palco, a tocar Funerais, de Franz Liszt e as expectativas criadas “entre o palco e a plateia” estendem-se ao leitor. São três páginas em que o protagonista “foi a música” e o escritor “foi a escrita”. Ficamos, desde logo, deslumbrados e também preocupados com a antecipação da informação de que será o último recital.

O rigor absorvido ao longo da sua aprendizagem como músico e a obsessão pela perfeição faz de Rómulo Castelo uma pessoa antipática, exigente e intolerante com os alunos e colegas; insensível e cruel com a esposa, Marisa, e o filho, o pequeno Franz (Franzinho) que desde o nascimento “mostrou um desvio”.
Rómulo vive exclusivamente para a música. Em casa, foge da rotina doméstica e tranca-se “na sala de estudos: caixa-forte entranhada na alvenaria do lar, arquitetura da impenetrabilidade. O lugar dele.” (p.20) e isola-se de tudo e de todos. Num mundo só dele partilhado apenas com o seu Steinway e um retrato de Liszt. Um solitário que não entende a vida.
Até que um dia o destino lhe prega uma partida. Avassaladora. Rómulo não vai saber lidar com a nova realidade, com essa dor fantasma (que não vou revelar) e a sua vida regrada transforma-se num caos.

Rafael Gallo dirige a escrita, tal uma batuta, com andamentos intensos e inquietantes. A narrativa, dividida em quatro partes – Coda, Exposição, Desenvolvimento e Cadenza - confunde-se com uma partitura em que as palavras são música e silêncios. O final, então, é fabuloso. O leitor permanece siderado perante a beleza das palavras. E tal como Rómulo Castelo que, sempre que executava na perfeição a sua obra intocável, apontava um orgulhoso “Estala, estala, estala a medida consistente da perfeição.”, também, na minha opinião, se pode aplicar a Rafael Gallo em relação ao seu livro. Equivalem-se, assim, quanto à execução, protagonista e escritor.

Contudo, não posso deixar de referir que por muito que o protagonista se dedique à sua profissão, à música e considerando, ainda, que o autor tenha amenizado a personagem com os seus dramas, não consigo sentir empatia por ela. É inadmissível que uma pessoa que lida com a beleza e a sensibilidade da música não consiga tornar-se mais afável. Pelo contrário, a sua obsessão doentia vai levá-lo a agir sem escrúpulos, a magoar os seus familiares e amigos e vai conduzi-lo à loucura. Assim, o leitor vive um enorme paradoxo. Ora sente admiração pelo professor e músico, ora sente repulsa pelo homem. E é esta ambiguidade que vai manter o suspense e o interesse até ao final.

Para concluir, Dor Fantasma é uma crítica acérrima à busca obsessiva da perfeição, à ambição, à forma como encaramos a vida a partir do “Eu”, das preferências individuais e muito pessoais.


06 junho, 2025

𝑰𝒏𝒇𝒐𝒓𝒕ú𝒏𝒊𝒐𝒔 𝒅𝒆 𝑼𝒎 𝑮𝒐𝒗𝒆𝒓𝒏𝒂𝒅𝒐𝒓 𝒏𝒐𝒔 𝑻𝒓ó𝒑𝒊𝒄𝒐𝒔, de Germano Almeida

 


Autor: Germano Almeida
Título: Infortúnios de um Governador nos Trópicos
N.º de páginas: 223
Editora: Caminho
Edição: Setembro 2023
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3502)




OPINIÃO ⭐⭐⭐


É o primeiro livro que leio de Germano Almeida, apesar de ter alguns em lista de espera há já algum tempo.
Como surgiu a oportunidade de o ler para um clube de leitura, iniciei com algumas expectativas uma vez que o autor foi Prémio Camões, em 2018 e porque o enredo, o resgate de um caso de adultério passado no início do século XIX, na então colónia de Cabo Verde, me pareceu convincente

Partindo de um episódio verídico, como esclareceu, na introdução, o próprio autor, a narrativa desenvolve alguns aspectos históricos, políticos e sociais das ilhas de Cabo Verde e de Portugal e foca-se, sobretudo, na infidelidade da mulher e sobrinha do governador de Cabo Verde, o coronel João da Mata Chapuzet, com o jovem cirurgião, Domingos da Costa Lima.

A escrita muito descritiva lega-nos um retrato fiel da época, mas peca por excesso de repetição. A leitura que, no início, flui agradavelmente, torna-se depois monótona.
A mesma história de adultério e as consequências desse acto para os dois amantes, são-nos narradas por diversas personagens.
Confesso que a expectativa inicial ficou muito aquém do desejado. Saí desiludida desta leitura. Mas como não desisto à primeira, darei, certamente, uma outra oportunidade ao autor.




30 maio, 2025

𝑨 𝑳𝒆𝒃𝒓𝒆 𝒅𝒆 𝑽𝒂𝒕𝒂𝒏𝒆𝒏, de Arto Paasilinna

 



Autor: Arto Paasilinna
Título: A Lebre de Vatanen
Tradutor: Carlos Correia Monteiro de Oliveira
N.º de páginas: 143
Editora: Relógio d'Água
Edição: Setembro 2009
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3696)





OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


A leitura de A Lebre de Vatanen foi-me proposta pelo clube de leitura – Era uma Voz, de Afonso Cruz. Não conhecia o autor, mas criei grandes espectativas porque, nas várias livrarias (sempre esgotado) a que me dirigi para o adquirir, só me falaram muito bem do autor e dos seus livros.

Parti, assim, à descoberta de Paasilinna com imensa curiosidade. Confesso que fui, de imediato, conquistada. Primeiro, pela escrita e, depois, pela história de Vatanen, o jornalista protagonista que vive em Helsínquia.

Não vou esmiuçar os motivos que o levam a mudar radicalmente de vida. Aconselho que desfrutem da leitura do livro e o descubram por iniciativa própria. Apenas, posso indicar que a partir de certo dia, ele e uma lebre iniciam uma “viagem” por terras finlandesas e com uma incursão na União Soviética, país fronteiriço. São múltiplas as peripécias que ambos vivem, na floresta, nos lugarejos, nas montanhas. São múltiplas as tarefas temporárias que Vatanen vai ter de desempenhar para poder sobreviver. É riquíssima a transformação, sobretudo interior, da personagem. Nem tudo é fácil.

A narrativa contém umas pinceladas de realidade. Por exemplo, Kekkonen foi presidente da Finlândia, durante 26 anos consecutivos, de 1956 a 1982; as localidades citadas; o nome do protagonista “Vatanen” é o nome de um famosíssimo piloto de rali. Poder-se-á intuir que a atribuição deste nome ao  foi intencional, se tivermos em conta algumas aventuras (risco e audácia) descritas e, de certa forma, como uma homenagem ao piloto. (especulação minha)

Na escrita simples e fluída transparecem a beleza da natureza e o rigor do clima nórdicos, mas também a integridade e a audácia de Vatanen. A sintonia entre escrita, natureza e protagonista resulta numa narrativa brilhante e encantadora. Ao longo das páginas e das aventuras somos convidados a questionar-nos sobre as nossas opções de vida; nomeadamente, o respeito pelo outro, pela liberdade individual, mas também, o sentido de responsabilidade para com a natureza, os animais; a solidariedade e a empatia.

Paasilinna, recorrendo, a histórias curtas, umas divertidas, outras mais absurdas, faz uma sátira à vida moderna, à monotonia da rotina das cidades, ao cumprimento de horários, às responsabilidades de um emprego e de uma família, em suma, a tudo aquilo que o acorrenta e sufoca. Em contrapartida, e com sentido de humor, apresenta-nos o renascimento de um homem que, na companhia de uma lebre, descobre um país de contrastes cultural e ambiental, descobre a mesquinhez humana, o desapego do homem para com a natureza, mas também a amizade, a empatia, a solidariedade. As aventuras de Vatanen transformam-se numa viagem de auto-conhecimento, de conquista de liberdade, de amadurecimento.

É um livro que nos faz reflectir sobre o sentido da vida. O que importa realmente. No epílogo, o autor refere-se a Vatanen da seguinte forma: “ a história pessoal de Vatanen e a sua maneira de agir revelam-no como um revolucionário, um ser autenticamente subversivo, e é aí que reside o segredo da sua grandeza.” (p. 142.
Recomendo.



26 maio, 2025

Festival de Cannes 2025

 


A 78.ª Edição do Festival de Cannes decorreu de 13 ao dia 24 de maio de 2025.
A actriz francesa Juliette Binoche presidiu o júri da competição oficial.




Palma de Ouro: Un Simple Accident, de Jafar Panahi 

Grande Prémio: Sentimental Value, de Joachim Trier

Prémio do Júri ex-aequo: Sirât, de Oliver Laxe; Sound of Falling, de Mascha Schilinski

Prémio Especial do Júri: Resurrection, de Bi Gan

Melhor Direcção: Kleber Mendonça Filho, por O Agente Secreto

Melhor Argumento: Jean-Pierre e Luc Dardenne, por Jeunes Mères

Melhor Actriz: Nadia Melliti, por La Petite Dernière

Melhor Actor: Wagner Moura, por O Agente Secreto

Prémio da Crítica (FIPRESCI): O Agente Secreto, de Kleber Mendonça Filho

Prix des Cinémas Art et Essai: O Agente Secreto 

Queer Palm (Láurea LGBTQIAPN+)
: La Petite Dernière, de Hafsia Herzi

Caméra d’Or (Melhor Filme de Estreante): The President’s Cake, de Hasan Hadi (Iraque), com menção honrosa para My Father Shadow

Prix Un Certain Regard: A Misteriosa Mirada do Flamingo, de Diego Céspedes

Palma de Curta-Metragem: I’m Glad You’re Dead Now, de Tawfeek Barhom (Palestina), com menção especial para Ali

Prémio do Júri Ecumênico: Jeunes Mères, dos irmãos Dardenne

Prémio de Cidadania: It Was Just an Accident, de Jafar Panahi

Prémio Ecoprod: Jeunes Mères, dos irmãos Dardenne

Prémio Œil d’Or (Melhor Documentário): Imago, de Déni Oumar Pitsaev



25 maio, 2025

𝑹𝒐𝒎𝒂𝒏𝒄𝒆 𝒅𝒂 𝑹𝒂𝒑𝒐𝒔𝒂, de Aquilino Ribeiro



Autor: Aquilino Ribeiro
Título: Romance da Raposa
Ilustrador: Benjamim Rabier
N.º de páginas: 188
Editora: Bertrand Editora
Edição: Agosto 1996
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3643)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


O clássico juvenil Romance da Raposa, de Aquilino Ribeiro narra as aventuras de Salta-Pocinhas, uma “raposeta matreira, fagueira, lambisqueira - senhora de muita treta”.

Trata-se de uma leitura deliciosa não apenas para as crianças, mas também para os adultos. A linguagem rica e viva do mestre Aquilino Ribeiro aliada a um ritmo e a uma sonoridade musicais (recurso a rimas, métrica e aliterações) e a um sentido de humor apurado fascina o leitor e agarra, seguramente, as crianças (com mais de 10 anos, segundo o autor) com as travessuras da raposinha.

Li este livro há muito, muito tempo. Já não tinha memória de muitas das suas traquinices. Lê-lo, agora, com outro entendimento, é muito mais prazeroso. Deixei-me conduzir pelas palavras desenvoltas e sábias de Aquilino que usa com mestria a matreirice da heroína para criticar a sociedade da sua época. Ora vejamos, a raposa “delambida, atrevida, mas precavida, vai gerir a sua longa vida com o propósito de matar a fome e alimentar a alma, nem que para isso, tenha de enganar homens e bichos, corromper, assassinar e gabar-se orgulhosamente. Metáforas perfeitas que se ajustam, também, aos dias de hoje.

Apenas, acrescentar que esta edição da Bertrand inicia, em jeito de Introdução, com a carta que o autor escreveu ao seu filho Aníbal (Natal de 1924) a explicar por que decidiu escrever este livro. Ficamos, ainda, a saber que retratou a raposa sem falsificações, tal como vem na Fábula do Mestre Esopo.



21 maio, 2025

𝑨 𝑷𝒂𝒊𝒙ã𝒐 𝒔𝒆𝒈𝒖𝒏𝒅𝒐 𝑪𝒐𝒏𝒔𝒕𝒂𝒏ç𝒂 𝑯., de Maria Teresa Horta

 

Autora: Maria Teresa Horta
Título: A Paixão segundo Constança H.
N.º de páginas: 299
Editora: Bertrand Editora
Edição: Novembro 2010
Classificação: Romance
N.º de Registo: (Empréstimo)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


A Paixão Segundo Constança H., de Maria Teresa Horta (MTH), é um romance poderoso e perturbador que mergulha no universo feminino, tal como em toda a sua obra, explorando temas como amor, ódio, loucura, traição, identidade e morte. A narrativa acompanha a paixão de Constança H., e explora a sua transformação emocional após descobrir a traição de Henrique H., o seu marido, levando-a a um estado intenso de emoções e reflexões que lhe permite desenvolver um obsessivo desejo de vingança. A transformação interior de Constança H. é levada ao limite, marcada pela dor da traição e pela obsessão erótica do desejo e do corpo. “ (E o desejo? Que dizer do desejo; sempre a formular o corpo…)” (p.79)

A obra está estruturada por textos breves entre páginas brancas e integra poemas, múltiplas epígrafes colocadas entre parêntesis, títulos e citações de outras obras que espelham paixões, registo de sonhos e de alucinações, cartas ao marido, excertos de diários, referências a obras de escritoras que se alinham com o seu pensamento, como Clarice Lispector, Sylvia Plath, Mariana Alcoforado, Virginia Woolf, Maria Velho da Costa, Marguerite Duras, Florbela Espanca, …
Todos estes fragmentos funcionam como ecos de verdade e evidenciam a fragmentação do “eu”, a busca de identidade perdida na dor que a deixará “consumir pela paixão até ao sangue” (p. 295), a perda e o ódio que a conduzirão à loucura, ao abismo.
“E a dor continuava, tumefacta. A sensação de perda envenenando-a, espalhando a morte dentro de si.
O ódio.
O começo do ódio a engrossar, sem remédio, no seu peito, tentacular, repetitivo (…)”. (p. 23)

Ao longo das páginas, assistimos ao grito dilacerante de uma mulher traída e vulnerável. Assistimos ao medo da sua “desorganização interior”, ao medo dos tratamentos e dos choques eléctricos, ao medo dos seus fantasmas. Assistimos à paixão doentia de Constança H.. Assistimos ao crescendo da sua loucura e ficamos arrasados.

A escrita poética e erótica de MTH é marcada pela sua sensibilidade e pela profundidade com que aborda as relações humanas e os desafios da mulher na luta contra as convenções sociais, nomeadamente na forma de encarar a sexualidade. Ela subverte a ideia de pecado associada ao acto sexual e exalta livremente o corpo e a descoberta do prazer feminino.

Pelo título e pela epígrafe inicial posso intuir que este romance estabelece um diálogo com A Paixão Segundo G.H., de Clarice Lispector. Como ainda não o li, fica a promessa de o fazer brevemente para descobrir as consonâncias e dissonâncias presentes nas duas obras. Vai ser, certamente, uma leitura prazerosa porque também gosto da escrita de Clarice Lispector.