Texto breve inspirado em Ítalo Calvino, com um toque de humor e inspiração política.
Num tempo em que até o mar parece hesitar, este exercício criativo acompanha o senhor Palomar — personagem de olhar minucioso e pensamento inquieto — enquanto observa o vai e vem das ondas. Mas há alguém que o observa também: uma narradora cúmplice, sentada na areia, que vê no seu gesto uma metáfora para o país à beira das eleições.
Entre a espuma e o silêncio, entre o olhar e o voto, nasce este texto de hesitação universal e muito pessoal.
Entre a espuma e o silêncio, entre o olhar e o voto, nasce este texto de hesitação universal e muito pessoal.
“O mar está levemente encrespado e pequenas ondas vêm bater na costa arenosa. O senhor Palomar encontra-se na praia, de pé, e observa uma onda” com a solenidade de quem está a tentar decifrar um programa eleitoral redigido na gramática da espuma.
Eu, sentada a uns metros, observo Palomar. Ele observa o mar. O mar, por sua vez, parece ocupado demais, a repetir-se, para reparar em nós. A cena tem algo de coreográfico: a onda avança, recua, avança, recua, ora discreta ora vigorosa — como um candidato em campanha, cheio de promessas e pouco consistente.
Palomar não pisca. Mantém o olhar na onda. Eu já pisquei vinte vezes, e até já limpei os óculos. Ele permanece imóvel, como se o seu corpo fosse apenas um suporte para o olhar. A onda aproxima-se com mais vigor. Molha-lhe os pés. Ele não reage. Eu reajo por ele, num reflexo solidário. Mas ele continua firme, como quem acredita que o mar só revela os seus segredos a quem não se deixa influenciar por sondagens.
A próxima onda hesita. Palomar também. A espuma suspende-se por um instante.
Ele murmura:
— Esta onda... está indecisa.
Eu sorrio. Claro que está. Aproximam-se as autárquicas. Até o mar parece dividido entre manter o rumo ou votar na mudança. A espuma recua, como quem não quer comprometer-se. Palomar franze o sobrolho, talvez a tentar perceber se a ondulação é mais virada para o centro ou para a esquerda.
O vai e vem das ondas torna-se hipnótico. Há uma cadência, uma espécie de respiração do mundo. Palomar parece tentar sincronizar-se com ela. Eu tento sincronizar-me com Palomar, mas ele está num fuso horário diferente. Talvez esteja a contar as ondas como votos. Ou a tentar perceber se alguma delas é populista.
No fim, quando o sol começa a mergulhar no horizonte e a praia se pinta de dourado, Palomar dá um passo atrás. Olha para os pés molhados. Olha para mim. E diz, com a serenidade de quem passou o dia inteiro a conversar com o infinito:
— Acho que esta última... estava quase a decidir-se.
Eu sorrio. Talvez estivesse. Ou talvez fosse só mais uma onda. Mas mesmo entre espumas e incertezas, há sempre um momento em que é preciso escolher.
GR
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