28 julho, 2024

𝑼𝒎 𝒄ã𝒐 𝒅𝒆𝒊𝒕𝒂𝒅𝒐 à 𝒇𝒐𝒔𝒔𝒂, de Carla Pais

 

Autora: Carla Pais
Título: Um cão deitado à fossa
N.º de páginas: 211
Editora: Porto Editora
Edição: Fevereiro 2022
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3349)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


A leitura de Um cão deitado à fossa estranha-se no início e depois entranha-se gradual e emocionalmente.

Estranha-se pela estrutura não linear da narrativa, pela alternância de vozes, a do narrador na 3.ª pessoa e a de Urbano, na primeira pessoa, pela repetição constante e ritmada de expressões/frases, pelas palavras cruas; entranha-se, exactamente, pelas mesmas razões pelas quais se estranha, mas sobretudo pela força e beleza da linguagem. A condução da sua narrativa revela uma capacidade brilhante de expor registos diferentes quer ao nível do grafismo quer ao nível da linguagem utilizada pelas personagens.

Nesta narrativa, a autora não poupa o leitor. A sua escrita, como já o referi, é cuidada e poética, mas é de uma extrema crueza. Este aspecto acaba por se destacar na medida em que é, na minha opinião, intencional. As palavras cruas e cruéis, difusamente repetidas nas falas, nas interrogações, nos pensamentos das duas personagens principais, Urbano e Ofélia, caem no leitor como “um soco”. 
Um soco que o desperta para a existência de uma cultura geracional (o livro aborda três gerações) enraizada numa sociedade machista e violenta, de submissão da mulher-objecto que cuida da casa e dos filhos “ (porque choras, mãe?) ”; um soco que põe a nu a indiferença “sou feito de pó (…) que se cola às paredes (…) do corpo, ainda não cresci, pai, falta-me carne dentro da pele suja”, o desamor, a infidelidade, a agressividade “és como a puta da tua mãe, um inútil, desgraçado…”; um soco que sacode as emoções de quem página após página “vive”, de igual modo, as agruras de uma vida rural povoada de fantasmas no pó dos dias da “madeira esfarelada que se crava na pele e nos olhos”; um soco que o acorda para a realidade violenta de uma família destruída.


Carla Pais, tal como em Mea Culpa, leva o leitor a reflectir sobre os sentimentos humanos, a dureza da vida e, neste caso em particular, sobre a família. A ausência de afectos, o sofrimento silencioso que muitas vezes cala a violência doméstica, a traição, a submissão da mulher ao homem são ainda agravos desprezíveis e inaceitáveis da nossa sociedade.

Para terminar, Um cão deitado à fossa, que remete para um verso de Herberto Helder, citado como epígrafe, caracteriza desde logo o protagonista. Urbano rejeitado por um pai numa família desfeita, vai ele próprio destruir a sua família, destratando a mulher e afastando afectivamente os filhos.

Por isso Carla Pais oferece-nos um livro que mexe com o leitor, que abala profundamente os seus sentimento e que o força a encarar a realidade de frente. Nem que para isso lhe envie “socos” e mais “socos”.
“ajeita o teu corpo no meu, Urbano”
(…)
“Ajeita os teus olhos nos teus filhos que cresceram,

Se gostam de livros que mexem com as emoções e se ainda não conhecem a obra de Carla Pais procurem-na e leiam os seus livros. Não se vão arrepender.



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