30 julho, 2024

Um sítio para pousar a cabeça,

 

                                                                              GR




(...)

À minha volta estilhaça-se
o meu rosto em infinitos espelhos
e desmoronam-se os meus retratos nas molduras.

Só quero um sítio onde pousar a cabeça.
Anoitece em todas as cidades do mundo,
acenderam-se as luzes de corredores sonâmbulos
onde o meu coração, falando, vagueia.


Manuel António Pina


Haiku | escrita criativa

 





𝘌𝘮 𝘵𝘦𝘳𝘳𝘢 𝘥𝘦 𝘮𝘢𝘳
𝘗𝘢𝘳𝘵𝘪𝘭𝘩𝘢 𝘭𝘪𝘷𝘳𝘰𝘴, 𝘴𝘰𝘳𝘳𝘪𝘴𝘰𝘴
𝘕𝘰 𝘢𝘻𝘶𝘭 𝘪𝘯𝘵𝘦𝘯𝘴𝘰




28 julho, 2024

𝑼𝒎 𝒄ã𝒐 𝒅𝒆𝒊𝒕𝒂𝒅𝒐 à 𝒇𝒐𝒔𝒔𝒂, de Carla Pais

 

Autora: Carla Pais
Título: Um cão deitado à fossa
N.º de páginas: 211
Editora: Porto Editora
Edição: Fevereiro 2022
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3349)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


A leitura de Um cão deitado à fossa estranha-se no início e depois entranha-se gradual e emocionalmente.

Estranha-se pela estrutura não linear da narrativa, pela alternância de vozes, a do narrador na 3.ª pessoa e a de Urbano, na primeira pessoa, pela repetição constante e ritmada de expressões/frases, pelas palavras cruas; entranha-se, exactamente, pelas mesmas razões pelas quais se estranha, mas sobretudo pela força e beleza da linguagem. A condução da sua narrativa revela uma capacidade brilhante de expor registos diferentes quer ao nível do grafismo quer ao nível da linguagem utilizada pelas personagens.

Nesta narrativa, a autora não poupa o leitor. A sua escrita, como já o referi, é cuidada e poética, mas é de uma extrema crueza. Este aspecto acaba por se destacar na medida em que é, na minha opinião, intencional. As palavras cruas e cruéis, difusamente repetidas nas falas, nas interrogações, nos pensamentos das duas personagens principais, Urbano e Ofélia, caem no leitor como “um soco”. 
Um soco que o desperta para a existência de uma cultura geracional (o livro aborda três gerações) enraizada numa sociedade machista e violenta, de submissão da mulher-objecto que cuida da casa e dos filhos “ (porque choras, mãe?) ”; um soco que põe a nu a indiferença “sou feito de pó (…) que se cola às paredes (…) do corpo, ainda não cresci, pai, falta-me carne dentro da pele suja”, o desamor, a infidelidade, a agressividade “és como a puta da tua mãe, um inútil, desgraçado…”; um soco que sacode as emoções de quem página após página “vive”, de igual modo, as agruras de uma vida rural povoada de fantasmas no pó dos dias da “madeira esfarelada que se crava na pele e nos olhos”; um soco que o acorda para a realidade violenta de uma família destruída.


Carla Pais, tal como em Mea Culpa, leva o leitor a reflectir sobre os sentimentos humanos, a dureza da vida e, neste caso em particular, sobre a família. A ausência de afectos, o sofrimento silencioso que muitas vezes cala a violência doméstica, a traição, a submissão da mulher ao homem são ainda agravos desprezíveis e inaceitáveis da nossa sociedade.

Para terminar, Um cão deitado à fossa, que remete para um verso de Herberto Helder, citado como epígrafe, caracteriza desde logo o protagonista. Urbano rejeitado por um pai numa família desfeita, vai ele próprio destruir a sua família, destratando a mulher e afastando afectivamente os filhos.

Por isso Carla Pais oferece-nos um livro que mexe com o leitor, que abala profundamente os seus sentimento e que o força a encarar a realidade de frente. Nem que para isso lhe envie “socos” e mais “socos”.
“ajeita o teu corpo no meu, Urbano”
(…)
“Ajeita os teus olhos nos teus filhos que cresceram,

Se gostam de livros que mexem com as emoções e se ainda não conhecem a obra de Carla Pais procurem-na e leiam os seus livros. Não se vão arrepender.



25 julho, 2024

𝓪𝓼 𝓬𝓪𝓼𝓪𝓼 das Bibliotecárias

 

       
 


Ontem, dia 24 de julho,
   𝘌𝘮 𝘵𝘦𝘳𝘳𝘢 𝘥𝘦 𝘮𝘢𝘳
  𝘗𝘢𝘳𝘵𝘪𝘭𝘩𝘢 𝘭𝘪𝘷𝘳𝘰𝘴, 𝘴𝘰𝘳𝘳𝘪𝘴𝘰𝘴
  𝘕𝘰 𝘢𝘻𝘶𝘭 𝘪𝘯𝘵𝘦𝘯𝘴𝘰
coube-me a mim receber a equipa interconcelhia das bibliotecas escolares do Alentejo Litoral que acolheu duas novas colegas. Como era o último encontro deste ano letivo preparei um desafio disfarçado de miminho. Inspirei-me em dois livros maravilhosos - 𝓐𝓼 𝓖𝓪𝓵𝓸𝓬𝓱𝓪𝓼 𝓥𝓮𝓻𝓶𝓮𝓵𝓱𝓪𝓼, de Pedro Seromenho e 𝓪𝓼 𝓬𝓪𝓼𝓪𝓼 𝓭𝓪𝓼 𝓬𝓸𝓲𝓼𝓪𝓼, de João Pedro Mésseder, ambos ilustrados magistralmente por Rachel Caiano.

O encontro iniciou com a visita à exposição Thalassa! Thalassa! O Mar e o Mediterrâneo na obra de Sophia patente no piso -1 no Centro de Artes de Sines.
Depois, subimos ao piso 2 e descobrimos 𝓪 𝓬𝓪𝓼𝓪 da hora do conto, espaço lindo e convidativo, onde a nossa (sim, a nossa... vá! de todos) Cristina Fernandes encanta, com as suas leituras, as crianças de Sines. (Bem hajam Cristina e Liliana Rodrigues

Aí, e antes da ordem de trabalhos, convidei as colegas a descobrir 𝓪 𝓬𝓪𝓼𝓪 de papel que lhes ofereci. Um origami poético com desenhos e palavras que continha o tal desafio disfarçado de miminho, ou seja, uma tarefa de escrita criativa (sou mesmo chata, não sou! onde já se viu atribuir uma tarefa de férias!) Prometo divulgar em setembro/outubro o resultado.
De seguida, inspirada pelo espaço encantador e também imbuída no espírito das músicas do mundo, a nossa colega Fátima Nunes partilhou a leitura do último capítulo do livro Í𝒏𝒅𝒊𝒂, 𝒂 𝑷𝒓𝒊𝒏𝒄𝒆𝒔𝒂 𝒅𝒐 𝑴𝒂𝒓.

Depois destes momentos criativos, e enquanto degustávamos umas deliciosas cerejas e uvas, a nossa coordenadora Lucinda Simoes divulgou algumas informações pertinentes e as prioridades para as bibliotecas escolares para o ano letivo 2024/2025. Não as vou divulgar aqui, mas deslumbramos já muito Engenho e Arte.

No final, por entre trocas de souvenirs, de discursos, de abraços, de sorrisos, de uma ou outra lagrimazita, despedimo-nos da colega Rosa S B Martins que finda as suas funções como bibliotecária escolar.

Pelas12h15 mudámos de 𝓬𝓪𝓼𝓪 e dirigimo-nos para outra, A Palmeira (nome sugestivo que nos faz sonhar com as férias já bem merecidas). Foi um bom repasto! Tempo para degustar, conversar, lembrar histórias divertidas de roupa esquecida, de personagens desencontradas ... e sorrir e gargalhar.

A tarde terminou para algumas em reuniões (trabalho oblige) e para outras em passeio pelas ruas movimentadas e festivas em modo FMM.
Despeço-me até setembro! Desejo-vos boas leituras e umas boas férias se possível com galochas vermelhas.
 
Nota: a tarefa de férias consiste em escolher 𝓐 𝓬𝓪𝓼𝓪 ... e dar uma definição poética. Eu escolhi as galochas, como é óbvio.

𝓐 𝓬𝓪𝓼𝓪 𝓭𝓪𝓼 𝓰𝓪𝓵𝓸𝓬𝓱𝓪𝓼
𝘈𝘣𝘳𝘪𝘨𝘢 𝘰𝘴 𝘱é𝘴 𝘥𝘢 𝘤𝘩𝘶𝘷𝘢 𝘦 𝘢𝘥𝘰𝘳𝘢 𝘴𝘢𝘭𝘵𝘪𝘵𝘢𝘳 𝘯𝘢𝘴 𝘱𝘰ç𝘢𝘴 𝘥𝘦 á𝘨𝘶𝘢.
𝘘𝘶𝘢𝘯𝘥𝘰 𝘷𝘦𝘳𝘮𝘦𝘭𝘩𝘢𝘴, 𝘴ã𝘰 𝘤𝘰𝘳 𝘥𝘰 𝘢𝘮𝘰𝘳.

GR

23 julho, 2024

𝒂𝒔 𝒄𝒂𝒔𝒂𝒔 𝒅𝒂𝒔 𝒄𝒐𝒊𝒔𝒂𝒔, de João Pedro Mésseder | 𝑨𝒔 𝑮𝒂𝒍𝒐𝒄𝒉𝒂𝒔 𝑽𝒆𝒓𝒎𝒆𝒍𝒉𝒂𝒔, de Pedro Seromenho

 

Autor: João Pedro Mésseder |  Pedro Seromenho
Título: as casas das coisas | As Galochas vermelhas
Ilustradora: Rachel Caiano 
N.º de páginas: 43 | 34
Editora: Caminho | paleta
Edição: Setembro 2023 | 2024
Classificação: Infantil
N.º de Registo: 3607 | 3610




OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐


Dois livros encantadores que merecem ser lidos e apreciados. Dois autores diferentes, uma mesma ilustradora, Rachel Caiano. Amantes das palavras e dos traços que se completam maravilhosamente.
Apesar de diferentes, ou talvez por isso mesmo, trabalhei-os em conjunto e foi a simbiose perfeita. 
 O primeiro cheio de “casario” e de pequenos textos poéticos, convida o leitor a imaginar outras tantas casas… O segundo, narra o caminho das galochas vermelhas da Mia Flor. O caminho que lhe permite “correr, brincar e ser livre!” Ambos com desenhos FABULOSOS. Não me canso de apreciar os traços e as cores que tão bem completam e ilustram as palavras.

Após a leitura destes dois livros e, tal uma criança maravilhada, não resisti ao apelo de inventar imediatamente uma casa para as galochas. (nada de espectacular, apenas um exercício)

A casa das galochas
Abriga os pés da chuva e adora saltitar nas poças de água.
Quando vermelhas, são cor do amor.
 




20 julho, 2024

𝑨𝒈𝒏𝒆𝒔 𝑮𝒓𝒆𝒚, de Anne Brontë

 


Autora: AnneBrontë
Título: Agnes Grey
Tradutora: Manuela Porto
N.º de páginas: 206
Editora: Relógio d'Água
Edição: Julho 2019
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3519)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


Agnes Grey escrito em 1847 com pseudónimo masculino, Acton Bell, foi a primeira obra de Anne Brontë. Trata-se de um romance de formação com laivos autobiográficos que narra o percurso de uma jovem preceptora, Agnes Grey. A autora, pelo viés da literatura, lega-nos um testemunho importante sobre a sociedade inglesa da era vitoriana.

Agnes é uma jovem lutadora, destemida e forte que aprende a viver com os seus conflitos interiores e que tudo faz para superar os seus sonhos, os seus desejos. Ela rompe barreiras familiares e sociais quando decide sair de casa para trabalhar como preceptora, a fim de apoiar financeiramente a família.
“Devia ser muito bom ser-se precetora! Ver mundo, começar uma vida nova, ter iniciativa, utilizar as minhas próprias faculdades, até então inaproveitadas, experimentar as minhas capacidades, que eu própria desconhecia, ganhar o meu sustento e poder ajudar e confortar o meu pai, a minha mãe e a minha irmã …” (p. 15)

É no relato das suas experiências laborais em casa de famílias aristocráticas e ricas que se percepciona a crítica à forma como as crianças são instruídas e educadas pelos pais. Para Agnes, sem experiência e muito jovem, torna-se uma tarefa árdua, pois as crianças, rebeldes e egoístas, não lhe obedecem e tratam-na como subalterna. Em momento algum, ela pode contrariar as crianças extremamente mimadas, pelo que a sua primeira experiência torna-se, assim, num fracasso.
“ A minha tarefa, à medida que os dias passavam, em vez de se tornar mais fácil, pelo contrário, complicava-se, pois os caráteres iam-se evidenciando. Bem cedo percebi que a designação de precetora, dada à minha pessoa, era mais do que ironia. Os pequenos não tinham a menor noção do que fosse obediência. Eram como leõezinhos indomáveis. (…)” (p. 30)

Mas não desiste e ingressa noutra família decidida a vencer e a incutir nos seus pupilos algum conhecimento e boas regras de conduta. Nem sempre é fácil. A sua autoridade, se é que alguma vez a conseguiu impor, é constantemente desafiada. Porém, e apesar da vida difícil que mantém longe da família e sujeita aos reveses impostos pelas crianças e jovens que tem sob a sua responsabilidade, acaba por conhecer pessoas boas e, no final, todo o seu esforço é compensado. Convido-vos a descobri-lo.

Não sendo um romance extraordinário, lê-se com enorme prazer e adorei acompanhar o crescimento de Agnès. A sua integridade e tenacidade levam-na a ultrapassar as dificuldades sentidas em meios familiares desconhecidos que protagonizam valores e comportamentos diferentes dos seus.

Escrito na primeira pessoa, a autora, no papel de protagonista, transmite ao leitor as suas vivências e a visão da sociedade em relação à mulher emancipada que opta por trabalhar, por ser independente. Neste sentido, e tendo em conta a época, poder-se-á afirmar que este primeiro livro de Anne Brontë revela já um certo pendor feminista. O facto de recear a crítica que certamente não publicaria este livro escrito por uma mulher, fê-la assinar com nome masculino.




16 julho, 2024

𝑷𝒓𝒐𝒇𝒆𝒔𝒔𝒐𝒓 𝑼𝒏𝒓𝒂𝒕 𝒐𝒖 𝑶 𝑭𝒊𝒎 𝒅𝒆 𝒖𝒎 𝑻𝒊𝒓𝒂𝒏𝒐, de Heinrich Mann


Autor: Heinrich Mann
Título: Professor Unrat ou O Fim de um Tirano
Tradutor: Bruno C. Duarte
N.º de páginas: 239
Editora: E-Primatur
Edição: Fevereiro 2023
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3434)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


Escrito em 1905, Professor Unrat ou o Fim de um Tirano, foi o primeiro livro de Heinrich Mann, irmão deThomas Mann.

A acção decorre em Lübeck, cidade alemã, e retrata a decadência de um professor, a perda de valores da sociedade com a ascensão do nazismo.

Unrat que significa lixo, é o nome que os alunos e, por inerência, todos os habitantes da localidade, atribuem ao professor do liceu, de seu nome Raat. A alcunha vai acompanhá-lo ao longo da história e até o leitor acaba por aceitá-lo, à medida que evoluem as suas atitudes conducentes a um final decadente. Não há nunca empatia pela personagem. Unrat é um professor severo, moralista e dominado pela ânsia de vingança trata os seus alunos provenientes de uma classe social mais elevada, com hostilidade e arrogância, exercendo o seu poder de professor dentro de uma sala de aula.
“O instinto despótico de Unrat esbarrava no limite extremo da capacidade humana de submissão…” (p. 96)
Porém, um dia ao conhecer uma cantora de cabaré, Rosa Fröhlich, tudo muda na vida deste professor e dos seus alunos (nada mais revelarei) e da maioria dos habitantes.

Esta narrativa expõe magistralmente a moral de uma classe média, a queda de um professor de prestígio, respeitado pelos seus pares, mas que ao cair na libertinagem e que pelo viés do seu ideal de vingança se vai degradando de tal forma que se perde na anarquia do seu poder.

Este livro foi mal aceite pela crítica literária instituída que não via com bons olhos a denúncia da realidade social através da descrição psicológica de um tirano. Durante anos ficou “esquecido”, tendo-se tornado famoso através da adaptação cinematográfica, de O Anjo Azul de Josef von Sternber com Marlene Dietrich e Emil Jannings (1930)



14 julho, 2024

𝑻𝒆𝒓𝒓𝒂 𝑨𝒎𝒆𝒓𝒊𝒄𝒂𝒏𝒂, de Jeanine Cummins

 


Autora: Jeanine Cummins
Título: Terra Americana
Tradutora: Tânia Ganho
N.º de páginas: 445
Editora: Asa
Edição (3.ª): Agosto 2022
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3385)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐


Terra Americana entranha-se-nos nos poros, impede-nos de respirar, mergulha-nos na crueldade, na violência, na morte. Livro fabuloso, muitíssimo bem escrito que agarra o leitor logo na primeira página. Baseado numa realidade ainda actual, faz-nos reflectir sobre as condições de sobrevivência dos milhares de migrantes que lutam por encontrar noutro país uma vida mais segura.

Esta narrativa centra-se na fuga desesperada e muito sofrida de uma mãe (Lídia) e seu filho (Luca). Fogem pela vida, pela sobrevivência depois de verem chacinada a sua família mais próxima às mãos de narcotraficantes, em Acapulco. Ela sabe que “a sua sobrevivência é uma questão de instinto e não de vontade.” (p. 320) Ela desconhece tudo. Os riscos, as dificuldades, o horror a que se vão submeter.

Sem alternativa, sabendo apenas que tudo fará para salvar o seu filho, Lídia foge do luto que se impõe e que mais tarde ou mais cedo terá de fazer, para se concentrar no terror, no medo de não conseguir sobreviver e chegar à fronteira do deserto de Sonora. É através destes dois sobreviventes, imigrantes forçados, que vamos enfrentar uma viagem louca, desenfreada, violenta envolta de um medo inavaliável, mas também de uma coragem insuspeitada à partida e descobrir o sofrimento e o desespero de todos os que, como eles, tentam escapar à denúncia, à deportação, à morte.

A escrita de Cummins é magistral, perturbadora e envolvente. Após uma longa pesquisa e recorrendo a informação verídica sobre a problemática da imigração, construiu uma narrativa forte que evolui num crescendo de horror, pontuada por momentos de extrema violência, sobretudo para as mulheres jovens, e de riscos iniludíveis quer no acesso ao comboio “a besta” quer na travessia do deserto. Contudo e, apesar, de tanta crueldade e violência há momentos bonitos, ternurentos, de solidariedade, de união e, por que não, de esperança.

Recomendo muito a sua leitura, por três razões. A primeira porque é um livro controverso na medida em que suscita diversas opiniões sobre a problemática, ainda actual e premente, da imigração quer em território americano quer em território europeu; a segunda, porque é um livro que nos habita, que deixa marcas e a terceira porque é um livro sobre mulheres, mulheres corajosas, mulheres sobreviventes.
Para finalizar, gostaria de referir que Luca, com oito anos, é uma criança extraordinária que se agarra à vida e que leva com ele a sua mãe e as outras personagens que se uniram a ele.


Joyeux 14 juillet

 Claude Monet | La rue Montorgueil, Paris | 1878


Liberté 

Sur mes cahiers d’écolier
Sur mon pupitre et les arbres
Sur le sable sur la neige
J’écris ton nom

Sur toutes les pages lues
Sur toutes les pages blanches
Pierre sang papier ou cendre
J’écris ton nom

Sur les images dorées
Sur les armes des guerriers
Sur la couronne des rois
J’écris ton nom

Sur la jungle et le désert
Sur les nids sur les genêts
Sur l’écho de mon enfance
J’écris ton nom

Sur les merveilles des nuits
Sur le pain blanc des journées
Sur les saisons fiancées
J’écris ton nom

Sur tous mes chiffons d’azur
Sur l’étang soleil moisi
Sur le lac lune vivante
J’écris ton nom

Sur les champs sur l’horizon
Sur les ailes des oiseaux
Et sur le moulin des ombres
J’écris ton nom

Sur chaque bouffée d’aurore
Sur la mer sur les bateaux
Sur la montagne démente
J’écris ton nom

Sur la mousse des nuages
Sur les sueurs de l’orage
Sur la pluie épaisse et fade
J’écris ton nom

Sur les formes scintillantes
Sur les cloches des couleurs
Sur la vérité physique
J’écris ton nom

Sur les sentiers éveillés
Sur les routes déployées
Sur les places qui débordent
J’écris ton nom

Sur la lampe qui s’allume
Sur la lampe qui s’éteint
Sur mes maisons réunies
J’écris ton nom

Sur le fruit coupé en deux
Du miroir et de ma chambre
Sur mon lit coquille vide
J’écris ton nom

Sur mon chien gourmand et tendre
Sur ses oreilles dressées
Sur sa patte maladroite
J’écris ton nom

Sur le tremplin de ma porte
Sur les objets familiers
Sur le flot du feu béni
J’écris ton nom

Sur toute chair accordée
Sur le front de mes amis
Sur chaque main qui se tend
J’écris ton nom

Sur la vitre des surprises
Sur les lèvres attentives
Bien au-dessus du silence
J’écris ton nom

Sur mes refuges détruits
Sur mes phares écroulés
Sur les murs de mon ennui
J’écris ton nom

Sur l’absence sans désir
Sur la solitude nue
Sur les marches de la mort
J’écris ton nom

Sur la santé revenue
Sur le risque disparu
Sur l’espoir sans souvenir
J’écris ton nom

Et par le pouvoir d’un mot
Je recommence ma vie
Je suis né pour te connaître
Pour te nommer

Liberté.


Paul Eluard



13 julho, 2024

Espera-me


                                                                        Foto GR




Espera-me


Nas praias que são o rosto branco das amadas mortas
Deixarei que o teu nome
se perca repetido

Mas espera-me:
Pois por mais longos que sejam os caminhos
Eu regresso.


Sophia de Mello Breyner Andresen



09 julho, 2024

Súplica

 




Súplica

Agora que o silêncio é um mar sem ondas,
E que nele posso navegar sem rumo,
Não respondas
Às urgentes perguntas
Que te fiz.
Deixa-me ser feliz
Assim,
Já tão longe de ti como de mim.


Perde-se a vida a desejá-la tanto.
Só soubemos sofrer, enquanto
O nosso amor
Durou.
Mas o tempo passou,
Há calmaria...
Não perturbes a paz que me foi dada.
Ouvir de novo a tua voz seria
Matar a sede com água salgada.


Miguel Torga



07 julho, 2024

Encontro Regional Ler, escrever e contar a LIBERDADE | 4 e 5 Junho | Évora



“Lembra-me um sonho lindo,…”diz a canção do Fausto. Também eu poderia iniciar assim o meu balanço dos dois dias do Encontro passados na bela e quente cidade alentejana.

Mas não foi um sonho! Foi concreto, foi vivido, foi sentido! Por isso, adapto o verso e inicio com “lembra-me um encontro lindo,…”, um Encontro de aprendizagem, de partilha de boas práticas, de livros, de escrita, de poesia, de contos e recontos, mas também de descoberta de arte, património, gastronomia, de encontros, de conversas, de abraços, de emoções, de LIBERDADE!

Neste Encontro, no auditório da DGEsTE, visionei pequenos vídeos fabulosos que versavam, de variadíssimas formas, sobre Abril, sobre a Liberdade, … elaborados por alunos das nossas escolas.

Neste Encontro, assisti a uma esclarecida e cativante “aula” de História proferida por Fernando Rosas, que para além de nos apresentar factos da Revolução dos cravos, lembrou-me (nos), que no “entardecer sombrio” que toda a Europa vive presentemente, é importante “recorrer à leitura, ao livro, para semear a liberdade”. Obviamente, que como leitora, continuarei a lançar sementes para que a liberdade perdure, inteira e limpa.

Neste Encontro, na Escola Secundária André de Gouveia, participei activamente no Workshop “Escritas em forma de Abril”, dinamizado pelo escritor João Pedro Mésseder. Foram três horas de deslumbramento pelas palavras ditas, lidas e escritas, pelas ilustrações, pelos livros e pelas partilhas. Foram três horas de palavras claras, leves, anoitecidas, livres, musicais, … em forma de Abril.
O calor cortou-me a inspiração, mas não a liberdade de escrever, pelo que partilho o haicai que criei:

Que nunca esqueças
a clara madrugada
de abril pintada


  

Ao entardecer, na companhia bem disposta e amiga de mais seis companheiros de luta, entenda-se, de bibliotecas escolares, deambulámos pelas ruas à descoberta do património, da gastronomia (que belo repasto!) e de uma temperatura abaixo dos 39.º. 

No dia seguinte, regressámos à escola secundária, e voltei a maravilhar-me, desta vez, pelas palavras e ilustrações do multifacetado Pedro Seromenho no Workshop “ O livro e a liberdade”. Tal uma criança ávida de sonhos, deixei-me conduzir pelas histórias poeticamente narradas e apreciei as ilustrações e desenhos revelados/criados. Foi um despertar de memórias, de emoções!

        

        




À tarde, assisti, de novo, à partilha de boas práticas das escolas alentejanas e ouvi João Couvaneiro que nos presenteou com uma conferência interessante sobre Educar para a Liberdade em tempos de Inteligência Artificial. Retive algumas ideias importantes e sugestões de ferramentas. Cito duas frases referidas que considero pertinentes e com as quais também concordo e que se adequam aos novos desafios da IA.
A primeira, “O exemplo não é a melhor forma de educar! É a única!”
A segunda, “Não é no dia em que se plantam as sementes, que se colhem as maçãs.”

E para terminar este longo texto que, provavelmente, poucos lerão, recorro à poesia, mais propriamente, a aforismos de João Pedro Mésseder (Inéditos)

“Liberdade: soubesses defini-la, mas apenas sabes dizer a falta que ela te faz.
Por cada Abril que semeias, mil Abris hás de colher.
A liberdade é um farol, talvez seja até um mar.”

Lucinda, Fátima, Rosa, Antónia, Rute, Mariana, Catarina e Rui (comparsas do Encontro), sei que sabem definir a Liberdade, pelo que resta-vos (nos) continuar a semear Abris. Agradeço-vos por terem partilhado comigo estes dois dias.
Ao João Pedro Mésseder e ao Pedro Seromenho agradeço as palavras, as ilustrações, os livros e, sobretudo, a liberdade na partilha dos vossos conhecimentos e experiências.

A todos os que directa e indirectamente contribuíram para a organização deste evento e que participaram nos diversos momentos, o meu bem-haja.

Marcamos Encontro para 2025. Muitas e boas leituras!


01 julho, 2024

Fausto Bordalo Dias (1948 - 2024)

 


Ao vivo nos 40 anos de “Por Este Rio Acima” | Aula Magna | Lisboa | Rita Carmo



Lembra-me um sonho lindo



Lembra-me um sonho lindo
Quase acabado
Lembra-me um céu aberto
Outro fechado

Estala-me a veia em sangue
Estrangulada
Estoira num peito um grito
À desfilada

Canta rouxinol canta
Não me dês penas
Cresce girassol cresce
Entre açucenas

Afaga-me o corpo todo
Se te pertenço
Rasga-me o vento ardendo
Em fumos de incenso

Lembra-me um sonho lindo
Quase acabado
Lembra-me um céu aberto
Outro fechado

Estala-me a veia em sangue
Estrangulada
Estoira num peito um grito
À desfilada

Ai como eu te quero
Ai de madrugada
Ai alma da terra
Ai linda, assim deitada

Ai como eu te amo
Ai tão sossegada
Ai beijo-te o corpo
Ai seara, tão desejada

Canta rouxinol canta
Não me dês penas
Cresce girassol cresce
Entre açucenas

Afaga-me o corpo todo
Se te pertenço
Rasga-me o vento ardendo
Em fumos de incenso

Ai como eu te quero
Ai na madrugada
Ai alma da terra
Ai linda assim deitada

Ai como eu te amo
Ai tão sossegada
Ai beijo-te o corpo
Ai seara, tão desejada

Ai como eu te quero
Ai na madrugada
Ai alma da terra
Ai linda assim deitada

Ai como eu te amo
Ai tão sossegada
Ai beijo-te o corpo
Ai seara, tão desejada

Ai como eu te quero
Ai na madrugada
Ai alma da terra
Ai linda assim deitada

Ai como eu te amo
Ai tão sossegada
Ai beijo-te o corpo
Ai seara, tão desejada

Ai como eu te quero
Ai na madrugada
Ai alma da terra
Ai linda assim deitada


Canção de Fausto Bordalo Dias



Leituras | 6 Meses