24 maio, 2021

Carlos Fiolhais escreve sobre o último livro de Afonso Cruz





No seu mais recente título, uma coletânea de pequenos textos, histórias e divagações à volta de livros, diz-nos que estes tanto podem matar como salvar-nos.



Tenho o vício dos livros. Não resisto nunca a entrar numa livraria ou alfarrabista. Leio pelo menos um livro por semana para fazer as recensões para este jornal e, por vezes, são mesmo dois ou três. Já me aconteceu regressar de uma livraria todo contente com um livro novo na mão, para verificar na minha biblioteca que afinal já tinha esse título, não passando de uma nova edição: não fico desconsolado, pois, se o tenho em duplicado, posso sempre oferecê-lo. E, de facto, duas edições diferentes são dois livros diferentes.

Se houvesse uma comunidade de “bibliófilos anónimos” não hesitaria em entrar, procurando apoio para “alcançar e manter a sobriedade através da abstinência total” de compra de livros. Encontraria lá gente muito interessante, como, por exemplo, Afonso Cruz, que acaba de publicar O Vício dos Livros, com a chancela da Companhia das Letras (do grupo Penguin Random House). É uma bela edição de capas duras, com ilustrações do próprio autor, que foi lançada no Dia Mundial do Livro e do Direito de Autor, 23 de Abril.

Tive a oportunidade de entrevistar Afonso Cruz em 23 de Novembro de 2018, no 10.º aniversário do Rómulo, Centro Ciência Viva da Universidade de Coimbra, o centro que fundei à volta de uma biblioteca que homenageia Rómulo de Carvalho (nome real do poeta António Gedeão). Por essa biblioteca têm passado escritores como João Lobo Antunes, José Tolentino de Mendonça e Onésimo Teotónio Almeida. Tenho oferecido muitos livros a essa biblioteca, juntando-os a livros oferecidos, entre outros, por Guilherme Valente, o editor da Gradiva, e pela família de António Manuel Baptista, o grande divulgador da ciência. Também lá estão alguns livros de Afonso Cruz, que ele assinou na altura.

Afonso Cruz dispensa apresentações para além daquela que ele, com concisão, faz de si próprio nas badanas dos seus livros: “Escritor, ilustrador, cineasta e músico da banda The Safed Lam. Em Julho de 1971, na Figueira da Foz, era completamente recém-nascido, e haveria, anos mais tarde, de frequentar lugares como a António Arroio, as Belas-Artes de Lisboa, o Instituto Superior de Artes Plásticas da Madeira e mais de meia centena de países. Assina, desde Fevereiro de 2013, uma crónica mensal no Jornal de Letras, Artes e Ideias sob o título “Paralaxe”. Recebeu vários prémios e distinções nas diversas áreas em que trabalha, vive no campo e gosta de cerveja.”

Fui, depois da entrevista no Rómulo, jantar com ele, tendo confirmado que gosta de cerveja, bebida que, segundo me explicou, era na Terra Santa mais comum do que o vinho no tempo de Jesus Cristo. Daí o curioso título de um dos seus romances, Jesus Cristo Bebia Cerveja (Alfaguara, 2012). Os seus títulos primam, aliás, pela originalidade. O primeiro, com um título também de ressonâncias religiosas, A Carne de Deus (Bertrand, 2008), é uma história de aventuras tendo a maçonaria como pano de fundo. Entre esses dois livros saíram A Boneca de Kokoschka (Quetzal, 2010; reedição: Companhia das Letras, 2018) e O Pintor Debaixo do Lava-Loiças (Caminho, 2011). Seguiram-se, com uma regularidade impressionante, outros romances: O Livro do Ano (Alfaguara, 2013), O Cultivo de Flores de Plástico (idem, 2013), Para Onde Vão os Guarda-Chuvas (Companhia das Letras, 2013), Flores (idem, 2015), Nem Todas As Baleias Voam (idem, 2016), Jalan Jalan: Uma leitura do mundo (idem, 2017; “jalan” significa, em indonésio, “passear”), O Princípio de Karenina (idem, 2018), e Paz Traz Paz (Companhia das Letras, 2019). O estilo literário é, como os títulos, bastante original. Alguns destes livros foram premiados: por exemplo, Jalan Jalan ganhou em 2017 o Grande Prémio de Literatura de Viagens Maria Ondina Braga da Associação Portuguesa de Escritores e da Câmara Municipal de Braga.

Gosto particularmente da colecção de sete livros de Afonso Cruz, intitulada Enciclopédia da Estória Universal, quase todos da Alfaguara, saídos entre 2009 e 2018. São conjuntos de histórias apócrifas e aforismos de autores fictícios. De início estranhei, mas depois entranhei.

Afonso Cruz escreveu também vários livros infanto-juvenis, sendo o primeiro Os Livros que Devoraram o Meu Pai (Caminho, 2010) e o mais recente Como Cozinhar uma Criança (Alfaguara, 2019). Mais uma vez títulos extraordinários. Um outro livro recente dele é o ensaio O Macaco Bêbedo Foi à Ópera (Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2019), uma breve história cultural do álcool, com histórias sobre cerveja e vinho.

O Vício dos Livros é uma colectânea de pequenos textos, histórias ou divagações à volta de livros, que, na sua maior parte, viram a luz do dia no Jornal de Letras. O primeiro, “A primeira vez que conheci um esquifobético (A neve desaparece mas o original não desoriginaliza)”, conta os rabiscos que um brasileiro maluco fez intempestivamente no livro A Brincadeira de Milan Kundera que Cruz estava a ler, uma algaravia que o “esquifobético” - um termo não dicionarizado - traduziu para dar a frase do parêntesis. O último, “A voz dos livros”, conta a oferta que um avô lhe fez do livro Eles Vieram de Madrugada, de Manuela Câncio Reis, a mulher do escritor Soeiro Pereira Gomes, que foi preso político durante longos anos. A dedicatória do avô, também preso político, dizia: “Para o meu neto, para que ele perceba um pouco daquilo que passei”. Escreve Cruz: “Este livro deixou então de ser de Manuela Câncio Reis para passar a ser o livro que o meu avô me escreveu. E a voz que ouvi enquanto lia o livro era a sua”.

Revelo um pouco deste estimulante livro sobre livros. Aprendi que os livros podem matar. O texto “Porém, a poesia pode matar amigos” conta a história de dois amigos que discutiram qual era o género literário mais significativo, a poesia ou a prosa. O amante de poesia acabou por matar o antagonista à facada. No texto “O poeta que foi assassinado pelos seus próprios livros”, Afonso Cruz, depois de descrever casos reais em que a queda de uma biblioteca matou o seu proprietário, escreve: “Qualquer bom leitor, quanto maior for a sua biblioteca, mais sente o peso esmagador do que leu e, principalmente, do que não leu […] e nunca poderá ler, ainda que, felizmente, o faça de forma menos literal do que os exemplos antes referidos.” A literatura, se por vezes mata, noutras vezes pode salvar. Em “A morte, perante os livros, fica sem poder” o autor cita um estudo da Universidade de Yale que expõe os benefícios da leitura: “Ler 30 minutos por dia fará viver, em média, mais dois anos. Se não for pelo prazer de ler, talvez devamos ler pela nossa saúde.”

Um dos textos que mais gostei está relacionado com a física. Intitulado “Principio de Anti-Fermat”, parte da experiência do autor, adolescente, a ler num autocarro a caminho da escola: “O princípio de Fermat diz-nos que a luz não percorre a distância mais curta, mas sim o tempo menor entre dois pontos. Um leitor, muitas vezes, tenta encontrar o caminho mais lento entre dois pontos. Era isso o que eu fazia. Ia para a escola pelo caminho com mais palavras.”

Sobre a liberdade que a leitura confere, Afonso Cruz conta a história de uma mulher do Kuwait que abandonou as vestes e os hábitos tradicionais: “Comecei a ler e libertei-me”. Há outras citações. Por exemplo, de uma inscrição egípcia: “Na biblioteca do faraó Ramsés II estava escrito por cima da porta de entrada: Casa para terapia da alma”. E do escritor francês Jules Renard: “Quando penso em todos os livros que tenho para ler, tenho a certeza de ainda ser feliz.” São citados outros escritores como Plutarco, Lewis Carroll, Edith Wharton, Stefan Zweig, Franz Kafka, Aldous Huxley, Rainer Maria Rilke, Elias Canetti, George Steiner e Rosa Montero.

O texto “O que se esconde debaixo de um poema” fez-me lembrar Jorge Luís Borges: “Um poeta, quando escreve um poema e levanta a folha onde o escreveu, descobre uma infindável pilha de poemas onde foi escrita toda a poesia que precedeu o seu poema, e ao pousar essa mesma folha verá que já contém o peso de incontáveis poemas escritos sobre aquele que acabou de escrever.” De facto, os livros têm sempre um passado e um futuro.

Vou colocar O Vício dos Livros na minha biblioteca perto de outros livros sobre livros. Acho que fica bem perto do livrinho de Montaigne Dos Livros (Teorema, 1999), que aliás Afonso Cruz cita, e onde o escritor francês comenta as suas leituras: “Não me apego aos livros novos porque os antigos me parecem mais ricos e mais sólidos”. E do de Proust O Prazer da Leitura (idem, 1997), onde se lê: “O que difere essencialmente entre um livro e um amigo, não é a sua maior ou menor sensatez, mas a maneira como se comunica com ele; a leitura, ao arrepio da conversa, consistindo para cada um de nós em receber comunicação de outro pensamento, mas permanecendo a sós.”

Na biblioteca do Rómulo, em Coimbra, os livros de Afonso Cruz estão na companhia dos de Carl Sagan, que, em Cosmos (Gradiva, 2020), escreveu: “Os livros permitem-nos viajar através do tempo, de beber na própria fonte o saber dos nossos antepassados. A biblioteca põe-nos em contacto com as concepções e o saber, a custo extraídos da natureza, das maiores mentes até agora existentes, com os melhores professores, provindos de todo o planeta e de toda a nossa história, para nos instruírem sem nos fatigarmos e para nos inspirarem a dar a nossa contribuição ao saber colectivo da espécie humana.” O mais recente livro de Afonso Cruz entrará um dia no Rómulo. Tenho esperança de que ajude a fomentar o vício dos livros.


CARLOS FIOLHAIS 



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