28 fevereiro, 2025

𝑷𝒐𝒅𝒆 𝑼𝒎 𝑫𝒆𝒔𝒆𝒋𝒐 𝑰𝒎𝒆𝒏𝒔𝒐, de Frederico Lourenço

 


Autor: Frederico Lourenço
Título: Pode um Desejo Imenso
N.º de páginas: 504
Editora: Quetzal Editora
Edição: Abril 2022
Classificação: Romance
N.º de Registo: (BE)




OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


Pode um Desejo Imenso publicado na Quetzal em Abril de 2022, foi, primeiramente, publicado como trilogia pela Cotovia. Ou seja, a este título publicado em 2002, seguiram-se O Curso das Estrelas, também em 2002, e À beira do mundo, em 2003.
Nesta nova edição, com uma capa belíssima, foi atribuído o mesmo título a cada uma das três partes que o constituem e pela mesma ordem de escrita.

Não sendo um romance autobiográfico, como já foi referido pelo autor, em entrevistas, acaba por revelar aprendizagens conquistadas quer pessoal quer profissionalmente.
Poder-se-á intuir, certamente, que o protagonista, Nuno Galvão, professor universitário especialista de literatura e da obra de Camões, é o alter-ego de Frederico Lourenço, na sua paixão pelos clássicos, sobretudo por Camões, que tanto cita ao longo da narrativa. Aliás o verso camoniano, que deu o título ao livro, será o elo agregador das três partes.
Na primeira parte, Nuno Galvão professor universitário, camoniano de paixão, desenvolve uma tese sobre Camões e foca-se no possível amor que o poeta sentiu por D. António de Noronha de quem foi preceptor. O livro constrói-se no paralelismo existente entre este possível amor e a paixão platónica do professor universitário por um dos seus alunos.

Na segunda parte, há um retorno ao tempo em que Nuno Galvão é estudante universitário e com ele mergulhamos nas dúvidas existências, sexuais e na lírica de Camões, entre outros aspectos que não vou desvendar. Na terceira, é o regresso ao presente, a alguns reencontros e a possíveis reconciliações. O final da história, em aberto, é quase cinematográfico e abre um caminho à esperança, “em direção à outra margem”. Talvez seja a parte mais ficcional.

Assim, ao longo da obra – das três partes - acompanhamos o crescimento do homem e do intelectual, Nuno Galvão. Reencontramos o amor e a sexualidade expostos sem tabus. Conhecemos um homem que vive, de forma intensa e controlada, um amor platónico, que descobre a sua inclinação homossexual, que explora o homoerotismo, que se aceita com lucidez. Emocionamo-nos com o sofrimento e com as perdas. Admiramos a sua dedicação à profissão e a Camões.

A escrita de Frederico Lourenço é erudita, por vezes complexa, mas fluente, acabando por conduzir o leitor a uma leitura ávida. Há inúmeras referências a autores clássicos, a versos da lírica camoniana que tanto me agradam. Contudo, aquando da leitura da primeira parte que integra a comunicação "Camões e D. António de Noronha. Ecos Homoeróticos nas Rimas" que Nuno Galvão irá proferir num colóquio camoniano, interroguei-me se, quem não tiver um conhecimento mais vasto do nosso maior poeta, poderá, da mesma forma, fruir completamente deste livro. Talvez não. Mas poderá servir de motivação para a descoberta ou aprofundamento da sua lírica. O romance, em si, acompanha-se perfeitamente.

Pode um desejo imenso
Arder no peito tanto
Que à branda e a viva alma o fogo intenso
Lhe gaste as nódoas do terreno manto,
E purifique em tanta alteza o espírito
Com olhos imortais
Que faz que leia mais do que vê escrito.

(…)

Ode VI, de Luís Vaz de Camões

27 fevereiro, 2025

Pode um desejo intenso | Camões






Pode um desejo imenso
Arder no peito tanto,
Que à branda e à viva alma o fogo intenso
Lhe gaste as nódoas do terreno manto,
E purifique em tanta alteza o espírito
Com olhos imortais
Que faz que leia mais do que vê escrito.

Que a flama que se acende
Alto, tanto alumia
Que, se o nobre desejo ao bem se estende
Que nunca viu, o sente claro dia;
E lá vê do que busca o natural,
A graça, a viva cor,
Noutra espécie melhor que a corporal.

Pois vós, ó claro exemplo
De viva fermosura,
Que de tão longe cá noto e contemplo
Na alma, que este desejo sobe e apura;
Não creiais que não vejo aquela imagem
Que as gentes nunca vêm,
Se de humanos não têm muita vantagem.

Que, se os olhos ausentes
Não vêm a compassada
Proporção, que das cores excelentes
De pureza e vergonha é variada;
Da qual a Poesia, que cantou
Até aqui só pinturas,
Com mortais fermosuras igualou;

Se não vêm os cabelos
Que o vulgo chama de ouro,
E se não vêm os claros olhos belos,
De quem cantam que são do Sol tesouro;
E se não vêm do rosto as excelências,
A quem dirão que deve
Rosa e cristal e neve as aparências;

Vêm logo a graça pura
A luz alta e severa
Que é raio da Divina fermosura,
Que na alma imprime e fora reverbera,
Assim como cristal do Sol ferido,
Que por fora derrama
A recebida flama, esclarecido.

E vêm a gravidade
Co'a viva alegria
Que misturada tem, de qualidade
Que da outra nunca se desvia;
Nem deixa ua de ser arreceada,
Por leda e por suave,
Nem outra, por ser grave, muito amada.

E vêm do honesto siso
Os altos resplandores
Temperados co'o doce e ledo riso,
A cujo abrir abrem no campo as flores;
As palavras discretas e suaves,
Das quais o movimento
Fará deter o vento e as altas aves;

Dos olhos o virar
Que torna tudo raso,
Do qual não sabe o engenho divisar
Se foi por artifício, ou feito a caso;
Da presença os meneios e a postura,
O andar e o mover-se,
Donde pode aprender-se fermosura.

Aquele não sei quê,
Que aspira não sei como,
Que, invisível saindo, a vista o vê,
Mas pera o compreender não acha tomo;
O qual toda a toscana poesia,
Que mais Febo restaura,
Em Beatriz nem em Laura nunca via;

Em vós a nossa idade,
Senhora, o pode ver,
Se engenho, e ciência, e habilidade
Igual à fermosura vossa der,
Como eu vi no meu longo apartamento,
Qual em ausência a vejo.
Tais asas dá o desejo ao pensamento!

Pois se o desejo afina
Ua alma acesa tanto
Que por vós use as partes de divina,
Por vós levantarei não visto canto,
Que o Bétis me ouça e o Tibre me levante;
Que o nosso claro Tejo
Envolto um pouco o vejo e dissonante.

O campo não o esmaltam
Flores, mas só abrolhos
O fazem feio; e cuido que lhe faltam
Ouvidos pera mim, pera vós olhos.
Mas faça o que quiser o vil costume;
Que o Sol, que em vós está,
Na escuridão dará mais claro lume.


Ode VI da edição de 1598 das Rimas


21 fevereiro, 2025

𝑶 𝑺𝒆𝒈𝒓𝒆𝒅𝒐 𝒅𝒐 𝑩𝒐𝒔𝒒𝒖𝒆 𝑽𝒆𝒍𝒉𝒐 , de Dino Buzzati




Autor: Dino Buzzati
Título: O Segredo do Bosque Velho
Tradutora: Margarida Periquito
N.º de páginas: 156
Editora: Cavalo de Ferro
Edição (4.ª): Abril 2018
Classificação: Romance
N.º de Registo: (BE)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐



Descobri Dino Buzzati com O Deserto dos Tártaros, leitura sugerida por alguém que aprecia bons livros. Gostei tanto que assim que vi O Segredo do Bosque Velho, na biblioteca da minha escola, reservei-o para ler. Dois livros com enredos completamente diferentes que garantem a qualidade da escrita e o arrebatamento do leitor.

Neste, temos a efabulação maravilhosa da natureza. A narrativa é alimentada por animais que falam, pequenos génios invisíveis que povoam abetos e outras árvores, espíritos e ventos com múltiplos poderes,… personagens que se mesclam entre o real e o fantástico, entre o mal e o bem com o objectivo de denunciar comportamentos humanos.

Tudo começa com a decisão do protagonista, Sebastiano Procolo, herdeiro de uma parte do bosque velho, em abater algumas árvores para obter ganhos financeiros. A harmonia existente no local, esvai-se, pelo que surgem inúmeras peripécias que não vou desvendar para não retirar o prazer da descoberta a quem pretender ler o livro.

A magia impõe-se pela personificação da natureza que, pelo viés de elementos encantatórios, põe em destaque a intriga e a maldade do homem.
Numa escrita simples, clara e contida o autor presenteia-nos com uma alegoria magnífica que desassossega e, simultaneamente, revela a inocência da infância (há uma criança na história) e a brutalidade do homem.
É um livro que recomendo. Apesar de ser, supostamente, classificado como leitura juvenil, considero que é um livro fascinante para todos, sem catalogação de idade.



18 fevereiro, 2025

Dias simples e emotivos


Hoje, fui à minha escola para assistir à segunda fase do Concurso de Leituras na Planície.
Contudo, o teor desta minha mensagem é outro como podem constatar pelas fotos.
Fui agradavelmente surpreendida pelo carinho de um grupo de alunos que representam a associação de estudantes da escola. É bom quando o trabalho de uma vida é reconhecido, mas quando o é pelos alunos ficamos, ainda, mais emocionados e eternamente gratos. Vim de braços e coração cheios.



          

         



17 fevereiro, 2025

𝑵𝒐𝒊𝒕𝒆, de Elie Wiesel

 


Autor: Elie Wiesel
Título: Noite
Tradutora: Paula Almeida
N.º de páginas: 133
Editora: D. Quixote
Edição: Agosto 2023
Classificação: Testemunho
N.º de Registo: (3663)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐


Vencedor do Prémio Nobel da Paz em 1986, Elie Wiesel, judeu e sobrevivente do Holocausto, desenvolveu um trabalho importante em defesa da dignidade e dos direitos humanos.
Noite é um testemunho importante (ao nível de um Se Isto É Um Homem, de Primo Levi) sobre os horrores praticados na segunda guerra mundial porque nos apresenta um relato aterrador e doloroso da sua experiência no gueto e nos campos de concentração.

Com apenas 15 anos, Elie e o pai, separados da mãe e das irmãs logo à chegada ao campo, à tão terrível selecção – “o perigo mais grave”, lutaram pela sobrevivência. Enfrentaram torturas, fome, frio, longas caminhadas, doenças e presenciaram a morte nas mais diversas formas.

Numa escrita crua, concisa e intensa, Elie, anos depois e por uma questão de sobrevivência mental, resgata as suas memórias por entender que é necessário preservá-las e revelá-las ao mundo. Elie denuncia detalhadamente a violência, a crueldade de episódios que viveu e testemunhou; revela a sua perda de inocência (“( …) daquela criança que descobre. De uma assentada, o mal absoluto.”) e de dignidade perante o horror e a banalidade do mal; descobre a sua revolta, a sua angústia por ter deixado de acreditar em Deus, “Não tinha negado a Sua existência, mas duvidada da Sua justiça absoluta.” (p. 59); denuncia a sua impotência perante a morte há muito anunciada de seu pai. É doloroso acompanhar a degradação das pessoas perante a necessidade de sobrevivência.

Por muito que já tenha lido sobre o assunto, sou sempre surpreendida com novos factos que me levam a reflectir sobre a crueldade do ser humano em relação ao outro e sobre a real dimensão da ferida legada às gerações seguintes.
Hoje, surge-nos, de novo, a ameaça dos valores humanos, democráticos. Urge analisar, debater e repensar alguns valores visíveis e crescentes nas nossas sociedades, como a xenofobia, a descriminação, a intolerância. Há uma dimensão do mal que se instala gratuitamente

Apesar, de ser uma obra dura porque muito realista, recomendo a sua leitura. Elie Wiesel dedicou parte da sua vida a lutar pelos direitos humanos e a manter viva a memória do Holocausto.
A certa altura (p. 48), perante o que ele e muitos apelidaram de “antecâmara do inferno”, ou seja, perante “tanta brutalidade bestial”, Elie, apertou a mão do pai e pensou:
“Nunca esquecerei aquela noite, a primeira noite no campo, que fez da minha vida uma noite longa e sete vezes aferrolhada.
Nunca esquecerei aquele fumo.
Nunca esquecerei os pequeninos rostos das crianças cujos corpos eu vi transformarem-se em espirais sob um céu mudo.
Nunca esquecerei aquelas chamas que consumiram para sempre a minha Fé.
Nunca esquecerei aquele silêncio nocturno que me privou, para a eternidade, do desejo de viver.
Nunca esquecerei aqueles momentos que assassinaram o meu Deus e a minha alma, e que transformaram os meus sonhos em cinzas.
Nunca esquecerei, mesmo que tenha sido condenado a viver tanto tempo quanto o próprio Deus.
Nunca.”

Por tudo isto, também nós, não podemos esquecer. Não podemos deixar que o passado se venha a repetir.



14 fevereiro, 2025

Dia de São Valentim

No ano em que se celebram os 500 anos do aniversário de Luís Vaz de Camões, só podia assinalar esta data com um poema do poeta maior da Língua Portuguesa. 


Verdes são os campos 

Verdes são os campos,
De cor de limão:
Assim são os olhos
Do meu coração.

Campo, que te estendes
Com verdura bela;
Ovelhas, que nela
Vosso pasto tendes,
De ervas vos mantendes
Que traz o Verão,
E eu das lembranças
Do meu coração.

Gados que pasceis
Com contentamento,
Vosso mantimento
Não no entendereis;
Isso que comeis
Não são ervas, não:
São graças dos olhos
Do meu coração.


Luís de Camões


13 fevereiro, 2025

𝑶 𝑷𝒂𝒑𝒆𝒍 𝒅𝒆 𝑷𝒂𝒓𝒆𝒅𝒆 𝑨𝒎𝒂𝒓𝒆𝒍𝒐, de Charlotte Perkins Gilman

 


Autora: Charlotte Perkins Gilman
Título: O Papel de Parede Amarelo
Tradutora: Maria Amorim
N.º de páginas: 67
Editora: Húmus
Edição: Novembro 2020
Classificação: Conto
N.º de Registo: (3670)




OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐




O livro contém dois textos de Charlotte Perkins Gilman, o conto O Papel de Parede Amarelo; o depoimento Porque escrevi O Papel de Parede Amarelo e um posfácio Que Papel de Parede? (Uma leitura do conto), de Rita Santana dos Santos.

A ambiguidade e a ironia presentes na escrita deste conto elevam-no a um patamar superior.

Gilman descreve-nos de forma inquieta e inteligente a reacção de uma mulher (não lhe é atribuído nome) a quem foi diagnosticada “uma depressão nervosa temporária – uma pequena predisposição histérica.” (p.8) e que, por conselho e decisão do marido, médico prestigiado, vai passar um verão numa casa isolada no campo para beneficiar de um repouso total. Assim, encontra-se proibida de trabalhar, de desenvolver qualquer tipo de esforço físico ou intelectual. Ela, pessoalmente, discorda e considera “que um trabalho agradável, estimulante e sem rotinas” lhe faria muito bem. Mas como mulher que é, vai acatar as ordens do marido.
Assim, ao longo da sua estada naquela casa e sobretudo no quarto que tem um papel de parede amarelo horrível vamos acompanhando, num crescendo, a sensação de claustrofobia que a conduz à insanidade.
Toda a narrativa causa desconforto e ansiedade ao leitor.

Numa primeira abordagem, está premente a questão da saúde mental numa mulher que é forçada a fazer o que outros lhe recomendam e não o que ela gostaria efectivamente de fazer, como escrever, estar com amigos, lidar com o seu bebé.
Ora, é neste ponto que reside a questão essencial do conto. O facto de a personagem feminina estar “impedida” de pensar e de escrever, de ser ”obediente a um marido detentor de autoridade”, de ser desvalorizada e infantilizada, põe em relevo a condição de opressão das mulheres que, naquela época, viviam numa sociedade patriarcal e conservadora e que, inevitavelmente, lhes causava perturbações mentais.
Gilman através de uma metáfora fabulosa desmonta a perspectiva da “doente mental” que, como vítima passiva e isolada num quarto que “cheira a amarelo”, se vai aproximando de um final inesperado. É perturbador e intrigante acompanhar as suas descrições, tão sensoriais, do papel amarelo – as imagens que visualiza e fantasia, os cheiros que a perseguem, as movimentações das “mulheres” que compõem o padrão.

Afinal, esta luta mental da protagonista que descreve todo um processo de libertação, por via das mulheres que saem do papel, representa, metaforicamente, a luta travada pelas mulheres pelos seus direitos, pela sua liberdade.
Apesar de ser um texto curto, acaba por suscitar no leitor inúmeras provocações e leva-o a reflectir sobre a questão tantas vezes repetida ao longo do conto “mas o que é que se pode fazer?” . Questão que se aplica não só nesta situação, mas em tantas outras que privam o ser humano da sua essência primordial - a liberdade.

Resta-me referir que Gilman afirmou no seu depoimento, que “o conto não pretendia enlouquecer as pessoas, mas evitar que enlouquecessem, e funcionou.” (p. 41). Se tiverem curiosidade em saber como, convido-vos a ler os dois textos.


12 fevereiro, 2025

𝑶 𝑳𝒆𝒊𝒕𝒐𝒓, de Bernhard Schlink

 


Autor: Bernhard Schlink
Título: O Leitor
Tradutora: Fátima Freire de Andrade
N.º de páginas:144
Editora: Edições ASA
Edição(7.ª): Maio 2009
Classificação: Romance
N.º de Registo: (2600)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


Decidi reler O Leitor. A primeira leitura ocorreu em 2010 e já não tinha memória de determinados factos. Além do mais, gosto de voltar a livros que me marcaram para deles retirar novas compreensões e ensinamentos.

O enredo situa-se nos anos de 1960 e aborda a temática do Holocausto, pondo em confronto duas gerações, através do relacionamento íntimo entre Hanna (36 anos) e Michael (15 anos). A geração que viveu o Nacional-socialismo de Hitler e a geração da pós-segunda guerra mundial, ou seja, a dificuldade dos mais jovens compreenderem determinados comportamentos dos seus pais, dos seus antepassados.
“Todos condenámos os nossos pais à vergonha eterna, ainda que só os pudéssemos acusar de terem tolerado depois de 1945, a companhia dos assassinos.” (p. 62)
O tema é controverso, pelo que o autor aborda-o com subtileza e atribui a Michael Berg a função de se questionar sobre esse passado doloroso e criminoso. Não há respostas para as perplexidades apresentadas, nem tão pouco às múltiplas questões colocadas. A subtileza perpassa, ainda, pela ausência de certas memórias e pela presença de imagens “que ficaram”.

O Leitor levanta várias possibilidades de leituras. Todas perturbadoras. Pretenderá o autor, através das atrocidades cometidas, neste caso, pelas guardas dos campos de concentração, demonstrar a crueldade de um passado que não se pode repetir? Pretenderá, através do relacionamento amoroso entre Michael e Hanna, desvanecer o passado que as gerações actuais não viveram? Pretenderá gerar compaixão e empatia por Anna? Pretenderá, pelo viés do julgamento, absolver as acções cometidas por determinados agentes? Pretenderá justificar o “embotamento” dos sobreviventes, dos criminosos e de toda uma sociedade que se acomodou à situação do pós-guerra? Pretenderá desobrigar a geração de Michael ainda vítima das fissuras do Holocausto? (A mesma geração do autor).

Mas para além destas, e de outras possíveis, reflexões, O Leitor oferece-nos a possibilidade de entender a leitura como um prazer e uma fonte de conhecimento e humanização. Ao atribuir a Hanna a característica de analfabeta, o autor serve-se, de novo, dos pensamentos e das dúvidas de Michael para demonstrar que se ela soubesse ler teria mais consciência dos seus actos e poderia ter sido uma pessoa diferente, talvez mais sensível.
“Mas seria possível que a vergonha de não saber ler nem escrever explicasse também o comportamento de Hanna durante o julgamento e no campo de concentração?” (p. 87)

Em boa hora, decidi reler este livro. Coloca questões pertinentes que avivam memórias e estabelecem pontes entre o passado, o presente e o futuro. Num presente muito preocupante, com a leitura deste livro, reforço a convicção de que a leitura e a cultura combatem a ignorância e geram uma consciência social mais aguda e crítica.




08 fevereiro, 2025

Emoções

Mais um dia de emoções. Desta vez fui surpreendida pelas funcionárias da minha escola. Sou-lhes grata, a todas. Não vou mencionar ninguém porque sabem quem são e também sabem que as guardarei sempre no meu coração. 






07 fevereiro, 2025

𝑴𝒊𝒏𝒉𝒂 𝑺𝒆𝒏𝒉𝒐𝒓𝒂 𝒅𝒆 𝑴𝒊𝒎, de Maria Teresa Horta

 



Autora: Maria Teresa Horta
Título: Minha Senhora de Mim
Editora: D. Quixote
Edição(3.ª): Fevereiro 2023
Classificação: Poesia
N.º de Registo: (3657)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐


Minha Senhora de Mim é um livro maravilhoso. MTH constrói uma poética íntima e erótica, com identidade própria, muito feminista, negando a subordinação e opressão impostas às mulheres da época, em Portugal. Em 1971, foi editado e, de imediato, censurado  sob o regime conservador e patriarcal do Estado Novo.

Nos 59 poemas que compõem o livro, verifica-se uma forte piscadela de olho à poesia trovadoresca. Quero acreditar que o fez como desafio e provocação, já que este tipo de composições era estritamente assinado por homens. Desta forma, MTH reivindica uma escrita muito própria que dá voz à mulher como autora. Este aspecto também sobressai no título. O recurso aos possessivos “minha” e “mim” não deixam dúvidas de que o discurso será na primeira pessoa.
No poema inicial “Regresso” , colocado em jeito de preâmbulo, a autora confirma o título e dá o mote ao conteúdo do seu livro, ou seja, que é de si que vai falar e que vai expor “ o que é secreto”.

“Regresso para mim
e de mim falo
e desdigo de mim
em reencontro
(…)
Trago para fora
o que é secreto
vantagem de saudade
o que é segredo
(…)

Assim, o sujeito poético vai revelar-se nas memórias do “eu”, na descoberta do seu corpo como desejo próprio e desejo do outro, na descoberta do prazer, no apelo do amante, no deleite amoroso. Cito “O Meu Desejo”(p. 82).

“Afaga devagar as minhas
pernas
Entreabre devagar os meus
joelhos
Morde devagar o que é
negado
Bebe devagar o meu
desejo”

MTH ao escrever abertamente sobre o seu corpo e sobre o corpo do homem objecto de desejo, transgride os cânones da literatura e ultraja a moral dos puritanos. Ora, no nosso país era inaceitável que uma mulher escrevesse “tais vergonhas” pelo que MTH foi violentamente agredida na rua e o seu livro foi retirado de circulação.

Claro que MTH sempre usou um discurso transgressor, mas esta obra marca uma viragem pela ousadia de escrever sobre o desejo feminino, atribuindo o papel central à mulher numa inversão do pré-estabelecido na sociedade portuguesa.

Para concluir, resta-me referir que, apesar de já ter lido alguns livros de MTH, descobri este aquando da leitura da biografia - A Desobediente - de autoria de Patrícia Reis. 

 



05 fevereiro, 2025

À 𝑬𝒔𝒑𝒆𝒓𝒂 𝒅𝒂 𝑺𝒖𝒃𝒊𝒅𝒂 𝒅𝒂𝒔 Á𝒈𝒖𝒂𝒔, de Maryse Condé


 

Autora: Maryse Condé
Título: À Espera da Subida das Águas
Tradutora: Sandra Silva
N.º de páginas: 292
Editora: Quetzal
Edição: Maio 2023
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3584)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


Foi uma agradável descoberta ler Maryse Condé. Tinha alguma curiosidade por ser uma autora francófona e, finalmente, chegou a oportunidade. Nesta narrativa, a autora conduz-nos pela caminhada difícil e violenta de Babakar Traoré até à Guadalupe, ao Mali, e a Haiti.

A acção decorre sob o jugo colonial onde predominam uma violência extrema, o ódio, o racismo e a corrupção. Babakar, como médico obstetra, vai viver intensamente os golpes militares, o exílio, o massacre de pessoas indefesas e só sobrevive porque a amizade e o amor conseguem sobrepor-se a todas as situações de abuso, de dor e de tristeza.
Ao longo da narrativa estão bem patentes as “feridas do colonialismo”, das guerrilhas e do racismo. Cito apenas um exemplo:

– Para o Haiti? Não há nada para comer nesse país. Além de fazerem vodu, os negros e os mulatos odeiam-se e matam-se uns aos outros.
- Isso não é novidade. Estou habituado a conflitos – assegurou-lhe. – Não te esqueças de que vivi durante anos a braços com uma guerra civil absurda.” (pp. 60 e 61)

Numa escrita que mescla o realismo mágico e o religioso das crenças locais, Maryse Condé relata-nos o drama de várias personagens, o deslocamento de famílias, a devastação de países (a guerra civil no Mali, a guerra do Líbano, a destruição política e os desastres naturais do Haiti) e o massacre de “gentes rivais” e importunas.

A narrativa comovente e profundamente humana, onde nada é maquilhado, vai evoluindo ao ritmo das (in)decisões de Babakar, das reflexões, das memórias e das conversas entre as personagens que ajudam a caracterizá-las psicologicamente. Contudo, e no meio do caos, da miséria, da violência e da perda de bens e de pessoas amadas, reside uma fagulha de esperança que move o protagonista e os seus dois amigos a nunca desistirem e a lutarem nas adversidades, nem que para isso seja necessário partir, de novo.

É um livro actualíssimo e doloroso que recomendo muito. Um livro que não nos deixa indiferentes e que nos obriga a reflectir sobre o ser humano.



03 fevereiro, 2025

A Complete Unknown, de James Mangold


2024 | 141m | Drama | M12 | Estados Unidos da América
Realizador: James Mangold
Elenco: Timothée Chalamet, Edward Norton, Boyd Holbrook 


Nova Iorque, 1961. Tendo como pano de fundo um panorama musical vibrante e a agitação cultural da época, um enigmático jovem de 19 anos do Minnesota chega à cidade com a sua guitarra e um talento revolucionário, destinado a mudar o rumo da música americana. Ao longo da sua ascensão meteórica, estabelece relações chegadas com ícones da música em Greenwich Village, culminando numa atuação inovadora e controversa que se repercute por todo o mundo. Timothée Chalamet protagoniza e canta, no papel de Bob Dylan, em "A Complete Unknown", de James Mangold, a história verídica e eletrizante por detrás da ascensão de um dos mais icónicos cantautores de sempre.


Opinião:

Adorei reviver músicas famosos de Bob Dylan, Joan Baez, Pete Seeger e até Johnny Cash.
Timothée Chalamet é notável no papel de Bob Dylan. O filme retrata magnificamente as múltiplas identidades do início de carreira do famoso compositor e cantor de folk, bem como demonstra as suas relações e a influência de outros músicos que já citei.

A Complete Unknown, verso de uma música sua, descreve bem a personagem que surge no filme apenas com uma mochila e uma guitarra e que sendo completamente desconhecido vai transformar a música folk. 



01 fevereiro, 2025

Sei para onde vou ...

 


Sempre chegamos ao sítio aonde nos esperam” (Saramago) e, assim, hoje, é o primeiro dia do resto da minha vida.

Foram 44 anos letivos de dedicação à Escola Pública (42 anos, 5 meses, 27 dias para efeitos de aposentação, já que deduziram os dias dos horários incompletos e das colocações tardias, mas esqueceram-se de adicionar as horas extraordinárias – as efectivas e as outras) e prolongaram   até ao limite do prazo (3 meses) a análise do processo (trabalhei mais dois meses para além da data prevista).

Sempre quis ser professora. Sempre amei a minha profissão. Confesso que nem sempre foi fácil, mas no balanço final guardo sobretudo as conquistas.
Chegou o tempo de dar o meu lugar a outro/a professor/a. Ninguém é eterno. Ninguém é insubstituível. O governo, numa tentativa de colmatar o problema de falta de professores, ainda, acenou com a possibilidade de continuar e em troca “oferecia-me” até 750€. Porém, este mesmo governo esqueceu-se de que também eu tive, durante cerca de seis anos a carreira congelada. Os meus colegas vão ter, e muito bem, a recuperação desse tempo, mas quem se encontra, como eu, no topo da carreira, não recebe nada em compensação. Repito, NADA. Por isso, é mais do que evidente que não continuarei no activo, não aceitarei “a esmola” dos 750€. Gostaria de ser reconhecida pelo trabalho que desenvolvi e compensada pelo tempo TODO que trabalhei. Há formas de o fazer (redução no tempo para aposentação, compensação monetária, aumento do vencimento, …), basta querer, basta haver vontade e criatividade políticas.

Ao longo destes anos “vivi” em várias escolas, pelo país. Uma, lembrarei para sempre como a minha “segunda casa”. Nela cresci, amadureci e me apaixonei pelo meu/nosso poeta, Al Berto.

Leccionei várias disciplinas/áreas disciplinares (francês, técnicas de tradução de francês, português, área de projecto, estudo acompanhado, educação cívica e LLED) e desempenhei muitas funções e vários cargos. Uns mais fáceis, outros bem menos, uns mais divertidos, outros nem tanto, mas desempenhei-os sempre com sentido de responsabilidade e muito empenho. Errei como todo o ser humano, mas dei sempre o meu melhor.

Ao longo destes anos conheci, lidei e convivi com muitas, muitas pessoas: alunos, professores, técnicos especializados, assistentes técnicos, assistentes operacionais, pais e encarregados de educação, entre outras de diversas instituições, profissões, parcerias…

No meu coração guardo muitas, muitas mesmo, que não citarei, como compreenderão. Nesta minha travessia houve, e ainda há, pessoas maravilhosas com quem aprendi, diariamente; com quem partilhei conhecimentos, ensinamentos, gargalhadas, sorrisos, tristezas, desabafos, abraços, fotografias, livros, leituras, muitas leituras, …; com quem continuarei a aprender e a partilhar…

A TODAS o meu ENORME agradecimento e carinho.
Saberei manter vivas as boas memórias. As outras, já as abandonei pelo caminho.

Até breve… vou continuar por aí… ao contrário de José Régio, sei por onde vou…

A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou…
Não sei para onde vou,
Não sei para onde vou
—Sei que não vou por aí! (Régio)

GR