28 novembro, 2024

Canção da Plenitude



Não tenho mais os olhos de menina
nem corpo adolescente, e a pele
translúcida há muito se manchou.
Há rugas onde havia sedas, sou uma estrutura
agrandada pelos anos e o peso dos fardos
bons ou ruins.
(Carreguei muitos com gosto e alguns com rebeldia.)
O que te posso dar é mais que tudo
o que perdi: dou-te os meus ganhos.
A maturidade que consegue rir
quando em outros tempos choraria,
busca te agradar
quando antigamente quereria
apenas ser amada.
Posso dar-te muito mais do que beleza
e juventude agora: esses dourados anos
me ensinaram a amar melhor, com mais paciência
e não menos ardor, a entender-te
se precisas, a aguardar-te quando vais,
a dar-te regaço de amante e colo de amiga,
e sobretudo força - que vem do aprendizado.
Isso posso te dar: um mar antigo e confiável
cujas marés - mesmo se fogem - retornam,
cujas correntes ocultas não levam destroços
mas o sonho interminável das sereias.


Lya Luft, in Secreta Mirada

27 novembro, 2024

𝑴𝒂𝒕𝒂𝒓á𝒔 𝑼𝒎 𝑪𝒖𝒍𝒑𝒂𝒅𝒐 𝒆 𝑫𝒐𝒊𝒔 𝑰𝒏𝒐𝒄𝒆𝒏𝒕𝒆𝒔, Rodrigo Guedes de Carvalho

 

Autor: Rodrigo Guedes de Carvalho
Título: Matarás Um Culpado e Dois Inocentes
N.º de páginas: 350
Editora: D. Quixote
Edição: Outubro 2024
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3627)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐



Quando terminei As Cinco Mães de Serafim, escrevi que o facto de o autor não ter desvendado alguns mistérios não era relevante para o propósito do livro porque o importante estava lá, dito directamente ou nas entrelinhas. Agora que li a sequela, considero que este livro tinha mesmo de ser escrito. A revelação dos segredos que ficaram em aberto, no anterior, torna a história da família Temeroso bem mais empolgante e emotiva. A narração do mistério que envolveu o desaparecimento de uma irmã do protagonista, Miguel Temeroso, e a morte de outras três, levanta questões profundas sobre noções de culpa, inocência, redenção. A tragédia ocorrida há 50 anos, na noite de 24 de Abril de 1974 acabou por passar quase despercebida, na pequena localidade de Gondarém, devido ao “acto revolucionário que fez cair o regime” e que ocorreu na mesma noite. Só o irmão, Miguel Serafim, permanece emotivamente perturbado (“Morri no dia em que morreram as minhas três irmãs. A única diferença é que continuei a respirar”), num estado de dúvida e de incompreensão, até ao dia em que lhe é revelado um segredo.

RGC mantém a escrita límpida e inteligente do romance anterior e já citado. Aprecio sobremaneira o entrelaçar dos tempos e das histórias que mantém o leitor suspenso. A atmosfera, neste livro, é bem mais densa e envolvente. Há uma aura de mistério, de sobrenatural, que engrandece a narrativa. Sem pressa e envoltas em suspense, as respostas vão surgindo, oscilando entre momentos de dúvidas e de confissões, de violência e de ternura, de desesperança e de aceitação, de encontros, de revelações e de libertação emocional.

Concluo, mantendo a convicção de que “a amizade talvez seja um outro nome para família”.
É esta a mensagem tão bem explorada nos dois livros do RGC e que, neste, eleva a narrativa a um patamar superior, que merece ser lido. No fundo, o importante não é saber quem e como matou. O importante é, mesmo, saber que há alguém, por perto e atento, para apoiar e erguer os que sobrevivem à dor, ao sofrimento.
Recomendo a leitura dos dois livros, contudo este, que pode ser lido de forma autónoma, é, para mim, muito mais impactante.


26 novembro, 2024

Escrevo para...

 



Tal como Al Berto, eu também não escrevo para seduzir...

Escrevo para me aquietar do desassossego que, de quando em vez, me invade, tal uma planta sugadora e me mergulha numa solidão devastadora.

Mas como a larva que se transforma em borboleta, procuro o mar para nele recuperar o fôlego necessário à transformação. 

É na longa contemplação do azul intenso que resgato dúvidas, fortaleço certezas e adquiro a plenitude que me permite, no silêncio de uma folha branca, escrever as palavras certas que resvalam na noite insone.

GR

21 novembro, 2024

Que nenhuma estrela queime o teu perfil, Sophia de Mello Breyner Andresen

 

                                                    Foto GR


Que nenhuma estrela queime o teu perfil
Que nenhum deus se lembre do teu nome
Que nem o vento passe onde tu passas.

Para ti eu criarei um dia puro
Livre como o vento e repetido
Como o florir das ondas ordenadas.


Sophia de Mello Breyner Andresen



20 novembro, 2024

𝑵ã𝒐 𝑺𝒐𝒎𝒐𝒔 𝑨𝒃𝒐𝒓𝒓𝒆𝒄𝒆𝒏𝒕𝒆𝒔: 𝑺ó 𝑷𝒓𝒆𝒄𝒊𝒔𝒂𝒎𝒐𝒔 𝒒𝒖𝒆 𝑨𝒍𝒈𝒖é𝒎 𝒏𝒐𝒔 𝑬𝒏𝒕𝒆𝒏𝒅𝒂, de Diana Borges

 Autora: Diana Borges
Título: Não somos Aborrecentes: Só Precisamos
que Alguém nos Entenda
N.º de páginas: 67
Editora: (independente)
Edição: Setembro 2024
Classificação: Testemunhos
N.º de Registo: (--)




OPINIÃO ⭐⭐⭐


Diana Borges é uma jovem estudante que ama as palavras. Conhecia-lhe o gosto pela leitura, a voz melodiosa e emotiva, mas desconhecia-lhe o hábito de registar as suas reflexões, angústias e emoções num diário muito pessoal e que, com incentivos de ordem vária, em boa hora, se transformou no seu primeiro livro.

Senti um enorme orgulho quando ela, com um brilhozinho nos olhos e um largo sorriso, me revelou que tinha editado um livro. Quis lê-lo imediatamente. Foi uma agradável surpresa, porque sendo a Diana ainda tão jovem, conquistou-me com uma escrita que evidencia uma responsabilidade e uma maturidade pouco comuns nos dias que correm. Convivo, diariamente, com jovens, por isso, refiro-o com segurança e conhecimento de causa.

Não Somos Aborrescentes, Só Precisamos que Alguém Nos Entenda assenta, essencialmente, em depoimentos de adolescentes que se centram em vivências muito íntimas como, o amor e o sexo na adolescência; os relacionamentos; o ambiente escolar; o bullying; os vícios; a depressão e a ansiedade.

Todos os testemunhos incidem sobre estes temas delicados, todos muito sensíveis, vividos por jovens (rapazes e raparigas). As reflexões da Diana, no final de cada temática, conduzidas com subtileza, mergulham na complexidade da vida destes jovens, nas suas inquietações que vão muito para além do problema das borbulhas ou do aspecto visual e expõem o que, também, ela viveu e sentiu, sobretudo quando teve de se ambientar e integrar numa cultura e mentalidade tão diferentes da sua.

O apelo que ecoa ao longo de várias páginas “EU NÃO QUERO ME MATAR”, bem como a repetição de verbos como “precisamos” e necessitamos” na reflexão final, demonstram que estes jovens não são “aborrecentes", apenas, e só, procuram a compreensão dos pares, dos pais, dos professores, dos educadores, da sociedade.

As sessenta e sete páginas deste livro são preciosíssimas para quem pretende entender e acompanhar os jovens. Recomendo. 




19 novembro, 2024

Galardoados com o Prémio Literário José Saramago




1999 - Natureza Morta, Paulo José Miranda - Portugal
2001 - Nenhum Olhar, José Luís Peixoto - Portugal
2003 - Sinfonia em Branco, Adriana Lisboa - Brasil
2005 - Jerusalém, Gonçalo M. Tavares - Portugal
2007- O Remorso de Baltazar Serapião, Valter Hugo Mãe - Portugal
2009 - As Três Vidas, João Tordo - Portugal
2011 - Os Malaquias, Andréa del Fuego - Brasil
2013 - Os Transparentes, Ondjaki - Angola
2015 - As Primeiras Coisas, Bruno Vieira Amaral - Portugal
2017 - A Resistência, Julián Fuks - Brasil
2019 - Pão de Açúcar, Afonso Reis Cabral - Portugal
2022 - Dor Fantasma, Rafael Gallo - Brasil
2024 - Morramos ao menos no porto, Francisco Mota Saraiva - Portugal



Francisco Mota Saraiva vence Prémio José Saramago 2024

 


O escritor Francisco Mota Saraiva, natural de Coimbra (1988), é o vencedor do Prémio Literário José Saramago pelo romance Morramos ao menos no porto.

O júri desta edição, destacou o facto de o livro possuir "uma qualidade quase musical" e "um estilo muito próprio, quase um idioma particular", que constroem "um romance impiedoso" e "corajoso".

A edição deste ano teve como jurados os escritores e anteriores premiados Adriana Lisboa e Paulo José Miranda, além de Pilar del Rio, presidente da Fundação José Saramago, Guilhermina Gomes, em representação da Fundação Círculo de Leitores e presidente do júri, e a escritora Lídia Jorge, membro honorário.

O escritor com o seu primeiro romance - Aqui onde canto e ardo - venceu o Prémio Literário Revelação Agustina Bessa-Luís 2023


15 novembro, 2024

𝑽𝒆𝒓𝒎𝒆𝒍𝒉𝒐 𝒅𝒆𝒍𝒊𝒄𝒂𝒅𝒐, de Teresa Veiga

 

Autora: Teresa Veiga
Título: vermelho delicado
N.º de páginas: 130
Editora: Tinta-da-China
Edição: Setembro 2024
Classificação: Contos
N.º de Registo: (3636)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


É o primeiro livro que leio de Teresa Veiga e, como tinha boas referências, iniciei a leitura de Vermelho Delicado com grandes expectativas. Segundo várias opiniões, Teresa Veiga é mestre na narrativa curta e revela uma capacidade singular de criar personagens, sobretudo, femininas envoltas em mistério.

Assumo que fiquei rendida à beleza e à qualidade da sua escrita expressa neste conjunto de sete contos. Num estilo muito próprio e sedutor, a autora tece os seus enredos e dá protagonismo às mulheres, à excepção de um conto, e todas revelam desvarios mentais, vestígios de loucura que num universo de aparente normalidade, as transporta para situações da ordem do fantástico.

Teresa Veiga expõe os seus enredos como uma espécie de enigma, por exemplo, uma história só é validada se for narrada, de forma diferente, por duas pessoas. Como se de um jogo de espelhos se tratasse, ou então, parte de uma acção do quotidiano, de uma pista ínfima para nos conduzir, através de detalhes e de descrições sublimes, a um final incómodo que nem sempre é deslindado. A inquietação provocada pelo mistério não esclarecido advém de frases dúbias, de sentimentos contraditórios ou ambivalentes, de um final não revelado ou, apenas, sugerido.

No final de cada conto, o leitor permanece na dúvida se assimilou a mensagem, mas é aí que reside o encanto da leitura. O carácter de inacabado permite-nos imaginar, terminar a narrativa como nos apraz. Como se o leitor também existisse no enlace que imagina.

Fiquei seduzida pela escrita de Teresa Veiga. Uma escrita rigorosa e sóbria que abre possibilidades subtis, que usa a ironia e o humor para confundir. Uma escrita perturbante.




06 novembro, 2024

𝑨𝒖𝒈𝒖𝒔𝒕𝒂 𝑩. 𝑶𝒖 𝑨𝒔 𝑱𝒐𝒗𝒆𝒏𝒔 𝑰𝒏𝒔𝒕𝒓𝒖í𝒅𝒂𝒔 80 𝑨𝒏𝒐𝒔 𝑫𝒆𝒑𝒐𝒊𝒔, de Joana Bértholo

 

Autora: Joana Bértholo
Título: Augusta B. 
N.º de páginas: 99
Editora: Caminho
Edição: Maio 2024
Classificação: Novela
N.º de Registo: (3587)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


Augusta B. ou as Jovens Instruídas 80 anos Depois, desvenda as peripécias de duas jovens de 22 anos que tentam publicar um anúncio igual ao de Agustina Bessa-Luís (ABL).
A novela de cerca de 100 páginas transporta-nos para dois universos bem distintos ou talvez não: o universo das aplicações de encontros, das redes sociais e o universo dos anúncios de jornais.

Joana Bértholo de forma inteligente e criativa explora o famoso anúncio publicado no primeiro de Janeiro, há 80 anos, por Agustina Bessa-Luís, uma jovem instruída, à procura de correspondência “inteligente e culta”.
Tendo, assim, Agustina e o anúncio como fio condutor, a autora cria uma novela que estabelece a ponte com a actualidade ao envolver as duas amigas, Raquel e Augusta, paralelamente, em encontros por via das aplicações e na replicação do famoso anúncio no jornal O Público. Todo o enredo gira à volta das tramas amorosas, das reflexões e interpelações das duas jovens e da narrativa sobre as dificuldades que enfrentam em publicar o anúncio “dado que o conteúdo não se enquadra com a linha editorial do jornal.”

O anúncio acabou por ser publicado, no entanto, não vou revelar de que forma para que não anule o prazer da descoberta. Posso afirmar que o paralelismo estabelecido entre o antes (1944) e o presente está muito bem conseguido. O que hoje é banal, era inconcebível há 80 anos, sobretudo por uma mulher. Neste simples gesto, fica claro como Agustina era uma mulher ousada, muito à frente do seu tempo.

Outro aspecto que me agradou imenso nesta novela é a intertextualidade com a obra de Agustina. A jovem Raquel, leitora ávida, vai despertando na sua amiga Augusta, mais vocacionada para as aplicações digitais na procura incessante da relação certa, um interesse cada vez maior ao ponto de se “estabelecer um diálogo interno” entre ela e Agustina.
“A Agustina-interior primava pela clarividência e segurança; sabia o que queria e não duvidava do seu valor nem enquanto scritora, nem enquanto mulher. Tudo aquilo que Augusta sentia que lhe faltava. Completavam-se.” (p. 77)

Recomendo muito este pequeno livro. Joana Bértholo tem a capacidade de nos agarrar às suas histórias. Esta é bem cativante e tem, para mim como professora bibliotecária, não um, mas dois finais felizes.

03 novembro, 2024

𝑼𝒎 𝑺𝒐𝒑𝒓𝒐 𝒅𝒆 𝑽𝒊𝒅𝒂 (𝑷𝒖𝒍𝒔𝒂çõ𝒆𝒔), de Clarice Lispector

 


Autora: Clarice Lispector
Título: Um Sopro de Vida (Pulsações)
N.º de páginas: 141
Editora: Relógio d' Água
Edição: Dezembro 2012
Classificação: Romance (inclassificável)
N.º de Registo: (3433)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐


Um sopro de vida (Pulsações) foi publicado postumamente (1978). O livro, dividido em três partes: 1) O Sonho Acordado É Que É a Realidade, 2) Como Tornar Tudo Um Sonho Acordado? e 3) Livro de Ângela, foi escrito quando Clarice Lispector se encontrava gravemente doente.

Nele, Clarice Lispector traça um diálogo contínuo que se/nos submete, simultaneamente, a uma forte introspecção. Toda a narrativa é alicerçada em fragmentos dialogais, em vislumbres, em “instantâneos fotográficos das sensações – pensadas”, em trechos existenciais de auto reconhecimento, de auto questionamento, de auto negação. Ela constrói uma personagem e ao longo do livro mantém uma interação introspectiva fortíssima entre o narrador-criador (um autor) e a personagem criada (Angela Pralini).
“ (…) o que escrevo e Ângela escreve são trechos por assim dizer soltos, embora dentro de um contexto de… (…) são restos de uma demolição de alma, são cortes laterias de uma realidade que se me foge continuamente. Esses fragmentos de livro querem dizer que eu trabalho em ruínas.” (p. 17)

A interacção expõe as (in)capacidades, as (in)decisões, as invenções, os desejos (in)alcançados os sonhos e, desta forma, a personagem criada funciona como um espelho e cria uma dualidade, no sentido em que balança entre o que pensa e o que sente, entre a racionalidade e o instinto, entre a liberdade e a loucura, entre o vazio e a pungência da escrita..
“Tive um sonho nítido inexplicável; sonhei que brincava com o meu reflexo: Mas meu reflexo não estava num espelho, mas refletia uma outra pessoa que não eu.
Por causa desse sonho é que inventei Ângela como meu reflexo? (…) Será que criei Ângela para ter um diálogo comigo mesmo? Eu inventei Ângela porque preciso me inventar:” (pp. 23-26)

Este último livro impõe-se pelas reflexões e pela capacidade de Clarice Lispector dissecar as complexidades da existência humana. É magistral a forma como recorre à espiritualidade para se encontrar, para se absolver, para se aceitar. Numa prosa poética e imagética a autora explora temas como a criação literária, a identidade, a solidão, o silêncio, a liberdade, a loucura e a finitude.
“Escrever pode tornar a pessoa louca… Eu sei criar silêncio …Tenho medo de minha liberdade… o silêncio não é o vazio, é a plenitude”. (p. 48)

Quando terminamos a leitura, permanecemos em silêncio (de plenitude) e, calmamente, regressamos às quatro epígrafes citadas na abertura. Nesta fase, entendemo-las na perfeição. Contudo, extasio-me perante a segunda, “ A alegria absurda por excelência é a criação,” (de Nietzsche), que tão bem espelha a escrita de Clarice Lispector. E é de facto, também para o leitor, uma alegria quando nos deparamos com uma criação deste calibre.




Os versos que te fiz | Florbela Espanca

 


Deixa dizer-te os lindos versos raros
Que a minha boca tem pra te dizer !
São talhados em mármore de Paros
Cinzelados por mim pra te oferecer.

Têm dolência de veludos caros,
São como sedas pálidas a arder…
Deixa dizer-te os lindos versos raros
Que foram feitos pra te endoidecer !

Mas, meu Amor, eu não tos digo ainda…
Que a boca da mulher é sempre linda
Se dentro guarda um verso que não diz !

Amo-te tanto ! E nunca te beijei…
E nesse beijo, Amor, que eu te não dei
Guardo os versos mais lindos que te fiz!


Florbela Espanca