08 agosto, 2023

𝑴𝒊𝒔𝒆𝒓𝒊𝒄ó𝒓𝒅𝒊𝒂, de Lídia Jorge

 

Autora: Lídia Jorge
Título: Misericórdia
N.º de páginas: 457
Editora: D. Quixote
Edição: Outubro 2022
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3404)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐


Um dos significados da palavra misericórdia é “comiseração, piedade”. Sendo este o título atribuído ao novo romance de Lídia Jorge, a pedido da mãe, Maria dos Remédios, poder-se- ia pensar que a história narrada iria fluir nesse sentido. Apraz-me referir que isso não acontece. Misericórdia induz à reflexão da condição humana, focando-se “no esplendor da vida, e na crença de valores” como referiu a autora numa das muitas entrevistas que deu, aquando do lançamento do livro.
A história narrada na primeira pessoa é dura, deixa marcas profundas, mas em nenhum momento o leitor sente dó ou piedade, pelo contrário sente admiração e respeito pela força emanada da protagonista, Maria Alberti, que luta até ao fim pela vida.

Num registo sensível, afável, esperançoso e irónico, Lídia Jorge ficciona a estadia de sua mãe num lar da Santa Casa da Misericórdia. Num tempo coincidente com o covid-19, a autora ficou impedida de visitar a mãe nos últimos dias de vida. É por isso, imagino, com grande dor e revolta interior que escreve este romance maravilhoso, como uma urgência, com a “possibilidade de chegar ao lugar aonde nos esperam” (Saramago), com a certeza de cumprir um desejo, um reconhecimento.

Trata-se de um testemunho de tudo o que ocorre de bom e menos bom no lar Hotel Paraíso, onde residem setenta pessoas, onde circulam cuidadores atenciosos, carinhosos, zelosos e outros menos sensíveis que apenas cumprem as suas tarefas, o seu horário. Onde cada um envelhece à sua maneira. Onde cada quarto encerra uma história de vida carregada de ambição, de esperança e tantas vezes de contradição.

“Antes, quando a minha pele era clara e moça, qualquer gota de lágrima que me saltasse dos olhos era visível à distância. Agora, a minha pele criou sinais, curvas e valados, de tal forma que desde que não soluce, ninguém nota que me escorrem lágrimas. Comi-as com o pão.” (p. 156)

O relato de essência biográfica é-nos narrado por Maria Alberti que por via dos sonhos, das memórias, dos pensamentos, das emoções mistura episódios divertidos, ridículos, tristes, cruéis, pujantes, sensíveis; conta histórias de revolta, de amor, de amizade, de perda. Mas é sobretudo no embate que trava com a “noite” que a tentou levar por várias vezes, que a protagonista de forma inteligente e terna mantém a clarividência sobre a proximidade da morte. “(…) vamos morrer (…) Morrer é isso mesmo, é a verdade e a mentira já serem coisas iguais. E aqui esse princípio pratica-se diariamente.” (p. 105)

Todos conhecemos histórias vividas em lares. Todos sabemos como é difícil o quotidiano nestes espaços. O facto de Lídia Jorge ter recriado os últimos dias da sua mãe e de ter “viajado” pela sua mente sem que o leitor consiga destrinçar o real do imaginado, causa um efeito avassalador. O que é real? O que é ficção? Temos conhecimento de factos, mas foi assim que aconteceu tal como nos é narrado? Não sabemos, nem a própria autora terá a certeza de tudo, por isso criou um imaginário, teceu uma história verosímil para si e para o leitor. A isto chama-se literatura, essa maravilha.

Recomendo muito esta “viagem” pelo mundo da velhice e da solidão; pelo mundo fechado das pessoas idosas, na sua relação com os cuidadores, com os voluntários, com a família. É uma viagem tremenda que nos faz reflectir sobre os nossos sentimentos, sobre a esperança e sobre a beleza de pequenas acções. E, de forma mais generalizada, sobre a Humanidade.



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