11 julho, 2020

Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis


OPINIÃO


Livro maravilhosamente bem escrito. Capítulos curtos. Enredo interessante e fora do comum já que o narrador conta a sua vida como defunto. Através das suas memórias póstumas, o protagonista, Brás Cubas, tece fortes críticas à sociedade burguesa da época. O facto de estar morto permite-lhe abordar os assuntos sem rodeios. E informa o leitor, interpelando-o directamente, disso mesmo. 

“Talvez espante o leitor a franqueza com que lhe exponho e realço a minha mediocridade; advirta que a fraqueza é a primeira virtude de um defunto. Na vida, o olhar da opinião. O contraste dos interesses, a luta das cobiças obrigam a gente a calar os trapos velhos, a disfarçar os rasgões e os remendos, a não estender ao mundo as revelações que faz à consciência; e o melhor da obrigação é quando, à força de embaçar os outros, embaça-se um homem a si mesmo, porque em tal caso poupa-se o vexame, que é uma sensação penosa, e a hipocrisia, que é um vício hediondo. Mas na morte, que diferença! Que desabafo! Que liberdade!” (pp. 83 e 84) 

Através de uma ironia fina e de um sentido de humor apurado, Brás Cubas põe em evidência a hipocrisia dos homens e da religião, dos valores familiares e políticos, da escravatura. Ele próprio, que se considera medíocre, inútil e fútil, aceita as condições vigentes, o que lhe permite abordar os assuntos com propriedade. É falando dele que ridiculariza os outros. 

No último capítulo, ao qual atribuiu o título “Das Negativas”, ele define-se desta forma: “ Não alcancei a celebridade do emplasto, não fui ministro, não fui califa, não conheci o casamento. (…) Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria”. (p. 314). Porém, viveu uma grande história de amor (que ocupa grande parte da narrativa), cimentada no adultério. Percebemos, ao longo do livro, que Brás Cubas é um fraco que se deixa arrastar pelas ocasiões, que não luta pelos seus interesses. Senão vejamos: “Não a vi partir; mas à hora marcada, senti alguma cousa que não era dor nem prazer, uma cousa mista, alívio e saudade, tudo misturado, em iguais doses. Não se irrite o leitor com esta confissão. Eu bem sei que, para titilar-lhe os nervos da fantasia, devia padecer um grande desespero, derramar algumas lágrimas, e não almoçar. Seria romanesco; mas não seria biográfico.” (p. 245) 

Recomendo vivamente este livro. Confesso que eu própria já o devia ter lido. É incompreensível que um livro desta qualidade tenha ficado tanto tempo na estante. Contrario a consideração do narrador, no capítulo “O Senão do Livro”, ao referir que o seu livro é “enfadonho, cheira a sepulcro, traz certa contração cadavérica” (p. 172). Pelo contrário é muito vivo e satírico com laivos de humor cirúrgicos. 

Termino com esta citação que vem no seguimento da anterior e que para mim revela a genialidade do autor.
(…) vício grave, e aliás ínfimo, porque o maior defeito deste livro és tu, leitor. Tu tens pressa de envelhecer, e o livro anda devagar; tu amas a narração direita e nutrida, o estilo regular e fluente, e este livro e o meu estilo são como ébrios, guinam à direita e à esquerda, andam e param, resmungam, urram, gargalham, ameaçam o céu, escorregam e caem…” (p. 172)



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