Neste espaço pretende-se divulgar actividades culturais/educativas/lúdicas ou simplesmente participar, partilhar opiniões, leituras, viajar...
30 novembro, 2025
28 novembro, 2025
𝑫𝒆𝒖𝒔 𝒏𝒂 𝑬𝒔𝒄𝒖𝒓𝒊𝒅ã𝒐, de Valter Hugo Mãe
Autor: Valter Hugo Mãe
Título: Deus na Escuridão
N.º de páginas: 283
Editora: Porto Editora
Edição: Janeiro 2024
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3666)
OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐
21 novembro, 2025
𝑨 𝑴𝒂𝒏𝒕𝒂, de Isabel Minhós Martins e Yara Kono
Pequeno livro maravilhoso que nos transporta para histórias da nossa infância.
Cada retalho de tecido guarda uma surpresa. Pode ser lembrança, pode ser brincadeira, pode até transformar-se em roupa nova para uma boneca. Quem sabe quantas histórias ainda estão escondidas nas gavetas, à espera de serem descobertas?
Retalhos travessos
Este texto nasceu inspirado no livro A manta – uma história aos quadradinhos (de tecido), escrito por Isabel Minhós Martins e ilustrado por Yara Kono. Tal como nessa história, também aqui um retalho de tecido guarda memórias, brincadeiras e segredos. Entre linhas e costuras, o tecido transforma-se em personagem e testemunha de aventuras, trazendo à superfície lembranças da infância e da imaginação.
Quando eu era pequena, adorava brincar na rua com os meus amigos. Corríamos, ríamos e inventávamos jogos sem fim. Mas este retalho de tecido não vinha da rua.
A minha irmã era a costureira da família. Fazia vestidos para mim, mas eu detestava prová-los. Ficava de pé, muito direita, enquanto ela espetava alfinetes para ajustar. “Ai, que já me picaste!”, gritava eu, e ela respondia: “Não te mexas, senão nunca mais acabo!”
Na casa havia metros e metros de tecidos lindíssimos. Pareciam rios coloridos a escorrer das prateleiras. Eu olhava para eles e pensava: “Se eu fosse costureira, faria roupas para a minha boneca, que só tem uma muda de roupa, coitadinha.”
Um dia, não resisti. Peguei na tesoura como quem pega num segredo e cortei um pedaço de tecido. “Vai ser uma saia plissada, igual às da moda!”, pensei. Às escondidas, cosi e cosi, com muito cuidado. Quando terminei, fiquei orgulhosa: a minha boneca parecia uma verdadeira princesa!
Mas… a minha irmã descobriu. Olhou para o tecido cortado e disse: “Quem fez isto?” Eu tentei esconder-me atrás da boneca, mas não resultou. Levei um grande raspanete e fiquei uma semana sem brincar na rua.
Mesmo assim, quando olhava para a boneca de saia nova, eu sorria. Porque às vezes, uma travessura também pode ser uma aventura.
GR
20 novembro, 2025
𝑨 𝒄𝒐𝒓 𝒑ú𝒓𝒑𝒖𝒓𝒂, de Alice Walker
Autora: Alice Walker
Título: A cor púrpura
Tradutora: Tânia Ganho
N.º de páginas: 340
N.º de páginas: 340
Editora: Suma de Letras
Edição: Outubro 2018
Classificação: Romance epistolar
N.º de Registo: (3318)
OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐
A Cor Púrpura, romance epistolar de Alice Walker, dá voz a Celie, uma rapariga “negra de uma família pobre do sul rural dos Estados Unidos”, órfã de mãe. Escreve cartas a Deus. Escreve como fala. Como sabe. A sua linguagem é pobre, ingénua, crua. Reflecte miséria, escravidão, crueldade, indiferença. O marido fecha-lhe o mundo. “Olha pra ti. Tu é preta, pobre, feia, tu é mulher. Possa, tu não é nada!” (p. 246)
A partir de certo ponto, entram as cartas de Nettie. A irmã mais nova que fugiu de casa. O leitor divide-se: crueldade nos Estados Unidos, missão em África. Duas vozes, dois mundos. Feminismo, liberdade, violência, racismo, colonialismo — tudo pulsa no contraste.
Celie aceita o que lhe coube: solidão, traição, violência. Mas nas cartas há uma fissura — um desejo de liberdade. Quando conhece Shug Avery, essa fissura abre-se em horizonte. O livro cresce com ela. A menina de 14 anos, submissa e violentada, transforma-se. No fim, é uma mulher independente. Admirável. E não está só: Sofia e outras mulheres, a sororidade que resiste.
Na tradução para português, Tânia Ganho arriscou ao manter erros, marcas de oralidade, abreviaturas. Na nota introdutória, confessa o desafio: “O romance oscila, assim, entre dois níveis de linguagem muito diferentes, um pautado pelas marcas de oralidade da comunidade negra rural e pelos erros de quem teve pouca instrução primária, e o outro regido pelas normas rígidas da língua que é, neste contexto, assumidamente a língua do colonizador.”
Publicado em 1982, A Cor Púrpura valeu a Alice Walker o Prémio Pulitzer de Ficção (1983) e inspirou adaptações para cinema e teatro musical, confirmando a sua relevância cultural.
A Cor Púrpura é resiliência. É esperança. Escrita simples. Violência profunda. Camadas que nos obrigam a reflectir sobre os Direitos Humanos. Hoje, mais do que nunca, continua a ser necessário. Um livro que nos convoca a escutar vozes silenciadas. E a reconhecer a força transformadora da narrativa.
19 novembro, 2025
Carla Pais vence prémio LeYa 2025
A vencedora do Prémio LeYa 2025 é Carla Pais, com a obra A sombra das árvores no inverno.
O presidente do júri, Manuel Alegre, destacou a elegância da escrita, referindo que a autora "traz, ao curso do enredo e ao trajeto íntimo e social das personagens, situações problemáticas e convulsas de candente atualidade na Europa, sobretudo decorrentes da imigração oriunda de África e Próximo Oriente".
Constituíram o júri o escritor Manuel Alegre, José Carlos Seabra Pereira, professor na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Isabel Lucas, jornalista e crítica literária, Lourenço do Rosário, ex-reitor da Universidade Politécnica de Maputo, Ana Paula Tavares, poeta e Prémio Camões deste ano, e Josélia Aguiar, jornalista e historiadora.
Carla Pais para além de alguns contos já premiados, tem dois romances publicados. O primeiro, Mea culpa, obra indigitada para o Prémio Revelação Agustina Bessa-Luís, granjeou um enorme reconhecimento por parte do público e da crítica. O segundo, Um cão deitado à fossa, recebeu o prémio Cidade de Almada 2018 e o Prémio SPA, para o melhor livro de ficção narrativa 2023.
Já li e recomendo os dois romances da autora.
partilho a minha opinião sobre os dois romances:
Prémios Leya
2009 - O Olho de Hertzog, João Paulo Borges Coelho - Moçambique
2010 - Não atribuído
2011 - O Teu Rosto Será o Último, João Ricardo Pedro - Portugal
2012 - Debaixo de Algum Céu, Nuno Camarneiro - Portugal
2013 - Uma Outra Voz, Gabriela Ruivo Trindade - Portugal
2014 - O Meu Irmão, Afonso Reis Cabral - Portugal
2015 - O Coro dos Defuntos, António Tavares - Portugal
2016 - Não atribuído
2017 - Os Loucos da Rua Mazur, João Pinto Coelho - Portugal
2018 - Torto Arado, Itamar Vieira Junior - Brasil
2019 - Não atribuído
2020 - Não atribuído
2021 - As Pessoas Invisíveis, José Carlos Barros - Portugal
2022 - A Arte de Driblar Destinos, Celso José da Costa - Brasil
2023 - Não Há Pássaros Aqui, Victor Vidal - Brasil
2024 - Pés de Barro, Nuno Duarte - Portugal
2025 - A sombra das árvores no inverno, Carla Pais - Portugal
16 novembro, 2025
𝑽𝒊𝒈í𝒍𝒊𝒂𝒔, de Al Berto
Autor: Al Berto
Título: Vigílias (antologia)
Selecção: José agostinho Baptista
N.º de páginas: 207
N.º de páginas: 207
Editora: Assírio & Alvim
Edição: Maio 2004
Classificação: Poesia
N.º de Registo: (1729)
OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐
Vigílias — Al Berto lido por José Agostinho Baptista
Vigílias é uma antologia de poemas de Al Berto, escolhida e apresentada por José Agostinho Baptista, que lhe dedica um prólogo intenso e sensível. Publicada em 2004, na colecção Grãos de Pólen (Assírio & Alvim), procura condensar a força da obra de Al Berto numa selecção que privilegia o gesto poético como vigília — estado de atenção e combustão.
Nesta colecção, cada volume é uma antologia escolhida por outro poeta, criando diálogo entre gerações. Aqui, Baptista lê Al Berto como alguém que “ardia nas chamas da alta combustão do poema”, sugerindo que cada verso é vigília contra o esquecimento.
O título Vigílias evoca permanência: estar acordado diante da vida e da morte, da memória e da paisagem. Dentro de Uma existência de papel, há uma secção intitulada “Vigílias” com seis poemas, todos incluídos na antologia. Foi desse núcleo que Baptista retirou o título, transformando-o em chave simbólica de leitura. O fecho dessa secção condensa a essência da obra:
“então a vida abater-se-á sobre a folha de papel
“então a vida abater-se-á sobre a folha de papel
onde verso a verso
me ilumino e desgasto”
É desta vigília que nasce a antologia: escrita como iluminação e desgaste, combustão que atravessa corpo, território e memória.
Todos os poemas reunidos integram O Medo, a colectânea completa. Ao reunir esta selecção, Baptista oferece ao leitor uma entrada mais acessível na obra de Al Berto. A poesia, densa e fragmentada, não é de leitura imediata; Vigílias funciona como chave de iniciação, abrindo caminho para a combustão integral de O Medo.
No prólogo, Baptista afirma: “Nada, quase nada, há que dizer sobre os poetas. Eles que digam tudo, quase tudo, eles que nos cerquem, que nos toquem.” O prólogo é, assim, uma declaração de afinidade poética, sublinhando a energia vital e inquieta que atravessa os versos.
Na antologia, o corpo surge como pele-papel, lugar de inscrição e de memória. Em livros como Outros Corpos, Sete dos Ofícios, Trabalhos do Olhar e Uma Existência de Papel, o corpo é atravessado por desejo e fragilidade, cada poema funcionando como cicatriz ou tatuagem de fogo. A escrita não é apenas representação, é ferida que se abre e cicatriz que permanece, transformando o corpo em suporte vivo da poesia.
A antologia segue uma ordem cronológica e dá relevo ao território. Sines aparece em mar-de-leva, mas também em poemas que evocam lugares concretos como a “Quinta de Santa Catarina”, a “Rua do Forte”, São Torpes ou Milfontes. O mar, o porto e as ruínas tornam-se páginas vivas, papel marítimo onde o poema se inscreve. Aqui, a vigília é comunitária: o poeta vigia a cidade, e a cidade vigia o poeta.
Em O Livro dos Regressos, a pele guarda o passado como chama que ainda arde. Infância, lugares perdidos e pertença inscrevem-se como memória viva. O regresso é inscrição na pele do tempo, papel onde o passado se grava e se prolonga.
Mas Vigílias é também melancolia: a vida que se abate sobre a folha de papel, o corpo que se ilumina e se desgasta, a cidade que se inscreve em ruína e saudade. A antologia abre caminho ao leitor, mas mantém essa sombra, como vigília silenciosa que acompanha cada poema.
Já escrevi sobre vários livros de Al Berto e o título que dei a um trabalho mais longo — Al Berto in lugares: o deambular da melancolia lunar do corpo — nasce de dentro da própria obra e também da antologia. Tal como Baptista escolheu Vigílias como chave de leitura, também eu inscrevi a minha leitura crítica num verso que condensa corpo, território e melancolia. A crítica torna-se continuação da poesia: vigília, errância, melancolia e combustão.
Em suma, para quem não conhece a obra de Al Berto, Vigílias é uma porta de entrada: oferece uma selecção que privilegia intensidade e ressonância, convocando o leitor para estar atento à vigília silenciosa dos poemas.
14 novembro, 2025
𝑨𝒖𝒈𝒖𝒔𝒕𝒂, de Rodrigo Vieira Dias
Autor: Rodrigo Vieira Dias
Título: Augusta
N.º de páginas: 167
Editora: Amazon
Edição: 2023
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3753)
OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐
Em Augusta, Rodrigo Vieira Dias expõe a fragilidade da adolescência e o peso da memória familiar através de uma escrita fragmentada e alternada, que recusa linearidade e obriga o leitor a uma escuta atenta. A fragmentação é sustentada pela alternância entre duas vozes principais. De um lado, a narradora, na terceira pessoa, que descreve Augusta e o mundo exterior, apresentando figuras como a avó, verdadeiro pilar da sua vida, presença que lhe dá alguma estabilidade num universo marcado pela ausência e desinteresse dos pais. De outro, a leoa, na primeira pessoa, voz visceral que irrompe como consciência subterrânea e instinto vital.
“- Posso ficar um bocadinho aqui contigo, Vô Chiquinha?
(…)
- Claro, meu bem – respondeu Francisca
A moça atravessou o quarto e sentou-se no chão aos pés da avó. Francisca buscou-lhe a mão e envolveu-a nas suas, um pequeno pássaro envolto por dois ramos de um velho carvalho. (…) Francisca não precisava de palavras, conhecia-lhe os jeitos e os silêncios. Aguardaria o tempo que fosse necessário.” (p. 31)
É na voz da leoa que surgem a força da natureza e os fantasmas, presenças espectrais que convivem com ela e representam fragmentos da psique de Augusta. Esses fantasmas não são mediadores da narradora, mas companheiros da leoa, dramatizando a luta interior; forças que arrastam Augusta para o abismo, que a mantêm “presa num mundo sem esperança”, em contraste com o rugido que afirma a sobrevivência.
O episódio em que Augusta descobre o corpo nu de um jovem suicidado (João) é um marco simbólico: a morte surge como espelho e ameaça, insinuando-se como possibilidade de fuga ao desassossego. Mas é precisamente aí que a leoa revela a sua força. Ao conviver com os fantasmas, ela impede a protagonista de se dissolver, transformando o vazio em metamorfose, “numa outra margem”.
A escrita fragmentada e a estrutura alternada ritualizam esta tensão entre exterioridade e interioridade. A narradora dá corpo às pessoas e ao mundo, enquanto a leoa devolve ao leitor o rugido íntimo que resiste ao apagamento.
A capa do livro reforça esta leitura: a centralidade da rapariga isolada e de costas em oposição ao desenho invertido da leoa e da árvore espelha a inversão narrativa entre exterior e interior, entre memória e instinto. A árvore invertida remete para raízes deslocadas — a avó como sustentação, os pais como ausência — enquanto a leoa invertida simboliza o desassossego e a força subterrânea que desafia a ordem.
Assim, Augusta não é apenas um romance de iniciação ou perda, é também um romance de esperança em “que o amor vence sempre”. É um texto maravilhoso que convoca o leitor a escutar o rugido íntimo que impede a extinção, revelando que a busca interior é também uma luta feroz onde duas vozes — narradora e leoa — se alternam para encenar a luta entre fragilidade e potência, entre fantasmas e sobrevivência com a capa a funcionar como síntese visual dessa tensão.
12 novembro, 2025
Booker Prize 2025
O júri atribui, por unanimidade, o galardão do Prémio Booker, deste ano, ao escritor anglo-húngaro David Szalay com a obra Flesh.
“Nunca tínhamos lido nada parecido. É, em muitos aspetos, um livro sombrio, mas é um prazer lê-lo”, afirmou o escritor irlandês Roddy Doyle, o primeiro vencedor do Booker a presidir a um painel do júri, depois de ter explicado que todos os membros leram três vezes cada um dos seis finalistas e que sentiram que este “merecia ganhar pela sua singularidade”.
Flesh ainda não está editado em Portugal, mas do autor estão publicados Tudo o que um homem é (2018) e Turbulência (2019), ambos pela editora Elsinore.
11 novembro, 2025
10 novembro, 2025
Vigília em desassossego
A partir de dois versos de Al Berto escrever um texto
ah meu amigo
demoraste tanto a voltar dessa viagem
in Uma existência de papel - Poema 5 "Eremitério"
Premissas:
- iniciar o texto com os dois versos indicados;
- usar, no corpo do texto, as seguintes palavras: luz, alga(s), mulheres, nocturno, obsessão, mar.
_____________
Como já tinha escrito uma carta com este início, também para um exercício de escrita criativa, retomei o texto e, em ressonância com a obra Vigílias nasce este novo texto que prolonga a vigília em desassossego.
demoraste tanto a voltar dessa viagem...
Como te esperei — ansioso, desolado.
Deambulando pelas ruas, procurava-te no rosto fechado das mulheres sentadas à soleira das portas, espiando o crepúsculo da vida.
Nada. Absolutamente nada.
Sentado na areia, desejava que as algas te arrastassem até mim.
Na mesma posição, ocupado em memórias fugazes, apenas perturbado pelo silêncio sibilante das ondas, vivi dias lentíssimos… sem ti.
A saudade, feroz, atormentava-me o coração e ofuscava a luz radiante do sol que se espelhava no mar — único confidente do meu desassossego.
A espera tornou-se obsessão, a inquietude dos dias invadiu-me e tornei-me, como tu, um rosto louco, nocturno, em continuada vigília.
Agora que regressaste, afasto a melancolia e recupero o ensejo de preencher a folha de papel que há muito aguardava a tinta capaz de lhe dar sentido.
“ESCREVO-TE A SENTIR tudo isto
e num instante de maior lucidez ”
Promete que não voltas a partir...
Preciso de ti — aqui, continuamente.
Só contigo saberei justificar esta existência de papel.
GR
09 novembro, 2025
𝑶 𝑴𝒊𝒕𝒐 𝒅𝒆 𝑺í𝒔𝒊𝒇𝒐, de Albert Camus
Autor: Albert Camus
Título: O Mito de Sísifo
Tradutor: urbano Tavares Rodrigues
Tradutor: urbano Tavares Rodrigues
N.º de páginas: 129
Editora: Livros do Brasil
Edição: Setembro 2016
Classificação: Ensaio
N.º de Registo: (3547)
OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐
Imaginar Sísifo feliz - uma leitura de Camus
Entre o absurdo e a revolta, uma filosofia que se torna experiência de vida.
“Só há um problema filosófico verdadeiramente sério: é o suicídio.” Com esta frase inaugural, escrita em 1942, Albert Camus abre uma fenda no silêncio da existência. O Mito de Sísifo não é apenas um marco do existencialismo, é o mapa de um território onde o homem se descobre absurdo, suspenso entre o desejo de sentido e o vazio que o recusa.
A obra, dividida em quatro partes e um apêndice, desenha um percurso: do raciocínio ao homem, da criação ao mito, até à esperança que se insinua na obra de Kafka. Cada etapa é uma aproximação ao coração do absurdo, esse lugar onde “Viver é fazer viver o absurdo. Fazê-lo viver é, antes de mais, olhá-lo.” (p.54). Camus retira três frutos dessa contemplação: a revolta, a liberdade e a paixão. E para lhes dar corpo, convoca figuras que vivem em confronto com o absurdo — Dom Juan, Kirilov, Sísifo.
É em Sísifo que a metáfora se cristaliza. O operário que repete o gesto quotidiano, o homem que empurra a pedra sem fim, torna-se espelho de nós. “Esse destino não é menos absurdo. Mas só é trágico nos raros momentos em que ele se torna consciente.” (p.112). Camus devolve-lhe dignidade: não como vítima, mas como símbolo de coragem. “A própria luta para atingir os píncaros basta para encher um coração do homem. É preciso imaginar Sísifo feliz.” (p.114). A aceitação do fardo transforma-se em liberdade; o peso da pedra converte-se em fidelidade à vida.
Nem sempre o caminho é linear — a filosofia exige paciência, escuta, demora. Mas há uma beleza inesperada na revolta que Camus propõe: viver e criar, não apesar do absurdo, mas através dele. A revolta é gesto de liberdade, é invenção, é resistência contra o vazio.
Mesmo fora da disciplina filosófica, este ensaio abre-se como uma janela. Torna o absurdo compreensível, quase luminoso, e oferece ao leitor comum a possibilidade de se reconhecer na luta de Sísifo.
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