13 outubro, 2024

Desafio de escrita criativa lançado por João Pinto Coelho

 


Querem um desafio a sério? Então leiam até ao fim:

Há uns dias, vi esta mulher numa praia às moscas. Chegou cedo ao areal, não se despiu, sentou-se, olhou para o mar e começou a escrever.
Para um romancista, o voyeurismo é tão irresistível como as leituras vorazes, por isso, expondo-me aos vosso insulto, fotografei-a às escondidas.
Usei zoom para os pormenores, preservo-lhe o anonimato.
Vejam a sequência das imagens, uma sequência que se repetiu pela manhã fora:
1 - escreve,
2 - olha demoradamente sei lá para onde,
3 - volta a escrever, olha em frente. (o que a detém? Será sintaxe? Será paixão?)
... e por aí adiante.

Quem é ela?
Para quem escreve?
O que escreve?
Uma carta de amor? de despedida? Com o que sei desta mulher, pode não passar de uma lista do supermercado.
Mas não vos apetece propor outra coisa? Não vos apetece escrever um conto?
Se não vos parecer irresistível, por favor, nem tentem. Será sempre coisa pequena, 1500 palavras, no máximo.
Não sei se precisam de detalhes para a vossa história, mas ela escreve a lápis numa folha azul. E pousa-a num romance…  ou será num livro de poemas?
E se for num livro de poemas, será provável que um deles, se calhar o de abertura, lhe seja dirigido?
Já adivinharam até onde podem ir com quatro fotografias?

Escrevam, partilhem com quem goste de escrever, mandem-me o que fizeram e, se quiserem, publico-o na minha página.

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O resultado:


O mar. Sempre o mar

Era cedo. O sol ainda se escondia para além das nuvens. O mar, no seu vai e vem, cortava o silêncio de uma praia ainda vazia, ou quase.

A mulher chegou num passo decidido, estendeu a toalha, descalçou as sandálias e sentou-se. Repentinamente, tirou do saco um livro e abriu-o para retirar as folhas azuis que lá se encontravam. Com um lápis escreveu, riscou o que escrevera, olhou para o horizonte como se ensaiasse as palavras que ia escrever, respirou profundamente, debruçou-se sobre as folhas e escreveu. Escreveu durante uns longos minutos. Riscou, mirou de novo o mar, e voltou a escrever. Pressentia-se a urgência da escrita.

Maria já antes tinha tentado resgatar no papel as emoções de um longo fim-de-semana passado a dois. O sorriso de M. veio quebrar a monotonia de uma vida arrumada, há muito sem surpresas. Foram três dias de companheirismo, de risadas, de sol, de mar, de desejos saciados. Três dias que passaram num ápice e, provavelmente, sem repetição. M. habitava noutro lugar.

Sentia necessidade de transpor para o papel tudo o que viveu. Pareceu-lhe a única maneira fiável de manter viva essa memória e, quem sabe, um dia, talvez ousasse enviar uma cópia a M.

Em casa, no pouco tempo livre que dispunha, tentou fazê-lo mas faltava-lhe a concentração, achava ela. Desculpou-se com o barulho do autoclismo do vizinho ao lado, com a música do adolescente do piso inferior, com a agitação da rua, com o cansaço do dia de trabalho. O papel permanecia virgem, não era capaz de expressar o que sentira, o que vivera.

Certo dia, levantou-se cedo, não tinha obrigações definidas. Procurou o livro que andava a ler, Mãe, Doce Mar. Há vários dias que não lhe pegava. A cabeça andava desarrumada, as palavras que aí se emaranhavam eram outras. Olhou de novo para a capa do livro e esboçou um sorriso. Pegou nele, colocou no interior as folhas azuis e saiu apressada e convictamente. Como não pensara nisso antes.

Sentada na praia ainda pouco movimentada, as frases que em casa lhe faltaram, surgiram, primeiro, impetuosas e atabalhoadas. Depois, as palavras alinharam-se com as emoções e foi construindo uma história, a sua, que espelhava os momentos vividos e partilhados naquele engate de verão.

Quando pensou ter concluído, satisfeita e orgulhosa, olhou em redor, calmamente e avistou um casal deitado lado a lado. Pensou em M. e gostaria que fossem eles, ali, a saborear o sol ainda fraco àquela hora da manhã. Retirou o olhar e o pensamento e viu, mais atrás, um homem sentado numa toalha com uma máquina fotográfica na mão. Se tivesse olhado mais atentamente, talvez, reconhecesse o autor do livro que tinha no colo e que lhe insinuou o caminho. Um homem hábil nas palavras e caçador de instantes, que lhe captou alguns gestos que mais, tarde, serviriam para uma proposta de desafio de escrita ou, quem sabe, para um novo romance.

Desviou o olhar para o areal e para as ondas que aí se desfaziam suavemente. Respirou a tranquilidade do mar e regressou ao seu texto. Escreveu mais umas linhas, melhorou algumas frases, substituiu algumas palavras. Sorriu aliviada. Perdeu-se nas memórias ainda vivas e alimentou-as com novos ingredientes. Os sonhos eram seus. Ninguém lhos poderia roubar nem mesmo condenar. A sua vida, a partir de agora, alimentar-se-ia de uma nova vitamina. O amor.

Levantou-se e passeou no areal, mesmo junto ao mar, como se acariciasse a espuma das ondas desfeitas, num agradecimento. Demorou-se na sua quietude.

Quando regressou à toalha, pegou no saco, calçou as sandálias e retornou a casa. Tomou um banho, escolheu um vestido alegre e saiu.
Na rua, o sol, agora brilhante, acariciou-lhe o rosto.


30 de Agosto de 2024
GR

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