16 março, 2024

𝑨 𝑩𝒐𝒏𝒆𝒄𝒂 𝑫𝒆𝒔𝒑𝒊𝒅𝒂, de Paulo M. Morais

 


Autor: Paulo M. Morais
Título: A Boneca Despida
N.º de páginas: 380
Editora: Casa das Letras
Edição: Maio 2023
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3479)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


A Boneca Despida, de Paulo M. Morais é um romance arrebatador que nos lega uma mensagem que urge repensar nos dias de hoje.

O livro muito bem estruturado, é constituído por sete partes (Aurora, Manhã, Meio-dia, Tarde, Anoitecer, Noite, Crepúsculo) que constituem um dia, mas que efectivamente correspondem a 100 anos, o tempo de vida da protagonista, Julieta Silva. Cada uma destas partes abre com sugestões de bandas sonoras apropriadas a cada momento e que, na minha opinião, enriquecem sobremaneira a leitura do romance.
A subdivisão é assumida por datas (de 1915 a 2016) e em cada uma delas, em jeito de epígrafes, o autor insere pequenos textos representativos dos factos sociais, culturais e políticos da época e que se cruzam, obviamente, com as vivências de Julieta. Considero estes textos fundamentais e de extrema importância para a compreensão do enredo.

Julieta Silva é uma lutadora. Com uma vida infeliz e sofrida carrega as marcas de uma sociedade portuguesa patriarcal gerida sob a batuta castradora do regime do Estado Novo. As mulheres, tidas como “fadas do lar”, conformavam-se ao poder da figura masculina, marcas que permaneceram mesmo depois da revolução.
Julieta sujeitou-se a uma vida de servidão, de abandono, a quem impediram de prosseguir estudos, de ler, de sonhar, a quem não revelaram as alterações corporais e biológicas, a quem não ensinaram os factos de uma vida, nem sequer a experimentar emoções. Casou sem paixão, teve filhos que amou e protegeu incondicionalmente. Assumiu, submissa, o seu papel de neta, de filha, de sobrinha, de irmã, e mais tarde, de mulher, de mãe, de avó. “Naquela submissão, havia medo e solidão.” (p. 71). Sofreu reversos inesperados e dolorosos. Nunca se rebelou, nunca lutou pela sua felicidade, mas também nunca se lamentou, nem vacilou. Julieta é uma mulher extraordinária se tivermos em conta o período em que viveu. Bafejada por um destino cruel, impiedoso e sofrido, tudo faz para sobreviver e servir com amor os seus, sobretudo os filhos.

A Boneca Despida, é assim, um documento histórico pois espelha o papel da mulher ao longo de um século, mas também evidencia a repressão homossexual, a “beatice” vivida na Igreja que alimentava nos seus crentes noções de culpa e de pecado, impondo um moralismo excessivo, “Com bênção e selo papal, carimbava-se a aliança entre Igreja e Estado para a orientação dos portugueses nas suas vidas. No seio da família rezava-se e perdoava-se bastante.” (p. 155)

A escrita de Paulo M. Morais é fluida e apaixonante com passagens muito poéticas, mas também muito duras. A realidade social, histórica e social apodera-se da ficção, ou será o contrário? Não importa a ordem, o importante é mesmo que o leitor seduzido se deixa conduzir e, assim, página após página, vive intensa e emocionalmente a existência desta mulher, “que à custa da sua fraqueza [em impor as suas intenções], falhara” muitas vezes, mas que nunca desfaleceu perante as agruras do destino. Quantas mulheres calaram e continuam a calar uma vida de dor, de violência? Termino como iniciei: é urgente repensar a nossa existência, os valores da nossa sociedade. O que queremos? Para onde nos dirigimos?

Recomendo a leitura deste e dos outros livros do autor.



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