Agota Kristof escreveu O Caderno Grande, A Prova e A Terceira Mentira, entre 1986 e 1991. Em Portugal, estes três livros foram publicados num só volume intitulado Trilogia da cidade de K..
Kristof revela-nos uma história intensa e perturbadora. Há marcas de uma guerra que ocorre num país nunca nomeado, possivelmente na Hungria. No primeiro livro, também não temos indicação do nome das personagens, apenas sabemos que são dois meninos gémeos de nove anos. Com o desenvolvimento da narrativa, os gémeos vão entrando na adolescência e na vida adulta.
Num ambiente de guerra, há naturalmente privações, separações, exílio, sofrimento, mortes. E é pelo olhar inocente e cruel dos gémeos que vamos acompanhar muitas peripécias de luta pela sobrevivência que vão travar com a avó, conhecida na povoação pela “bruxa”, que os maltrata física e psicologicamente e os priva da escola e do conforto de um lar. Inteligentes, aprendem, com persistência, estratégias de enfrentar todas as crueldades a que são sujeitos. Acabam por criar situações absurdas e chocantes, não muito próprias para crianças.
A narração no primeiro livro, O Caderno Grande, é feita integralmente na primeira pessoa do plural “nós”. Como se de uma única pessoa se tratasse, ou como se os dois funcionassem em uníssimo, em franca harmonia. Nesse caderno decidem escrever, apenas, as descrições dos objectos, dos seres humanos e deles próprios e evitar a utilização de palavras que definem sentimentos, palavras subjectivas.
No segundo livro, A Prova, há uma separação voluntária dos gémeos, Klaus e Lukas (aqui já nomeados), ou Lucas e Claus. Klaus, agora com 15 anos, decide separar-se do irmão e atravessar a fronteira para o país vizinho. Lukas, num período de pós-guerra, ainda com insurreições, narra-nos as suas vivências, os seus relacionamentos. Há momentos e relações ambíguos, surgem novas personagens, novas histórias encaixadas.
No terceiro livro, A Terceira Mentira, passados trinta anos, reaparece Klaus com uma história construída com fragilidades e contradições, o que levanta muitas dúvidas ao leitor sobre a veracidade das histórias. As duas partes que o compõem são narradas por cada um dos gémeos e tudo muda, de novo. Afinal, é tudo mentira? A metáfora do jogo de espelhos encaixa na perfeição, a história vai alterando ao sabor do narrador.
À medida que avançamos na leitura dos três livros, intuímos que a autora baralha as informações. Tal como os nomes se confundem, (anagramas), as memórias de cada um também se revelam desfocadas e contraditórias. A ambiguidade vai num crescendo e duvidamos da existência de um dos gémeos. Ao intitular o último livro com A Terceira Mentira, a autora confirma, ou não, a realidade da história. Se, neste livro, estamos perante uma terceira mentira, significa que os dois anteriores também o são? Afinal, há dois gémeos? Há só um? E qual deles? Quem é o narrador? As personagens do primeiro livro existiram de facto como foi narrado ou desempenharam outros papéis? Podemos confiar num narrador infantil que viveu traumas de abandono? Estamos perante delírios de um idoso ou meros exercícios de escrita? Tantas dúvidas que nos assolam! Estas e outras tantas!
Penso que com esta questão, a autora pretende reflectir sobre a perda de identidade, a manipulação da verdade veiculada por regimes autoritários, a perda de memória marcada por circunstâncias de guerra, de sofrimento, de destruição, em suma na fragilidade da verdade.
Esta trilogia escrita numa linguagem simples, directa, seca e dura, com diálogos curtos, por vezes pincelados de humor negro, e muito objectivos, no início, vão ganhando subjectividade e emotividade, compõe uma obra fabulosa que muito deve à sua originalidade na criação de um imbróglio que baralha por completo o leitor. Esta abordagem, de frieza calculada, torna a narrativa ainda mais impactante. A eliminação de qualquer excesso emocional, transfere para o leitor a interpretação dos factos.
Realidade e Ficção mesclam-se na perfeição. A relação dos irmãos é um reflexo da dualidade (o tal jogo de espelhos) presente em toda a obra: realidade versus ficção, verdade versus mentira, identidade versus anonimato.
Agota Kristof que nasceu na Hungria tendo deixado o país na sequência da repressão soviética que se seguiu à Revolução Húngara de 1956, acaba por expor a sua própria experiência e constrói essa dinâmica de forma magistral, deixando o leitor imerso num universo de incertezas e emoções intensas.
Uma última questão que me surge enquanto finalizo este texto. No título Trilogia da Cidade de K., mantém-se a ambiguidade que já referi. Que pode significar K. ? São várias as possibilidades: Kristof?, Klaus?, Köszeg? a cidade onde a autora se encontra sepultada na Hungria? Outra possibilidade?
Convido-vos a embrenharem-se na leitura desta obra magnífica.