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22 setembro, 2024
Canção de Outono | Cecília Meireles
Perdoa-me, folha seca,
não posso cuidar de ti.
Vim para amar neste mundo,
e até do amor me perdi.
De que serviu tecer flores
pelas areias do chão,
se havia gente dormindo
sobre o próprio coração?
E não pude levantá-la!
Choro pelo que não fiz.
E pela minha fraqueza
é que sou triste e infeliz.
Perdoa-me, folha seca!
Meus olhos sem força estão
velando e rogando àqueles
que não se levantarão…
Tu és a folha de outono
voante pelo jardim.
Deixo-te a minha saudade
– a melhor parte de mim.
Certa de que tudo é vão.
Que tudo é menos que o vento,
menos que as folhas do chão…
18 setembro, 2024
𝑫𝒆𝒔𝒈𝒓𝒂ç𝒂, de J. M. Coetzee
Autor: J. M. Coetzee
Título: A Desgraça
Tradutor: José Remelhe
N.º de páginas: 234
Editora: D. Quixote
Edição (7.ª): Maio 2023
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3484)
Dizem que é a sua obra-prima. Se é a “sua obra-prima”, não o posso confirmar porque ainda não li todos os seus livros. Mas que é uma obra-prima, é com toda a certeza.
Desgraça narra a história de sobrevivência de David Lurie, um professor de Literatura na Universidade Técnica da Cidade do Cabo, África do Sul e retrata o conjunto de tragédias que ocorrem ao longo da obra, numa sociedade decadente.
É pela voz de um narrador colado à pele do protagonista, que nas duas primeiras linhas nos é apresentado David Lurie “Para um homem de sua idade, cinquenta e dois anos, tem resolvido bastante bem, segundo ele, o problema do sexo”.
Desde logo, Coetzee antecipa o problema que conduzirá o professor universitário a uma auto-destruição que por razões óbvias não vou divulgar. Posso, contudo, referir que num país que enfrenta uma tensão sócio racial, pós-apartheid, os preconceitos dominam, a vingança estabelece-se e as acusações sobrepõem-se à realidade. O professor de poesia romântica, homem branco, culto e grande entusiasta da cultura europeia, vai passar por um processo complexo de exoneração. Humilhado perante os seus colegas e alunos decide não se defender e abandonar o ensino. Sai da cidade e vai viver com a sua filha Lucy, numa pequena propriedade rural. A relação não é fácil entre eles. E a situação agrava-se quando David e Lucy são assaltados e agredidos de forma inominável por três homens de raça negra. A partir daqui Coetzee é sublime na exploração dos conflitos raciais marcados pela segregação e pelos costumes geracionais.
(…) foi isso que os invasores conseguiram; foi isso que fizeram a esta jovem confiante e moderna. Tal como uma nódoa, a história espalha-se pela região. Não a história dela, mas sim a deles: eles é que mandam. Como a colocaram no seu lugar, como lhe mostraram aquilo para que serve uma mulher.” (p. 125)
Coetzee, numa escrita incisiva, sóbria e sincera, coloca o leitor numa situação ambígua que, ora sente compaixão pela personagem, ora o critica pelas atitudes e decisões que toma. Ao longo da narrativa e à medida que os problemas se vão avolumando, Lurie não consegue resolvê-los, não consegue resolver-se. Tudo isto faz que o leitor anseie pelo final. E que final. Que metáfora da vida.
Recomendo muito. Para além da força das palavras nos assuntos abordados, gosto sobremaneira da forma como estruturou a narrativa e do recurso ao discurso indirecto livre e aos diálogos curtos e secos que colocam a narrativa num patamar superior.
17 setembro, 2024
14 setembro, 2024
𝑨 𝑫𝒆𝒔𝒐𝒃𝒆𝒅𝒊𝒆𝒏𝒕𝒆 - 𝑩𝒊𝒐𝒈𝒓𝒂𝒇𝒊𝒂 𝒅𝒆 𝑴𝒂𝒓𝒊𝒂 𝑻𝒆𝒓𝒆𝒔𝒂 𝑯𝒐𝒓𝒕𝒂, de Patrícia Reis
Autora: Patrícia Reis
Título: A Desobediente
N.º de páginas: 423
Editora: Contraponto
Edição (4.ª): Maio 2024
Classificação: Biografia
N.º de Registo: (3582)
OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐
Trata-se de mais uma importante biografia sob a chancela da Contraponto. À semelhança de outras que já li (curiosamente, ainda só no feminino) também esta revela um inegável trabalho de pesquisa e uma qualidade que dá a conhecer a relevância literária, política e cívica da biografada.
Patrícia Reis entra hábil e exemplarmente no mundo d’ A Desobediente poetisa, escritora, jornalista, e feminista Maria Teresa Horta (MTH). É com admiração que percorremos as páginas escritas e descobrimos o seu percurso.
MTH desde pequenina que demonstrou coragem e coerência na luta dos seus ideais. Ao longo da sua vida sofreu desilusões que deixaram marcas profundas, como o abandono da mãe, a indiferença do pai, a incompreensão de muitos, a censura, a ameaça, a doença, a morte do marido. Cedo, captou “o sentido do proibido, daquilo que importava calar” e percebeu que ser mulher em Portugal era uma grande desvantagem. Era estar sujeita a um homem que decidisse por ela. Carecia de uma autorização para estudar, trabalhar, viajar e até para ler determinados livros. Era estar proibida de votar, de emitir opinião abertamente, não ter direito a uma conta bancária, em nome próprio, e não ter privacidade em determinados assuntos. Para fugir à pressão e à vigilância do pai, MTH decide casar e assim, conquistar a sua emancipação e uma identidade própria, isto é, reivindicar a sua feminilidade, a sua liberdade e sobretudo o seu lugar no mundo.
Inteligente, curiosa, activa, desobediente, de uma lucidez incrível, MTH incentivada pela avó (“uma mulher especial, feminista, uma alma capaz de guardar um segredo”) dedica horas à leitura e à escrita e descobre o cinema. A escrita, a poesia “era uma forma de sossego”. Os poemas “nasciam-lhe nos dedos” e neles encontraremos a sua dor, o seu desamor, a sua paixão pelo marido, “o seu muso” (Luís de Barros), a luta pelos direitos da mulher, pelo debate das questões de sexualidade, da nudez do corpo, pela libertação sexual. Este último aspecto tornou-se amplamente revelador no livro Minha Senhora de Mim.
“ (…) não era só o erotismo, era a noção de liberdade que estava em causa. (…) Trata-se de uma poesia amorosa, sensual, erótica.” (p. 212). É óbvio que o livro foi apreendido pela PIDE.
Para ultrapassar dificuldades financeiras, MTH trabalhou como jornalista em vários jornais. Tem várias obras publicadas e foi uma das três Marias que escreveu As Novas Cartas Portuguesas, uma das mais importantes obras feministas portuguesas, publicada antes do 25 de abril que as levou à prisão, mas também as catapultou para o reconhecimento.
Sobre tudo isto e muito mais, Patrícia Reis, habilmente, cativa e surpreende o leitor. Escreve com elegância sobre Teresinha, uma amiga, a mulher revolucionária, libertária que viveu em tempos de opressão política. No prefácio, a autora refere que há uma relação de amizade entre as duas e acrescenta que se trata de “uma biografia com colaboração da biografada”. É um privilégio contar com o contributo das memórias ainda vivas de MTH, mas é simultaneamente uma enorme responsabilidade. Patrícia Reis fê-lo muito bem e cumpriu a sua missão.
Na revista Ler (Verão 2024 - n.º 171), Isabel Lucas inicia o seu artigo “Considerem o Leitor” com uma referência ao livro O Prazer da Leitura, de Proust, mais concretamente sobre a perdição do leitor em relação a um livro, no sentido em que tudo “o que rodeia o leitor passe a secundário face à intimidade que se cria entre ele e o objeto que lê. ( …) porque nada é mais real naquele momento do que esse encontro entre duas subjetividades: a do escritor e a do leitor.” E eu acrescentaria uma terceira, a da biografada.
Esta leitura, transformou-se, para mim, no tal “prazer divino” (epíteto de Proust) da descoberta de uma mulher que viveu e lutou intensamente. Por tudo o que nos deu, a nós mulheres, devemos-lhe o reconhecimento e a leitura da sua vasta obra. Já li alguns, mas não ainda, o suficiente.
08 setembro, 2024
𝑩𝒖𝒅𝒂𝒑𝒆𝒔𝒕𝒆, Chico Buarque
Autor: Chico Buarque
Título: Budapeste
N.º de páginas: 135
Editora: D. Quixote
Edição: Fevereiro 2004
Classificação: Romance
N.º de Registo: (1719)
OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐
Trata-se de uma releitura. Na viagem que realizei a Budapeste, considerei que seria oportuno fazer-me acompanhar do romance de Chico Buarque. Confesso que da primeira leitura (2005) já não tinha muita memória, apenas a de um homem, escritor… pelo que foi bom rememorar a história e concluir que o Chico tem razão em relação à língua húngara. No tempo em que lá estive não consegui pronunciar nem entender uma única palavra. É uma língua imperscrutável. “é a única língua do mundo que, segundo as más-línguas, o diabo respeita.” (p. 12)
Chico como amante das palavras que é, no romance foca-se na dificuldade de pronunciar e de entender as palavras húngaras e não tanto na cidade. O protagonista deambula pela cidade à descoberta do novo idioma, estranho e complicado, pelo qual se apaixona. Esta paixão arrebatadora vai alterar por completo a sua vida.
Budapeste é uma narrativa na primeira pessoa. José Costa, o protagonista, é um escritor fantasma (ghost-writer) de talento e após a conclusão de “ O Ginógrafo” encomendado por um alemão que vive no Rio de Janeiro, vai a um Congresso e acaba por ir parar, numa escala, a Budapeste. A partir daí na busca de um entendimento de si próprio começa a ter uma vida dupla. Dois países, duas línguas, duas culturas, duas mulheres (Vanda e Kriska), dois filhos. É no vai e vem destes mundos que se cruzam as histórias fragmentadas de um homem atormentado que vagueia pelas ruas das duas cidades e se recriam outros sentidos que levantam questões de existência, de identidade.
Numa escrita clara e labiríntica com laivos de humor, o autor ao apresentar uma sobreposição de histórias, reflexo de uma aflição existencial, transporta o leitor para situações absurdas e, em determinados momentos, chega mesmo a confundi-lo na mente desorientada do protagonista. E leva-o a reflectir sobre o sentido da vida e das opções que nela fazemos.
Recomendo a leitura porque como referiu Wisnik “ Budapeste, no exacto momento em que termina, transforma-se em poesia.”
03 setembro, 2024
Budapeste
Budapeste, a capital da Hungria, é dividida pelo rio Danúbio é uma cidade bonita e rica em termos arquitectónicos. É agradável passear nas largas avenidas e descobrir os edifícios da época imperial, portadas e varandas art nouveau, algumas lojas antigas, monumentos majestosos, parques e pontes. Destaco a ponte Széchenyi Lánchíd que liga o Monte de Buda à margem plana de Peste.
02 setembro, 2024
𝑨 𝑻𝒓𝒊𝒍𝒐𝒈𝒊𝒂 𝒅𝒆 𝑵𝒐𝒗𝒂 𝑰𝒐𝒓𝒒𝒖𝒆, de Paul Auster
Autor: Paul Auster
Título: A Trilogia de Nova Iorque
Tradutor: Alberto Gomes
N.º de páginas: 298
Editora: Biblioteca Sábado
Edição: Junho 2008
Classificação: Novelas
N.º de Registo: (3557)
Livro surpreendente. O que de início aparenta um romance policial, vai evoluindo para questões existenciais, de reflexão e questionamento do “eu” a partir de um “outro”.
Nas três histórias - Cidade de Vidro, Fantasmas e Quarto Fechado - que compõem o livro, o efeito-surpresa está nos nomes das personagens e no absurdo das tramas vividas pelos protagonistas, todos detectives, que se encontram completamente à deriva.
As três histórias, que podiam bem ser apenas uma, perturbam e incomodam na medida em que a obsessão excessiva da personagem principal se cola à pele do leitor. Não é possível desvincular-se da agitação interior que a invade e com ela mergulha no abismo.
"Nova Iorque era um espaço inesgotável, um labirinto de passos intermináveis;(…) ficava sempre com a sensação de estar perdido. Perdido, não apenas na cidade, mas também dentro de si (…). Ao caminhar sem destino, todos os lugares se tornavam semelhantes, deixando de ter importância o sítio onde se encontrava. Nos seus melhores passeios, conseguia atingir o sentimento de que não estava em sítio algum. Nova Iorque era esse nenhures que havia construído à sua volta, e apercebeu-se de que não tencionava abandonar aquela cidade, nunca." (pp. 7 e 8).
No final da última história, o autor, explica a relação entre os três livros, sem, contudo, desvendar alguns mistérios, mantendo o leitor a pairar perante o não-dito, a incerteza do enigma.
A escrita de Auster é enganosa porque a simplicidade inicialmente aparente, torna-se intrincada e densa. O jogo de misturar narrador e escritor (Paul Auster é também personagem) confunde o leitor para o melhor prender à história. (“Para si, Auster não passava de um nome, um invólucro sem conteúdo. Ser Auster significava ser um homem sem interior, um homem sem pensamentos.”(p. 62)).Também não pretende apresentar soluções para os mistérios, pelo contrário, constrói personagens complexas e caóticas que na busca de um sentido acabam por se perder completamente. E o leitor deixa-se conduzir página a página e, no final, sai maravilhado com a originalidade da escrita, mesmo sem entender toda a complexidade da trama.
Sempre fugi dos livros de Paul Auster. Tenho uma amiga que há muito tenta que eu os leia, mas sempre me esquivei. Não tenho nenhuma razão que o justifique. Manias. Porém, com a morte dele, achei que tinha chegado o momento de lhe dar uma oportunidade. Gostei. Já cá tenho mais dois à espera da sua vez.
01 setembro, 2024
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