30 maio, 2024

O sol e o dia brilham mas sem ti


                                                                                      Foto GR



O sol e o dia brilham mas sem ti
Talvez não sejam mais o sol e o dia.
O sol e o dia agora
Estão lá onde o teu sorriso mora
E não aqui.

Como quem colhe flores tu serena
Vais colhendo sem chorar a nossa pena
Olhas por nós sem mágoa nem saudade
E o céu azul, a luz,as Primaveras
Habitam na perfeita claridade
Em que nos esperas.


Sophia de Mello Breyner Andresen, in No Tempo Dividido




29 maio, 2024

𝑶 𝒄𝒖𝒍𝒕𝒊𝒗𝒐 𝒅𝒂𝒔 𝒇𝒍𝒐𝒓𝒆𝒔 𝒅𝒆 𝒑𝒍á𝒔𝒕𝒊𝒄𝒐, Afonso Cruz

 

Autor: Afonso Cruz
Título: O cultivo de flores de plástico
N.º de páginas: 107
Editora: Companhia das Letras
Edição: Novembro 2023
Classificação: Teatro
N.º de Registo: (3537)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐



Em O cultivo de flores de plástico, Afonso Cruz coloca em acção quatro personagens sem-abrigo - Jorge, Senhora de Fato, Couraçado Korzhev e Lili, que por razões diversas perderam a capacidade de sonhar.
No decorrer das nove cenas, o leitor acompanha a conversa destas quatro pessoas que vivem na rua privadas de conforto, de emprego, de família, de carinho, que aceitam uma refeição de caridade.
“Aproxima-se um carro. Os sem-abrigo estão todos em fila.” É este o início da peça, da primeira didascália.

Afonso Cruz é corrosivo ao expor a vida destes homens e mulheres, personagens-tipo de uma sociedade insensível, cega e egoísta. Os pequenos episódios narrados espelham bem o abandono, a indiferença e o esquecimento a que foram, e são ainda, votados.

A miséria em que vivem torna-os descrentes, excluídos, invisíveis. Jorge, um dia, ao ver reflectida a sua imagem numa montra, percebe que é invisível aos olhos dos outros: “ No fundo, é isso. Ninguém nos vê. Somos invisíveis. A miséria é uma poção de invisibilidade.” (p. 38)
Afonso Cruz é exímio na forma como recorre à ironia para despertar emoções e alertar para este problema cada vez mais extremo e premente.
“O cultivo das flores de plástico” denota a indiferença, a falsidade de todos os que têm por obrigação devolver a dignidade a estas pessoas, de todos os que assobiam para o lado, que ignoram, que fingem desconhecer esta vergonha social. É ainda Jorge que refere “ Parece que os povos estão separados por um espelho. A esquerda de uns é a direita de outros.” (p. 50)

Ao terminar este livro não ficamos indiferentes à dor, à infelicidade e à solidão destas pessoas.
Captamos a mensagem e questionamo-nos sobre o que andamos a fazer nesta vida? o que ambicionamos para o futuro? O que pretendemos cultivar? O que andamos a regar?
“cactos (…) Cheios de céu aberto , pessoas cheias de ar livre.(…) muitas portas no mundo?” (p. 41)

ou

“flores de plástico (…) coisas que não servem para nada. É tudo plástico. E nós regamos essas flores e esperamos que cheirem a coisas boas.” (p. 61)

Ficam as perguntas…




28 maio, 2024

𝒑𝒂𝒓𝒕𝒐 𝒄𝒐𝒎 𝒐𝒔 𝒗𝒆𝒏𝒕𝒐𝒔, de Lília Tavares

 


Autora: Lília Tavares
Título: parto com os ventos
N.º de páginas: 
Editora: Modocromia
Edição: Abril 2023
Classificação: Poesia
N.º de Registo: (3480)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐



Já o escrevi em anteriores apreciações e volto a reforçar que a escrita de Lília Tavares é de uma extrema sensibilidade e muito sensorial.
Desde logo, nos dois primeiros poemas, o leitor fica cativo às palavras e capta a simbiose entre a escrita e o corpo; entre a escrita e os sentidos “Sou página em branco / onde a tinta dos teus gestos / me desenha e prolonga.”; entre a natureza e o corpo e os sentimentos.

Há o desejo de corporizar as aves, as árvores, a noite, o vento…
Há uma busca incessante de si, do outro, através do tempo, das coisas, das palavras…
Há o apelo saudoso do outro, do amor, da outra parte de si…
Há lamentos de solidão, de espera, de choro, de desejo…
Há madrugadas longas de sonhos inacabados, memórias vivas, desejos de noites quentes e de abraços, ausências, vazios…
“(…)
o desejo tem memória”

Retenho ainda este verso com o qual me identifico muito: “A saudade tem degraus de silêncio.”
Neste livro, a saudade tem efectivamente muitos degraus: é espera com o vento… é partida com o vento… é incerteza, é desejo, é amor… A saudade é mar… é sonhar momentos futuros, desejos íntimos… A saudade é amar com ternura, é beber o vento, é solidão…
Lília Tavares ao escrever poemas curtos, alguns de um só verso, como o que citei, desconstrói uma panóplia de emoções; evoca vivências e memórias pinceladas de silêncios, desejos, amores; acaricia palavras, versos, poemas; convoca o tempo; parte com o vento e preenche páginas emotivas e sentidas.

“Sou ilha e barco,
tu a margem que espera.

Parto com os ventos.”

Falta referir que o livro é um objeto muito bonito (como todos os livros da Lília) tem desenhos maravilhosos, muito simples, diria, minimalistas, mas que complementam a escrita de forma sublime.



23 maio, 2024

𝑨 𝑻𝒓𝒊𝒍𝒐𝒈𝒊𝒂 𝒅𝒆 𝑪𝒐𝒑𝒆𝒏𝒉𝒂𝒈𝒂, de Tove Ditlevsen

 


Autora: Tove Ditlevsen
Título: A Trilogia de Copenhaga
Tradutor: João Reis
N.º de páginas: 390
Editora: D. Quixote
Edição: Setembro 2022
Classificação: Autobiografia / Memórias / Romance
N.º de Registo: (3424)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


Três partes constituem este livro: Infância, Juventude e Relações Tóxicas. De índole autobiográfica, Tove Ditlevesen é a protagonista desta narrativa pungente e intensa.
Ela convida-nos a “entrar em sua casa” e a acompanhá-la nos bons e maus momentos da sua vida. Com ela e através de uma escrita aberta, sem evasivas, muito franca e avassaladora, exploramos a sua infância, num bairro operário da capital dinamarquesa; a juventude com as suas primeiras experiências sexuais e profissionais bem como a conquista da independência com o sucesso do seu primeiro livro de poesia; as suas relações com a família, amigos, colegas, namorados e maridos e a dependência de fármacos que a levam ao colapso.

Tove revela-nos uma vida infeliz e conturbada, mesmo depois de obter sucesso e fama com os seus livros e muito inconstante no seu relacionamento com as pessoas; descreve-nos experiências perturbadoras, como o desconforto das primeiras relações sexuais, a interrupção de duas gravidezes e a descoberta dos efeitos dos químicos no seu sangue.

“Relaxa, disse ele, vou dar-te uma injeção. Sorri-lhe, grata, e o fluido entrou-me na corrente sanguínea, elevando-me ao único nível onde eu queria existir. Deitou-se comigo, como era seu hábito, quando o efeito estava no auge. Tomou-me com brusquidão, sem carinho ou preliminares e, depressa me largou. Não senti nada.” (p. 335)

A Trilogia de Copenhaga é um livro fabuloso que vai mais além do que a narração de uma vida atormentada, a de Tove Ditlevsen. É o embate doloroso entre duas dependências: a da escrita e a dos fármacos. Mas é também um testemunho histórico-social de um país nos anos 60.



15 maio, 2024

𝑩𝒐𝒎 𝑫𝒊𝒂 𝑪𝒂𝒎𝒂𝒓𝒂𝒅𝒂𝒔, de Ondjaki

 


Autor: Ondjaki
Título: Bom Dia Camaradas
N.º de páginas: 143
Editora: Caminho
Edição(5.ª): Novembro 2021
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3541)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐



Estas são as primeiras palavras do livro que nos agarra desde o início:

"Se, quando me acordavam, eu me lembrasse do prazer do matabicho assim de manhãzinha, eu acordava bem-disposto. Matabichar cedo em Luanda, cuia! Há assim um fresquinho quase frio que dá vontade de beber leite com café e ficar à espera do cheiro da manhã. Às vezes mesmo com os meus pais na mesa, nós fazíamos um silêncio. Se calhar estávamos mesmo a cheirar a manhã, não sei, não sei."

Bom Dia Camaradas é um romance delicioso. Ondjaki conduz-nos para a sua Luanda dos anos 80. Acompanhamos Ndalu, a criança que com uma linguagem muito própria e encantadora e uma visão ingénua (será?) nos vai narrando o seu entendimento da vida angolana e, por vezes, da portuguesa e nos vai questionando sobre a situação do país, contrapondo o antes e o depois da independência.

“- … tu gostavas quando os portugueses estavam cá?
- É o quê, menino?
- Sim, antes da independência, eles é que mandavam cá. Tu gostavas desse tempo?
- As pessoas dizem que o país estava diferente… não sei…” (p. 17)

É fascinante a escrita de Ondjaki que nos inebria com um linguajar muito próprio e poético. O recurso a metáforas e a sinestesias enriquece e fantasia a realidade difícil; a criação de personagens maravilhosas retrata com subtileza a sociedade angolana. Todas desempenham um papel fulcral no crescimento e na formação de Ndalu.

“Quando o camarada João veio nos buscar, o calor já tava insuportável. Olhei para as árvores, os pássaros estavam lá sentadinhos, não se mexiam, também deviam estar a suar. Do outro lado da rua havia barracas a vender peixe seco, esse sim, quanto mais ficasse ao sol, melhor. Aquele cheirinho abriu-me o apetite, há quem não goste, mas eu acho que o peixe seco cheirava muito bem, parece sumo concentrado de mar.” (p. 63 – Sublinhado meu).

A leitura envolve-nos e imaginamos e sentimos os espaços, o mar “verzul”, o dia-a-dia, em casa e na escola, da criança viva, inteligente e curiosa, tão ávida de saber e de contar estórias. Ondjaki recorre, de forma sublime, à ingenuidade infantil para nos revelar a situação social, económica e política do seu país. Nada é referido explicitamente, mas o leitor consegue inferir facilmente o período narrado.

Recomendo vivamente a leitura deste livro. Diverti-me imenso com as estórias vividas pelo Ndalu com os seus amigos e professores, na escola e com os seus familiares e empregados, em casa.



12 maio, 2024

𝑷𝒂𝒖𝒍𝒂 𝑹𝒆𝒈𝒐 - 𝑨 𝑳𝒖𝒛 𝒆 𝒂 𝑺𝒐𝒎𝒃𝒓𝒂 - 𝑼𝒎𝒂 𝑭𝒐𝒓𝒎𝒂 𝒅𝒆 𝑶𝒍𝒉𝒂𝒓, de Cristina Carvalho

 


Autora: Cristina Carvalho
Título: Paula Rego - A Luz e a Sombra - Uma Forma de Olhar
N.º de páginas: 153
Editora: Relógio d'Água
Edição: Novembro 2023
Classificação: Biografia
N.º de Registo: (3511)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


Gosto dos romances biográficos escritos por Cristina Carvalho. Já li alguns e tenho outros em lista de espera. Este, e, apesar de ser o último publicado, teve de ultrapassar os que aguardam pacientemente a sua hora. É que também gosto da obra da Paula Rego. E cada vez que tinha de escolher a próxima leitura, este piscava-me o olho.

Adorei. O facto de Cristina Carvalho colocar os seus biografados a narrar a sua própria vida resulta muito bem. Este não foge à regra. Há contudo intervenções da escritora que, em diálogo com a narradora, acrescenta informação, emite opinião. Gosto desta abordagem.

Ao longo da leitura, deixamo-nos iludir que é mesmo a pintora que nos narra a sua história. Há uma maior intimidade, diria, com o leitor. Acompanhamos as suas dúvidas, as suas angústias, a sua raiva, os seus medos de forma intensa, tal como ela os viveu. Aceitamos as suas explicações e compreendemos bem melhor a sua obra.

Outro aspecto que me agrada bastante é a proximidade que se adivinha entre a escritora e a pintora. Não sei se conviveram, nem é importante, mas fica a sensação de ambas terem muito em comum (a Ericeira, a frontalidade, a liberdade e a paixão que revelam naquilo que fazem - uma na escrita e a outra na pintura e nos desenhos). Por vezes, questionei-me se não era a vontade e o pensamento da própria escritora que estava a ler. E essa capacidade de confundir o leitor torna a sua escrita fascinante.
Através do relato da vida de Paula Rego, registamos, simultaneamente, a vida de um país e sobretudo a condição da mulher.
“Nesses quadros, nas gravuras que desenhei, em tudo, tudo o que fiz na minha Arte onde represento, na maior parte das vezes de forma grotesca e brutal, a vida tal e qual é: grotesca e brutal, ainda que tome, por vezes, aspectos de porcelana fina enfeitada de pechisbeques-pessoas, pechisbeques-coisas, tudo fugaz e com pouco ou nenhum significado, Porque, para mim, os grandes significados foram, são, tudo o que consegui imaginar e transportar para as minhas telas.
Está lá tudo.” (p. 11)

Depois desta leitura, resta-me admirar a sua obra (conheço pouco e de forma supérflua); tentar descobrir nela tudo o que nos foi revelado; captar os silêncios, os gritos de dor, a angústia da sua existência. Ficou claro e bem claro que Paula Rego só pinta e desenha o que quer e quando quer. “

Recomendo muito a leitura deste brilhante tributo à mulher, à mulher artista que foi, e ainda é, Paula Rego. Cristina Carvalho refere no final que este livro “ não pretende revelar a intimidade da artista”, apenas faculta algumas vivências que permitem ao leitor imaginar a vida da artista. E foi muito bem conseguido.



06 maio, 2024

𝑨 𝑯𝒊𝒔𝒕ó𝒓𝒊𝒂 𝒅𝒆 𝑹𝒐𝒎𝒂, Joana Bértholo

 

Autora: Joana Bértholo
Título: A História de Roma
N.º de páginas: 306
Editora: Caminho
Edição: Setembro 2022
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3440)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


Sou sempre surpreendida com os livros de Joana Bértholo. Este não foi exepção. Com uma escrita poética, sensível, irreverente e provocadora, a autora conquista-nos com as várias histórias que integram A História de Roma.

Neste romance de “várias geografias”, erramos pelas ruas de Buenos Aires, de Berlim, de Marselha, de Beirute, de Lisboa onde os dois protagonistas se reencontram dez anos mais tarde e de Maputo.

No reencontro que dura dez dias, em Lisboa, os dois desenovelam memórias, nem sempre coincidentes, (“Ao sexto dia fiz esta experiência: seria a incompatibilidade das nossas recordações uma questão de distância? Geográfica, temporal, emocional?”(p. 199)), e, nesse recordar, a autora é exímia na narração dos acontecimentos vividos e inventados. Misturando tempos e açcões passados e presentes, o leitor deixa-se conduzir página após página e acompanha “os percursos que preenchem dez dias” definidos por Joana, a protagonista ou a escritora? É difícil discernir se acompanhamos a personagem ou a própria autora, já que ambas se chamam Joana, têm o prazer da escrita e da deambulação por geografias diversas e denotam preocupação ecológica. Pelo que as fronteiras entre realidade e ficção poderão ser muito ténues. Mas isso é importante? Não, não é.

O importante mesmo é apreciar a escrita e deixar-se inebriar pela história narrada, a história de amor vivida por um casal jovem e moderno “Ele e eu fomos próximos da forma desapegada e intermitente que é a única que tenho de ser próxima de alguém.”; pela forma como a narradora nos revela a sua decisão de não ser mãe, uma “não-mãe” por questões ambientais: “É fácil encontrar estudos que defendem que a maior contribuição para a redução da emissão de carbono de um indivíduo num país industrializado é não ter filhos” (p. 197); pela forma como se agarra à inevitável questão “Como foi que o nosso amor anoiteceu?”.

A História de Roma é um livro com várias camadas entrelaçadas que levanta imensas questões e nos faz reflectir sobre o mundo, a sociedade em que vivemos.
É um livro que revela uma história de amor (anagrama de roma) que, de lugar em lugar, descreve vivências, emoções, desejos, fantasias, encontros e desencontros, buscas obsessivas, mas é também a história da filha que nunca tiveram, ela, Joana, e ele, o rapaz e artista suíço que conheceu nas ruas de Buenos Aires.
“(…) acreditava que, se um dia fosse mãe, lhe daria o nome de lugar. (…) Odessa ou Roma, se rapariga”. (p. 11)

É, em suma, uma história de relações, de identidades, de lugares, de pessoas recuperada pelas memórias verídicas e imaginadas de Joana. Joana que até podia chamar-se Lisboa.

Recomendo muito a leitura deste livro, deste e de todos os que a autora já publicou.





05 maio, 2024

Mãe!

 

                                                                        Foto GR



mil estrelas no colo

mãe, eu sei que ainda guardas mil estrelas no colo.
eu, tantas vezes, ainda acredito que mil estrelas são
todas as estrelas que existem.


in A Casa, a Escuridão, José Luís Peixoto