30 maio, 2025

𝑨 𝑳𝒆𝒃𝒓𝒆 𝒅𝒆 𝑽𝒂𝒕𝒂𝒏𝒆𝒏, de Arto Paasilinna

 



Autor: Arto Paasilinna
Título: A Lebre de Vatanen
Tradutor: Carlos Correia Monteiro de Oliveira
N.º de páginas: 143
Editora: Relógio d'Água
Edição: Setembro 2009
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3696)





OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


A leitura de A Lebre de Vatanen foi-me proposta pelo clube de leitura – Era uma Voz, de Afonso Cruz. Não conhecia o autor, mas criei grandes espectativas porque, nas várias livrarias (sempre esgotado) a que me dirigi para o adquirir, só me falaram muito bem do autor e dos seus livros.

Parti, assim, à descoberta de Paasilinna com imensa curiosidade. Confesso que fui, de imediato, conquistada. Primeiro, pela escrita e, depois, pela história de Vatanen, o jornalista protagonista que vive em Helsínquia.

Não vou esmiuçar os motivos que o levam a mudar radicalmente de vida. Aconselho que desfrutem da leitura do livro e o descubram por iniciativa própria. Apenas, posso indicar que a partir de certo dia, ele e uma lebre iniciam uma “viagem” por terras finlandesas e com uma incursão na União Soviética, país fronteiriço. São múltiplas as peripécias que ambos vivem, na floresta, nos lugarejos, nas montanhas. São múltiplas as tarefas temporárias que Vatanen vai ter de desempenhar para poder sobreviver. É riquíssima a transformação, sobretudo interior, da personagem. Nem tudo é fácil.

A narrativa contém umas pinceladas de realidade. Por exemplo, Kekkonen foi presidente da Finlândia, durante 26 anos consecutivos, de 1956 a 1982; as localidades citadas; o nome do protagonista “Vatanen” é o nome de um famosíssimo piloto de rali. Poder-se-á intuir que a atribuição deste nome ao  foi intencional, se tivermos em conta algumas aventuras (risco e audácia) descritas e, de certa forma, como uma homenagem ao piloto. (especulação minha)

Na escrita simples e fluída transparecem a beleza da natureza e o rigor do clima nórdicos, mas também a integridade e a audácia de Vatanen. A sintonia entre escrita, natureza e protagonista resulta numa narrativa brilhante e encantadora. Ao longo das páginas e das aventuras somos convidados a questionar-nos sobre as nossas opções de vida; nomeadamente, o respeito pelo outro, pela liberdade individual, mas também, o sentido de responsabilidade para com a natureza, os animais; a solidariedade e a empatia.

Paasilinna, recorrendo, a histórias curtas, umas divertidas, outras mais absurdas, faz uma sátira à vida moderna, à monotonia da rotina das cidades, ao cumprimento de horários, às responsabilidades de um emprego e de uma família, em suma, a tudo aquilo que o acorrenta e sufoca. Em contrapartida, e com sentido de humor, apresenta-nos o renascimento de um homem que, na companhia de uma lebre, descobre um país de contrastes cultural e ambiental, descobre a mesquinhez humana, o desapego do homem para com a natureza, mas também a amizade, a empatia, a solidariedade. As aventuras de Vatanen transformam-se numa viagem de auto-conhecimento, de conquista de liberdade, de amadurecimento.

É um livro que nos faz reflectir sobre o sentido da vida. O que importa realmente. No epílogo, o autor refere-se a Vatanen da seguinte forma: “ a história pessoal de Vatanen e a sua maneira de agir revelam-no como um revolucionário, um ser autenticamente subversivo, e é aí que reside o segredo da sua grandeza.” (p. 142.
Recomendo.



26 maio, 2025

Festival de Cannes 2025

 


A 78.ª Edição do Festival de Cannes decorreu de 13 ao dia 24 de maio de 2025.
A actriz francesa Juliette Binoche presidiu o júri da competição oficial.




Palma de Ouro: Un Simple Accident, de Jafar Panahi 

Grande Prémio: Sentimental Value, de Joachim Trier

Prémio do Júri ex-aequo: Sirât, de Oliver Laxe; Sound of Falling, de Mascha Schilinski

Prémio Especial do Júri: Resurrection, de Bi Gan

Melhor Direcção: Kleber Mendonça Filho, por O Agente Secreto

Melhor Argumento: Jean-Pierre e Luc Dardenne, por Jeunes Mères

Melhor Actriz: Nadia Melliti, por La Petite Dernière

Melhor Actor: Wagner Moura, por O Agente Secreto

Prémio da Crítica (FIPRESCI): O Agente Secreto, de Kleber Mendonça Filho

Prix des Cinémas Art et Essai: O Agente Secreto 

Queer Palm (Láurea LGBTQIAPN+)
: La Petite Dernière, de Hafsia Herzi

Caméra d’Or (Melhor Filme de Estreante): The President’s Cake, de Hasan Hadi (Iraque), com menção honrosa para My Father Shadow

Prix Un Certain Regard: A Misteriosa Mirada do Flamingo, de Diego Céspedes

Palma de Curta-Metragem: I’m Glad You’re Dead Now, de Tawfeek Barhom (Palestina), com menção especial para Ali

Prémio do Júri Ecumênico: Jeunes Mères, dos irmãos Dardenne

Prémio de Cidadania: It Was Just an Accident, de Jafar Panahi

Prémio Ecoprod: Jeunes Mères, dos irmãos Dardenne

Prémio Œil d’Or (Melhor Documentário): Imago, de Déni Oumar Pitsaev



25 maio, 2025

𝑹𝒐𝒎𝒂𝒏𝒄𝒆 𝒅𝒂 𝑹𝒂𝒑𝒐𝒔𝒂, de Aquilino Ribeiro



Autor: Aquilino Ribeiro
Título: Romance da Raposa
Ilustrador: Benjamim Rabier
N.º de páginas: 188
Editora: Bertrand Editora
Edição: Agosto 1996
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3643)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


O clássico juvenil Romance da Raposa, de Aquilino Ribeiro narra as aventuras de Salta-Pocinhas, uma “raposeta matreira, fagueira, lambisqueira - senhora de muita treta”.

Trata-se de uma leitura deliciosa não apenas para as crianças, mas também para os adultos. A linguagem rica e viva do mestre Aquilino Ribeiro aliada a um ritmo e a uma sonoridade musicais (recurso a rimas, métrica e aliterações) e a um sentido de humor apurado fascina o leitor e agarra, seguramente, as crianças (com mais de 10 anos, segundo o autor) com as travessuras da raposinha.

Li este livro há muito, muito tempo. Já não tinha memória de muitas das suas traquinices. Lê-lo, agora, com outro entendimento, é muito mais prazeroso. Deixei-me conduzir pelas palavras desenvoltas e sábias de Aquilino que usa com mestria a matreirice da heroína para criticar a sociedade da sua época. Ora vejamos, a raposa “delambida, atrevida, mas precavida, vai gerir a sua longa vida com o propósito de matar a fome e alimentar a alma, nem que para isso, tenha de enganar homens e bichos, corromper, assassinar e gabar-se orgulhosamente. Metáforas perfeitas que se ajustam, também, aos dias de hoje.

Apenas, acrescentar que esta edição da Bertrand inicia, em jeito de Introdução, com a carta que o autor escreveu ao seu filho Aníbal (Natal de 1924) a explicar por que decidiu escrever este livro. Ficamos, ainda, a saber que retratou a raposa sem falsificações, tal como vem na Fábula do Mestre Esopo.



21 maio, 2025

𝑨 𝑷𝒂𝒊𝒙ã𝒐 𝒔𝒆𝒈𝒖𝒏𝒅𝒐 𝑪𝒐𝒏𝒔𝒕𝒂𝒏ç𝒂 𝑯., de Maria Teresa Horta

 

Autora: Maria Teresa Horta
Título: A Paixão segundo Constança H.
N.º de páginas: 299
Editora: Bertrand Editora
Edição: Novembro 2010
Classificação: Romance
N.º de Registo: (Empréstimo)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


A Paixão Segundo Constança H., de Maria Teresa Horta (MTH), é um romance poderoso e perturbador que mergulha no universo feminino, tal como em toda a sua obra, explorando temas como amor, ódio, loucura, traição, identidade e morte. A narrativa acompanha a paixão de Constança H., e explora a sua transformação emocional após descobrir a traição de Henrique H., o seu marido, levando-a a um estado intenso de emoções e reflexões que lhe permite desenvolver um obsessivo desejo de vingança. A transformação interior de Constança H. é levada ao limite, marcada pela dor da traição e pela obsessão erótica do desejo e do corpo. “ (E o desejo? Que dizer do desejo; sempre a formular o corpo…)” (p.79)

A obra está estruturada por textos breves entre páginas brancas e integra poemas, múltiplas epígrafes colocadas entre parêntesis, títulos e citações de outras obras que espelham paixões, registo de sonhos e de alucinações, cartas ao marido, excertos de diários, referências a obras de escritoras que se alinham com o seu pensamento, como Clarice Lispector, Sylvia Plath, Mariana Alcoforado, Virginia Woolf, Maria Velho da Costa, Marguerite Duras, Florbela Espanca, …
Todos estes fragmentos funcionam como ecos de verdade e evidenciam a fragmentação do “eu”, a busca de identidade perdida na dor que a deixará “consumir pela paixão até ao sangue” (p. 295), a perda e o ódio que a conduzirão à loucura, ao abismo.
“E a dor continuava, tumefacta. A sensação de perda envenenando-a, espalhando a morte dentro de si.
O ódio.
O começo do ódio a engrossar, sem remédio, no seu peito, tentacular, repetitivo (…)”. (p. 23)

Ao longo das páginas, assistimos ao grito dilacerante de uma mulher traída e vulnerável. Assistimos ao medo da sua “desorganização interior”, ao medo dos tratamentos e dos choques eléctricos, ao medo dos seus fantasmas. Assistimos à paixão doentia de Constança H.. Assistimos ao crescendo da sua loucura e ficamos arrasados.

A escrita poética e erótica de MTH é marcada pela sua sensibilidade e pela profundidade com que aborda as relações humanas e os desafios da mulher na luta contra as convenções sociais, nomeadamente na forma de encarar a sexualidade. Ela subverte a ideia de pecado associada ao acto sexual e exalta livremente o corpo e a descoberta do prazer feminino.

Pelo título e pela epígrafe inicial posso intuir que este romance estabelece um diálogo com A Paixão Segundo G.H., de Clarice Lispector. Como ainda não o li, fica a promessa de o fazer brevemente para descobrir as consonâncias e dissonâncias presentes nas duas obras. Vai ser, certamente, uma leitura prazerosa porque também gosto da escrita de Clarice Lispector.


18 maio, 2025

𝑪𝒐𝒎𝒃𝒐𝒊𝒐𝒔 𝑹𝒊𝒈𝒐𝒓𝒐𝒔𝒂𝒎𝒆𝒏𝒕𝒆 𝑽𝒊𝒈𝒊𝒂𝒅𝒐𝒔, de Bohumil Hrabal

 

Autor: Bohumil Hrabal
Título: Comboios Rigorosamnete Vigiados
Tradutora: Anna Almeida
N.º de páginas: 128
Editora: Antígona
Edição: Fevereiro 2022
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3376)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


Com Comboios Rigorosamente Vigiados, Bohumil Hrabal transporta-nos para uma pequena estação ferroviária Checa. Decorria o ano 1945, mais concretamente, os últimos dias da ocupação alemã da Segunda Guerra Mundial.
A narrativa acompanha o desenrolar diário das tarefas do chefe da estação, do sinaleiro, da telegrafista e do aprendiz que, entre chegadas e partidas de comboios, uns mais rigorosamente vigiados que outros, vão vivendo episódios de rotina, de resistência, entre outros bem divertidos e inesperados que vos convido a descobrir.

Apesar de pequeno, o livro é intenso pela forma como o autor aborda a vida destas personagens e nos narra o enquadramento histórico da ocupação, mas sobretudo da resistência e da coragem de alguns habitantes, nomeadamente, do jovem aprendiz, Milos Hrma, tal como o seu avô o fizera antes.
“O meu avô foi andando estrada fora com os olhos fixos no primeiro tanque, que encabeçava a guarda avançada daquelas tropas motorizadas (…)” (p. 11)
Poder-se-à intuir que o autor checo pretendeu erigir um louvor à resistência patriótica ao fazer explodir um comboio dos ocupantes nazis que transporta armamento, é bem possível, mas penso também, que ao dar relevo, com muito humor, à iniciação sexual do jovem aprendiz , destaca a idade com que muitos jovens participavam na guerra.

Sendo um livro que aborda questões relacionadas com a ocupação alemã, acaba por se tornar numa leitura saborosa porque os assuntos são tratados com subtileza e inteligência.
A escrita simples, mas profunda, flui agradavelmente. Sorrimos perante as hilariantes, porque inesperadas, histórias vividas na pacata estação.

15 maio, 2025

𝑪𝒂𝒓𝒕𝒂 𝒂 𝑩𝒐𝒔𝒊𝒆, de Oscar Wilde

 


Autor: Oscar Wilde
Título: Carta a Bosie
Tradutora: Maria Célia Coutinho
N.º de páginas: 108
Editora: Nova Vega
Edição (3.ª): 2022
Classificação: Cartas
N.º de Registo: (3564)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐



Albert Camus referiu-se a esta carta como “um dos mais belos livros que nasceram do sofrimento de um homem. Concordo inteiramente e vou tentar expor a minha apreciação.

Carta a Bosie é um texto de grande carga emocional e filosófica. Escrita durante o seu encarceramento em Reading, condenado por sodomia, é um enorme desabafo de introspecção e dor, mas também de lucidez e auto-conhecimento. Oscar Wilde expõe, de forma brutalmente honesta, as suas reflexões sobre o amor, a traição, o ódio, o sofrimento, a arte e a espiritualidade, além de nos facultar uma análise profunda sobre a sua relação com Lorde Alfred Douglas, isto é, Bosie.
Famoso e reconhecido pelo seu talento, Wilde apaixonou-se perdidamente por Douglas, um jovem vaidoso e mimado de hábitos caros, sofisticados e fúteis.

A sua escrita funciona como uma catarse, um modo de lidar com a humilhação, o sofrimento e a perda (“perdera o nome, a posição, a felicidade, a liberdade, a riqueza” e a mulher e os filhos). A angústia é palpável e intui-se como a desgraça de estar preso molda a sua visão sobre a vida, o amor e até sobre si próprio. A honestidade das palavras torna a crítica dirigida a Bosie, muito feroz. Wilde descreve-o como ingrato, egoísta, preguiçoso e como a principal causa da sua ruína “tanto do ponto de vista intelectual como ético”.

Carta a Bosie reflecte uma análise brutal sobre o amor, o poder e a manipulação. Wilde percebe que a sua devoção não foi correspondida de forma sincera e que Bosie se aproveitou tanto do amor que lhe foi dedicado como dos privilégios (estatuto e dinheiro) que essa relação lhe proporcionou. Essa revelação, aliada ao sofrimento físico e emocional do período na prisão, torna a carta ainda mais angustiante e implacável.

Wilde, exausto e devastado, não se poupa na crítica, lamenta não apenas a sua derrocada, mas também a cegueira que o impediu de perceber, em tempo útil, a verdadeira natureza daquele relacionamento. Mas, ao mesmo tempo, demonstra um certo desejo de que Bosie possa transformar-se. Wilde oscila entre o desencanto e a esperança, entre o rancor e o arrependimento, entre a racionalidade de quem vê a verdade e a fragilidade de quem ainda acredita no poder do amor.
"As pessoas cujo desejo é o da sua própria realização nunca sabem para onde estão a caminhar (…) conhecer-se a si próprio. Esta é a primeira realização do conhecimento. Mas reconhecer que a alma de um homem é incognoscível é a última realização da sabedoria. O mistério último somos nós próprios.” (p. 81)

Em suma, esta carta tão fascinante, tão intensa e pessoal é um testemunho poderoso de dor, arrependimento e reflexão, e um dos textos mais marcantes da literatura auto-biográfica. Wilde parece alcançar algum alívio ao expor a sua dor e a sua frustração, como se ao verbalizar tudo finalmente conseguisse distanciar-se emocionalmente da relação. No fundo, Wilde não escreve apenas sobre Bosie, mas sobre si próprio, sobre a sua ingenuidade e a necessidade de encontrar sentido no sofrimento.


12 maio, 2025

𝑨 𝑸𝒖𝒆𝒅𝒂 𝒅𝒖𝒎 𝑨𝒏𝒋𝒐, de Camilo Castelo Branco

 


Autor: Camilo Castelo Branco
Título: A Queda dum Anjo
N.º de páginas: 175
Editora: Aletheia / Expresso
Edição: Julho 2016
Classificação: Novela
N.º de Registo: (3057)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐


Actualíssimo. A sátira dos costumes políticos e sociais em A Queda dum Anjo (1865) assenta como uma luva nos dias de hoje.

Calisto Elói de Silos e Benevides de Barbuda, 44 anos, morgado transmontano conservador e de verve erudita é o protagonista. Amante dos clássicos ocupa o seu tempo mergulhado nos livros antiquíssimos, fechado na sua biblioteca. Eleito deputado pelo círculo de Miranda muda-se para Lisboa e deixa a sua mulher e prima, a morgada D. Teodora Barbuda de Figueiroa, na terra a cuidar dos bens.
O deputado conservador e defensor do passado, acérrimo crítico ao progresso e às inovações e modas causou grande impacto no Parlamento aquando da sua primeira intervenção. Aplaudido por uns e gozado por outros quer pela linguagem quer pela aparência, Calisto não se intimida, quando um deputado opositor “lhe observou o arcaísmo do traje” e outro gozou com “as botas aguçadas no bico”. Cala-os com sabedoria e ironia.
“Estas passagens, significativas do salgado espírito do provinciano, sobredoiravam a reputação que o trazia nas boas graças da fidalguia realista.” (p. 38)

Com o decorrer da sua estada em Lisboa, Calisto, o anjo, vai perder a pureza da vida provinciana e vai tornar-se homem, ao deixar-se moldar pelos costumes que imperam na capital. Vai envolver-se numa relação com uma viúva, ainda prima afastada, oriunda do Brasil e sucumbe aos vícios da modernidade, deixando-se corromper pelo luxo e pelo prazer.

A temática desta obra centra-se em dois aspectos, na minha opinião.
O primeiro, centra-se na vacuidade do discurso parlamentar e nos excessos linguísticos que evidenciam a presunção de certos deputados, como o Dr. Libório de Meireles. Este tipo de “retórica florida” que indispõem e irritam o protagonista, permite a Camilo Castelo Branco ridicularizar os deputados sem moral e sem talento. Vejamos como ele se serve de Calisto, que diz as coisas à moda velha, com correcção e saber, no parlamento:
“(…) Tomo a liberdade de perguntar a V. Ex.ª se as locuções repolhudas do ilustre colega são parlamentares; e, se o são, peço ainda a mercê de se me dizer onde se estudam tais farfalhices.” (p. 50).
O segundo, foca-se na fragilidade e imperfeição humanas em relação às ideologias individuais e colectivas, mas também à natureza dos casamentos sem amor e às paixões amorosas.
Calisto, o morgado que casara sem amor com uma prima, senhora escrupulosa nos seus deveres domésticos para com o marido e a casa, sempre combateu os seus impulsos de jovem refugiando-se, excessivamente, nas suas leituras. Porém, em Lisboa, acaba por ceder aos impulsos do coração. Conhece, finalmente, o amor e experimenta o ciúme e o desprezo.
“ (…) sentiu no lado esquerdo do peito, entre a quarta e a quinta costela, um calor de ventosa, acompanhado de vibrações elétricas, e vaporações cálidas, que lhe passaram à espinha dorsal, e daqui ao cérebro, e pouco depois a toda a cabeça, purpureando-lhe as maçãs de ambas as faces com o rubor mais virginal.” (p. 73)
(Não é uma descrição maravilhosa? Eu adorei!)

O “anjo” desprezado, perde todas as suas convicções. Até que surge na sua vida a viúva Ifigénia, também ela mal-amada e desamparada.
É neste processo de transformação que a auto-ironia do autor se evidencia, facto que enriquece sobremaneira a narrativa.

Camilo Castelo Branco interpela amiúde o leitor e leva-o a uma identificação com o protagonista, tornando-o cúmplice. Com esta estratégia, pretende mostrar que a queda do anjo é, afinal, a libertação de Calisto, o caminho da felicidade e não da imoralidade.
“Na qualidade de anjo, Calisto sem dúvida seria mais feliz; mas na qualidade de homem a que o reduziram as paixões, lá se vai concertando menos mal com a vida.” (p. 175).
Esta citação final revela evidentes marcas pessoais.

Concluo, reafirmando o meu deleite em ler CCB. Considero-o exímio na novela passional e na sátira social do Romantismo português.


09 maio, 2025

A Agulha bailarina e o Piano encantador

 

 Foto criada por IA - Copilot | 9.05.2025

                                                 

     Na sala de estar de uma casa acolhedora, iluminada pelo suave brilho do amanhecer, onde o aroma de chá perfuma o ar e as paredes guardam memórias de gerações, vive um piano imponente de madeira polida, com teclas de marfim brilhantes que já sentiram o toque de várias gerações. Ele é o coração do espaço, reverenciado pela sua capacidade de evocar emoções profundas.
     Ao lado, numa pequena cesta de costura repousa um bastidor com um bordado e uma agulha pequena, silenciosa e presa no tecido.
Nessa casa, as mãos que enfiam, movem e orientam a agulha são as mesmas que acariciam e dedilham as teclas de marfim. Mãos finas, alegres e cheirosas. As mãos de Maria Eduarda, a senhora da casa.
     A agulha e o piano gostam delas, sentem-se embevecidos perante tanta agilidade e segurança.
     Porém, certo dia, ambos pressentem um nervosismo e uma desmesurada insegurança: a agulha ora fica suspensa e pensativa, ora desliza e cai; o piano, maltratado, solta sons irregulares, desafinados. Esta desorientação prolonga-se no tempo, até que, uma manhã, a sala permanece sombria e    silenciosa.

    A agulha que sempre aspirou a ser bailarina ao som do piano que tanto admira e, secretamente, inveja, suspira de inacção e tédio. O piano, por sua vez, sente-se inútil e solitário. As suas teclas há muito que não ressoam melodias, que não são acariciadas, que não ouvem aplausos.

     Cansada de esperar, a agulha começa a treinar alguns passos de dança, em bicos de pé e devagarinho salta para a direita, salta para a esquerda, experimenta o plié, o tendu, o rond de jambe… Suspira e recomeça…
    Mas, certo dia, enquanto ensaia os seus passos sobre o pano de bordado esticado, ouve um gemido, um som mágico vindo do piano, ali mesmo ao seu lado. É uma melodia triste e encantadora. A agulha bailarina não resiste — salta para o chão de madeira e desliza até ele, atraída pela música como se fosse um apelo do destino.
    - Olá, senhor Piano, diz a agulha, numa voz fina, mas firme.
O piano surpreendido, suspende os seus sons, e responde gentilmente.
     - Olá, senhora Agulha. O que a traz até mim?
   - Ouvi a sua música e não resisti. Sabe, estou angustiada porque não tenho ninguém com quem conversar, nem nada para fazer. Farta de ficar presa, até já comecei a treinar uns passinhos de dança para ocupar o tempo e sacudir o corpo. Se não for assim, enlouqueço e …
   - Pois é… sinto o mesmo, atalhou o piano. Confesso que ouvi uma certa agitação e foi por esse motivo que comecei a mover as teclas.
  - Importa-se que suba até aí para conversarmos melhor? Pergunta a agulha.
  - Suba, suba. Terei todo o prazer em conhecê-la. Retorque o piano, esboçando um sorriso.
     A Agulha esguia e graciosa, não se faz rogada, sobe por aí acima e, sem resistir, começa imediatamente a esboçar uns passinhos hesitantes…
Nesse instante, Piano, o velho cavalheiro, sente algo que jamais havia sentido. A pequena Agulha, com a sua elegância delicada de movimentos leves, desliza sobre as suas teclas como uma estrela num céu escuro, transformando cada nota num afago melodioso, numa poesia viva.

    Nesse dia, entre uma Agulha e um Piano nasceu uma amizade improvável, assente na cumplicidade e no desejo de manter vivo o que, inexplicavelmente, se tornou sombrio.
  Dia após dia, semana após semana, a Agulha bailarina e o Piano encantador tornam-se inseparáveis. Ela dança, ele toca. Ele tange, ela baila. Ele afina-se, ela eleva-se. Juntos compõem harmonias que ecoam pela sala desabitada.

   E assim, juntos, emergem por entre as cortinas da solidão e do abandono, da dor e do luto. Juntos criam a mais bela dança, uma sinfonia de amor entre a música e o movimento. Um amor selado na melodia do tempo.




A agulha bailarina
improvisa e treina
voltas e reviravoltas

intensamente

O piano encantador
desafina a dor
nas teclas brancas e pretas

perdidamente

A agulha e o piano
juntos
tocam e volteiam
melodias breves e soltas

apaixonadamente


GR

08 maio, 2025

Conclave, de Edward Berger

 

2024 | 120 m | Suspense | M12 | Reino Unido e Estados Unidos
Realizador: Edward Berger
Argumento: Peter Straughan, Robert Harris
Elenco: Ralph Fiennes, Stanley Tucci, John Lithgow, Isabella Rossellini 


Conclave, do realizador Edward Berger (“A Oeste Nada de Novo”), mostra-nos um dos acontecimentos mais sigilosos e antigos do mundo - a escolha de um novo Papa. O Cardeal Lawrence é encarregue de dirigir este processo secreto após a inesperada morte de um Papa muito estimado. Com os líderes mais poderosos da Igreja Católica de todo o mundo reunidos e encerrados entre as paredes do Vaticano, Lawrence encontra-se no centro de uma conspiração e descobre um segredo que poderá abalar os alicerces da Igreja.

Conclave recebeu oito nomeações ao Óscar 2025, incluindo Melhor Filme e venceu Melhor Argumento Adaptado; seis nomeações aos Globos de Ouro 2025, incluindo Melhor Filme de Drama e venceu Melhor Argumento, e 12 nomeações ao BAFTA 2025, onde venceu como Melhor Filme e Melhor Argumento Adaptado.


Opinião:

Edward Berger adapta o romance de Robert Harris e cria um filme impressionante, focando-se na intriga decorrente do processo de escolha de um novo papa. O cardeal Thomas Lawrence (Fiennes), como decano, dirige o conclave e vê-se envolvido nos segredos e escândalos que se abatem sobre vários cardeais candidatos.

O filme apresenta uma excelente conjugação entre o desempenho das personagens e o enredo que levanta questões de moralidade  sobre a estrutura e o poder da Igreja, a ambição e a verdadeira fé. Mostra os conflitos internos sobre o processo de selecção que ocorre no Vaticano  e destaca os jogos de influência bem intrincados, plenos de rivalidades. Assistimos a uma exploração profunda da fé, do interesse e da ambição de cada um, na medida em que o filme proporciona uma reflexão sobre a transparência das atitudes e das decisões.  

A banda sonora e a fotografia elevam a atmosfera tensa que se verifica durante a investigação e as votações.


04 maio, 2025

Para Sempre | Carlos Drummond de Andrade







Por que Deus permite
Que as mães vão-se embora?
Mãe não tem limite
É tempo sem hora
Luz que não apaga
Quando sopra o vento
E chuva desaba

Veludo escondido
Na pele enrugada
Água pura, ar puro
Puro pensamento
Morrer acontece
Com o que é breve e passa
Sem deixar vestígio

Mãe, na sua graça
É eternidade
Por que Deus se lembra
Mistério profundo
De tirá-la um dia?

Fosse eu rei do mundo
Baixava uma lei
Mãe não morre nunca
Mãe ficará sempre
Junto de seu filho
E ele, velho embora
Será pequenino
Feito grão de milho