Autor: José Saramago
Título: A Jangada de Pedra
N.º de páginas: 330
Editora: Caminho
Edição: Outubro 1986
Classificação: Romance
N.º de Registo: (329)
OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐
E se a terra que pisamos decidisse partir? Em 1986, ano em que Portugal e Espanha aderem à então Comunidade Económica Europeia (CEE), José Saramago publica A Jangada de Pedra, romance que transforma a Península Ibérica numa ilha errante. A separação literal da Europa torna-se metáfora da sua posição periférica, da identidade em risco, da escuta que se exige.
Neste romance, Saramago apresenta-nos uma alegoria poderosa sobre pertença e deslocação. O enredo narra a ruptura física da Península Ibérica com o continente europeu e acompanha seis personagens — Joana Carda, José Anaiço, Joaquim Sassa, Pedro Orce, Maria Guavaira e um cão — que, por razões diversas, se sentem ligadas ao fenómeno. Cada uma, com o seu mistério e origem distinta, acaba por cruzar-se numa travessia insólita pela península à deriva.
“Chegou o momento de dizer, agora chegou, que a Península Ibérica se afastou de repente, toda por inteiro e por igual…” (p. 36)
Temos, assim, dois planos narrativos entrelaçados: o real e o maravilhoso. A fantasia serve de lente crítica, permitindo a Saramago atribuir poderes extraordinários às personagens e transformar a Península numa jangada de pedra que flutua no Atlântico. A viagem, esse gesto tão Saramaguiano, emerge como reconhecimento, como busca de sentido, como aproximação ao outro. Individual primeiro, colectiva depois. Sonho, deslocação, esperança.
A intenção do autor ultrapassa largamente a aventura dos companheiros. Com humor e ironia, Saramago evidencia a incapacidade da Europa em lidar com o inesperado, denuncia o oportunismo dos Estados Unidos e de outras potências, e reflecte sobre o impacto da mudança nos vínculos humanos e sociais.
“Portugal e a Espanha foram dois países de pernas para o ar.” (p. 315)
No fundo, o romance questiona as consequências da integração europeia: Será legítimo abdicar da identidade em nome de uma Europa unificada?
A Jangada de Pedra inscreve-se num contexto político, ideológico e social específico, mas a sua inquietação permanece actual. Saramago revela uma profunda consciência crítica sobre o desenvolvimento de Portugal e uma preocupação constante com a posição e a identidade da Península Ibérica no seio europeu.
Apesar de não ser, para mim, a obra mais fulgurante de Saramago, nela ecoa uma inquietação que merece ser escutada. Recomendo a leitura como quem oferece uma jangada: não para fugir, mas para pensar em conjunto.
“Todos acabamos por chegar aonde queremos, é tudo uma questão de tempo e paciência.” (p. 275)