30 outubro, 2025

𝑵ã𝒐 𝒇𝒐𝒔𝒔𝒆𝒎 𝒂𝒔 𝒔í𝒍𝒂𝒃𝒂𝒔 𝒅𝒐 𝒔á𝒃𝒂𝒅𝒐, de Mariana Salomão Carrara

 


Autora: Mariana Salomão Carrara
Título: Não fossem as sílabas do sábado
N.º de páginas: 171
Editora: Companhia das Letras
Edição (2.ª): Janeiro 2025
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3746)



OPINIÃO ⭐⭐⭐


Há livros que se aproximam com delicadeza, sem exigir entusiasmo imediato. Não fossem as sílabas do sábado, de Mariana Salomão Carrara, é um desses gestos literários que se oferecem mais como escuta do que como deslumbramento. A narrativa, marcada pelo luto e pela maternidade em estado de suspensão, convoca o silêncio como matéria poética — mas fá-lo com contenção, e por vezes com uma opacidade que mantém o leitor em observação mais do que em envolvimento.

A protagonista, Ana, vive aprisionada numa meia hora que dura nove anos (p. 11). A tragédia que a atravessa não é apenas um acontecimento, é uma distorção do tempo, uma ferida que se prolonga em cada gesto quotidiano. A filha, nascida órfã, torna-se o centro de uma maternidade vivida entre o cuidado e a apatia. A maternidade, aqui, é sobretudo resistência, mas também cansaço.

Outro eixo que merece atenção é a amizade entre Ana e Madalena — uma relação marcada por uma certa anormalidade, ou talvez por uma necessidade extrema de companhia. Madalena surge como figura de apoio, mas também como espelho de um desamparo que não se resolve. Há momentos em que a presença de Madalena parece quase invasiva, como se ocupasse espaços que Ana não consegue delimitar. A amizade entre ambas não se constrói sobre afinidade, mas sobre ausência e solidão — e isso torna o vínculo inquietante. No entanto, essa convivência, inicialmente estranha, acaba por se impor. No final, percebemos que Ana e Madalena partilharam doze anos de vida — uma amizade que resiste, mesmo sem ternura evidente, como gesto de sobrevivência mútua.

A escrita de Carrara é lapidada com precisão. É delicada. Há frases que brilham como sílabas soltas no escuro, “A barriga imensa que eu temia que estivesse absorvendo toda aquela tristeza e minha filha nasceria feito um saco de melancolia, o que eu acho que talvez tenha de fato acontecido porque a Catarina tem os olhos cheios de tragédia.” (p. 44). No entanto, a fragmentação inerente ao fluxo das memórias desordenadas pode dificultar a imersão.
A leitura convida à escuta silenciosa, mais do que à entrega emocional. Há beleza, mas também distância.

Em diálogo com obras como O ano do pensamento mágico, de Joan Didion, percebe-se que Carrara opta por aceitar o desamparo sem querer decifrá-lo, enquanto Didion tenta compreendê-lo com precisão racional. Se Didion escreve para controlar o incontrolável, Carrara escreve para permanecer suspensa no tempo, no desamparo.

Esta apreciação nasce de uma leitura contida, mas significativa. Um gesto que reconhece o valor da contenção, da linguagem como abrigo, e da escuta como forma de estar com o texto. Não fossem as sílabas do sábado é um livro que se aproxima devagar, exige respeito e atenção.




22 outubro, 2025

𝑼𝒎 𝑫𝒊𝒂 𝒏𝒂 𝑽𝒊𝒅𝒂 𝒅𝒆 𝑨𝒃𝒆𝒅 𝑺𝒂𝒍𝒂𝒎𝒂, de Nathan Thrall

 

Autor: Nathan Thrall
Título: Um Dia na Vida de Abed Salama
Tradutora; Sara Veiga 
N.º de páginas: 205
Editora: Livros Zigurate
Edição: Outubro 2023
Classificação: Testemunho
N.º de Registo: (3553)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


Um Dia na Vida de Abed Salama é mais do que uma reportagem sobre um trágico acidente envolvendo crianças em visita de estudo a um parque temático, nos arredores de Jerusalém. É, sobretudo, um testemunho pungente do conflito israelo-palestiniano e da vida quotidiana sob ocupação.
Milad Salama, filho de Abed Salama, é uma das crianças envolvidas no acidente de viação — ponto de partida para uma narrativa que se desdobra em múltiplas camadas de dor, resistência e denúncia.

Nathan Thrall, jornalista americano radicado em Israel, entrelaça com mestria o relato do acidente com a crónica da segregação imposta ao povo palestiniano. Ao longo do livro, revela-se o labirinto de constrangimentos que molda o dia-a-dia: cartões de identidade verdes ou azuis que restringem a circulação, muros que se erguem como fronteiras físicas e simbólicas, a “auto-estrada do apartheid” que separa, e os postos de controlo que atrasam — ou impedem — a assistência em momentos de urgência. O acidente, que vitimou oito crianças, expõe com brutal clareza como a pertença palestiniana condiciona até o socorro. Arruinou vidas. Deixou marcas em todos.
“O acidente destruíra todas as famílias, cada uma à sua maneira.” (p. 194)

A falta de assistência imediata às crianças palestinianas não é apenas uma consequência logística — é um reflexo brutal da estrutura de segregação que atravessa o território. O tempo de resposta foi dilacerado por barreiras físicas e burocráticas: ambulâncias impedidas de circular livremente, pais retidos em postos de controlo, hospitais inacessíveis por estarem do “lado errado” do muro. Cada minuto perdido foi uma consequência directa da geografia da exclusão. O livro revela como, num momento em que a urgência deveria unir, a ocupação separa — e como a infância palestiniana é atravessada por essa violência estrutural desde o primeiro suspiro.

Com este livro, Thrall conquistou o Prémio Pulitzer de Não Ficção (2024). A sua experiência jornalística, aliada a uma escrita literária precisa e comovente, oferece-nos a visão de um mundo colapsado, onde a tragédia, a opressão e a segregação são ingredientes quotidianos. Num tempo em que o ódio, a desumanização e a xenofobia crescem, este livro convoca-nos à escuta, à análise das causas e à urgência de estar informado.



13 outubro, 2025

Fólio | Festival Literário | Óbidos | 9, 10, 11 e 12 de Outubro 2025


Dias maravilhosos em excelente companhia.
Amizade. 
Dias de encantamento, de encontros, de conversas.
Música. Arte. Poesia.
Sem limites. Sem fronteiras.

Dias de contacto com escritores. Autógrafos. 
Dias de perdição. Livros, muitos livros. 
Chocolates. Ginjinha.
Risos e Sorrisos
Sem limites. Sem fronteiras


 


10 outubro, 2025

Nobel da Literatura | 2021 - 2025

 




2021 - Abdulrazak Gurnah (1948–) | Tanzânia | Ficção

“Pelo seu entendimento intransigente e compassivo dos efeitos do colonialismo e do destino dos refugiados no abismo entre culturas e continentes”


2022 - Annie Ernaux (1940–) | França | Romance, Memórias, Autobiografia

“Pela coragem e acuidade clínica com que desvenda as raízes, os estranhamentos e os constrangimentos coletivos da memória pessoal”


2023 - Jon Fosse (1959 - ) | Noruega | Drama, Romance

"Pelas suas peças e prosa inovadoras que dão voz ao indizível"


2024 - Han Kang (1970 - ) | Coreia do Sul  |  Romance, Poesia

"Pela sua intensa prosa poética que confronta traumas históricos e expõe a fragilidade da vida humana".

2025 - László Krasznahorkai (1954 - ) | Hungria  |  Romance, Roteiro

"Pela sua obra convincente e visionária que, em meio ao terror apocalíptico, reafirma o poder da arte".

09 outubro, 2025

László Krasznahorkai vence Prémio Nobel da Literatura 2025

 




László Krasznahorkai é o grande vencedor do prémio Nobel da Literatura de 2025. A Academia Sueca distinguiu-o “pela sua obra convincente e visionária que, em meio do terror apocalíptico, reafirma o poder da arte”.

László Krasznahorkai nasceu em 1954, em Gyula, no sudeste da Hungria, perto da fronteira com a Roménia. Estudou direito e literatura em Budapeste antes de, em 1987, ter trocado a Hungria por Berlim e ter passado os anos noventa a viajar pelo Japão e pela China.

A sua obra conta com romances, ficções breves e guiões, estando dois deles traduzidos para português - Herscht  07769 (Cavalo de Ferro) e O Tango de Satanás (Antígona), adaptado para o cinema pelo realizador Bela Tarr.

A Real Academia Sueca de Ciências apontou, inclusive, que "uma zona rural remota semelhante é o cenário do seu primeiro romance, Sátántangó, publicado em 1985, que foi uma sensação literária na Hungria e a obra que marcou a consagração do autor".

A Real Academia Sueca de Ciências destacou que o livro Herscht 07769 é encarado "como um grande romance alemão contemporâneo, devido à sua precisão ao retratar a agitação social do país". É um livro, escrito de uma só vez, sobre violência e beleza 'impossivelmente' conjugadas", complementou.



08 outubro, 2025

Ana Paula Tavares vence Prémio Camões 2025

 

                                         FOTO: VASCO NEVES / ARQUIVO DN


A poeta e historiadora angolana Ana Paula Tavares é a vencedora da 37.ª edição do Prémio Camões, o mais prestigiado galardão literário de língua portuguesa

"O prémio distingue a sua trajetória fecunda e coerente na criação estética, sublinhando o resgate da dignidade da poesia e a relevância antropológica e histórica da sua obra, que inclui poesia, crónica e ficção narrativa", refere o júri, num comunicado enviado pela Direcção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas (DGLAB).

Notícia completa em Diário de Notícias


07 outubro, 2025

𝑨 𝑱𝒂𝒏𝒈𝒂𝒅𝒂 𝒅𝒆 𝑷𝒆𝒅𝒓𝒂, de José Saramago

 


Autor: José Saramago
Título: A Jangada de Pedra
N.º de páginas: 330
Editora: Caminho
Edição: Outubro 1986
Classificação: Romance 
N.º de Registo: (329)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


E se a terra que pisamos decidisse partir? Em 1986, ano em que Portugal e Espanha aderem à então Comunidade Económica Europeia (CEE), José Saramago publica A Jangada de Pedra, romance que transforma a Península Ibérica numa ilha errante. A separação literal da Europa torna-se metáfora da sua posição periférica, da identidade em risco, da escuta que se exige.

Neste romance, Saramago apresenta-nos uma alegoria poderosa sobre pertença e deslocação. O enredo narra a ruptura física da Península Ibérica com o continente europeu e acompanha seis personagens — Joana Carda, José Anaiço, Joaquim Sassa, Pedro Orce, Maria Guavaira e um cão — que, por razões diversas, se sentem ligadas ao fenómeno. Cada uma, com o seu mistério e origem distinta, acaba por cruzar-se numa travessia insólita pela península à deriva.

“Chegou o momento de dizer, agora chegou, que a Península Ibérica se afastou de repente, toda por inteiro e por igual…” (p. 36)

Temos, assim, dois planos narrativos entrelaçados: o real e o maravilhoso. A fantasia serve de lente crítica, permitindo a Saramago atribuir poderes extraordinários às personagens e transformar a Península numa jangada de pedra que flutua no Atlântico. A viagem, esse gesto tão Saramaguiano, emerge como reconhecimento, como busca de sentido, como aproximação ao outro. Individual primeiro, colectiva depois. Sonho, deslocação, esperança.

A intenção do autor ultrapassa largamente a aventura dos companheiros. Com humor e ironia, Saramago evidencia a incapacidade da Europa em lidar com o inesperado, denuncia o oportunismo dos Estados Unidos e de outras potências, e reflecte sobre o impacto da mudança nos vínculos humanos e sociais.

“Portugal e a Espanha foram dois países de pernas para o ar.” (p. 315)

No fundo, o romance questiona as consequências da integração europeia: Será legítimo abdicar da identidade em nome de uma Europa unificada?

A Jangada de Pedra inscreve-se num contexto político, ideológico e social específico, mas a sua inquietação permanece actual. Saramago revela uma profunda consciência crítica sobre o desenvolvimento de Portugal e uma preocupação constante com a posição e a identidade da Península Ibérica no seio europeu.

Apesar de não ser, para mim, a obra mais fulgurante de Saramago, nela ecoa uma inquietação que merece ser escutada. Recomendo a leitura como quem oferece uma jangada: não para fugir, mas para pensar em conjunto.

“Todos acabamos por chegar aonde queremos, é tudo uma questão de tempo e paciência.” (p. 275)