30 junho, 2025

Rota Literária | Festa do Livro

A Fundação Caixa Agrícola Costa Azul organizou, nos dias 27, 28 e 29 de junho, a IV Edição da Festa do Livro em Santiago do Cacém.

Durante três dias,  e respondendo ao mote Entre Mundos e Palavras, foram realizadas múltiplas actividades no âmbito do livro e da leitura.
No dia 29, das 9h00 às 13h00, concretizou-se, sob  um calor intenso, a Rota Literária com 18 paragens em espaços históricos/emblemáticos da cidade.  Previamente, a Fundação atribuiu cada paragem a um embaixador/leitor que, por sua vez, escolheu livremente um texto  que se adaptasse ao local.
Foi-me destinado o ponto n.º 4 - Passeio das Romeirinhas (junto aos Espiguinhas) para o qual seleccionei um poema de Al Berto. 

Foi um prazer enorme, apesar do calor, ter participado neste evento. Aprendi imenso sobre Santiago e conheci novos entusiastas da leitura bem como da história e do património locais. 




4


oxidadas albas líquidas povoações
onde abandonámos os corpos a sonhar

voragem do mar ruínas de sal lodo basaltos
eis a devassada nudez da terra
argilas quartzos granitos calcários
esculpidos pelo contínuo vento

ali está a vereda de giesteiras floridas
onde o sol fabrica o doloroso mel
e o corpo estendido expele imagens de água
enquanto a morte tudo corrói vagarosamente

depois continuámos pela orla branca do papel
regressámos felizes à falsidade das palavras
mas já não conseguimos ser os mesmos
que ali tinham vivido e amado


In O Medo – Uma Existência de Papel (1984/85), Al Berto, Assírio & Alvim, 2000, p. 498



28 junho, 2025

𝑩𝒊𝒐𝒈𝒓𝒂𝒇𝒊𝒂 𝒅𝒐 𝑳í𝒏𝒈𝒖𝒂, de Mário Lúcio Sousa

 

Autor: Mário Lúcio Sousa
Título: Biografia do Língua
N.º de páginas: 340
Editora: D. Quixote
Edição: Outubro 2015
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3626)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐




19 junho, 2025

𝑽𝒆𝒋𝒂𝒎 𝒄𝒐𝒎𝒐 𝒅𝒂𝒏ç𝒂𝒎𝒐𝒔, Leïla Slimani

 

Autora: Leïla Slimani
Título: Vejam como dançamos
Tradutora: Tânia Ganho
N.º de páginas: 338
Editora: Alfaguara
Edição: Outubro 2022
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3414)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐




Vejam como dançamos é o segundo livro da trilogia de Leïla Slimani, iniciada com O País dos Outros. Nele, continua a história da família Belhaj, nomeadamente no crescimento e na adaptação dos filhos Aïcha e Selim, às transformações sociais e políticas de Marrocos nos anos 1960 e 70.
A narrativa foca-se em Aïcha que representa uma geração em transição entre a tradição e o desejo de emancipação. Ela estuda medicina em França, na cidade de Estrasburgo. Este facto afasta-a temporariamente das suas raízes marroquinas e aproxima-a de uma nova maneira de encarar a vida e de questionar o papel da mulher na sociedade. Os conhecimentos e amizades que aí trava, levam-na para trilhos de descobertas, de questionamento, de reflexão.
O desejo de independência, por um lado, e a lealdade à herança familiar, por outro, mantém-na num limbo identitário, num conflito interior que a vai tornar mais humana e sensível. Como um passo de dança, Aïcha desliza entre Marrocos e França, entre a tradição e a liberdade.

Selim, ao contrário da irmã, revela uma trajetória marcada por certos desvios – não gosta de estudar, alia-se ao movimento hippie, sai de casa, pratica o amor livre, experimenta drogas. A sua relação com os pais é distante e provocatória.

Quanto a Mathilde e a Amine, estão mais aburguesados, cederam à modernidade apesar das raízes e do peso da cultura marroquina que atravessa uma época conturbada. Este peso cultural sente-se, sobretudo, em Mathilde, que ainda vive entre duas culturas, e mais condescendente deixa-se engordar e acomoda-se à traição de Amine com outras mulheres.

Leila Slimani para além da história familiar, dá-nos a conhecer muito da História de Marrocos. Foca-se na transformação das pessoas que têm de se adaptar às mudanças sociais, culturais e políticas do país. “Naquele país que vivera da terra e da guerra durante séculos, já só se falava da cidade e do progresso.” (p. 37)
Percebemos que, apesar das mudanças em curso, a mulher ainda desempenha um papel subalterno, as desigualdades ainda subsistem. Os ecos de um Maio de 68 começam a instalar-se, a emancipação da mulher dá os primeiros passos, vagarosa e timidamente.
Leïla é sublime. Através de uma escrita cativante e fluída, de cariz autobiográfica, conduz-nos pelas teias da (sua) família, mergulha-nos na intimidade das personagens, incita-nos à descoberta de um país e oferece-nos uma narrativa comovente.

Recomendo muito e como incentivo à leitura desta trilogia (o terceiro livro já foi publicado em Portugal), transcrevo um excerto do final da carta que Mehdi escreveu a Aïcha. Uma carta que me deslumbrou pela beleza das palavras, pela sensibilidade que nelas perpassam.
“Um dia, mais tarde, num dos nossos passeios, disseste-me, rindo-te, que eu era um ateu da vida. Ah, não. A vida possui-me. Aïcha, acredito piamente nela, a vida ilumina-me, rasga-me a cada instante, amo-a sob todas as formas, felicidade, prazer, dor, silêncio. E, graças a ti, nunca estive tão próximo dela. Reconheci-te. Esperava-te desde o dealbar da infância e tu chegaste. Vejo o céu, a luz nas palmeiras, o voo das cegonhas e fico deslumbrado. Acredita quando te digo que essa beleza é feita de nós. É feita para nós.” (p. 196).



18 junho, 2025

Faz 15 anos (18.06.2010)

 



Não me Peçam Razões...

Não me peçam razões, que não as tenho,
Ou darei quantas queiram: bem sabemos
Que razões são palavras, todas nascem
Da mansa hipocrisia que aprendemos.

Não me peçam razões por que se entenda
A força de maré que me enche o peito,
Este estar mal no mundo e nesta lei:
Não fiz a lei e o mundo não aceito.

Não me peçam razões, ou que as desculpe,
Deste modo de amar e destruir:
Quando a noite é de mais é que amanhece
A cor de primavera que há-de vir.

José Saramago


16 junho, 2025

Um poema de Joaquim Cardoso Dias

 

The Couple | Jennifer Lombardo | 2014




NA LINGUAGEM DE UM AMOR


estas árvores tocam
com as folhas
o murmúrio das searas
os dedos húmidos da paisagem
o branco vivo 
de um pássaro a correr nas mãos

choram o poeta triste
do outro lado da floresta
longe
muito longe dessas terras

esse rio de árvores e de pássaros

levantando no silêncio
todas as suas asas azuis

bebendo do rumor dos beirados
essa luz doente

para adormecer assim
no prolongamento dos ombros
nesses abraços de olhos nos olhos

a mão de tocar outra mão
e um suspiro de ficar sozinho


O Preço das Casas, Joaquim Cardoso Dias 



13 junho, 2025

Al Berto | 13.06.1997

 

                                                              Foto GR - Sines



Cromo


andamos pelo mundo
experimentando a morte
dos brancos cabelos das palavras
atravessamos a vida com o nome do medo
e o consolo dalgum vinho que nos sustém
a urgência de escrever
não se sabe para quem

o fogo a seiva das plantas eivada de astros
a vida policopiada e distribuída assim
através da língua... gratuitamente
o amargo sabor deste país contaminado
as manchas de tinta na boca ferida dos tigres de papel

enquanto durmo à velocidade dos pipelines
esboço cromos para uma colecção de sonhos lunares
e ao acordar... a incoerente cidade odeia
quem deveria amar

o tempo escoa-se na música silente deste mar
ah meu amigo... como invejo essa tarde de fogo
em que apetecia morrer e voltar

Salsugem, Al Berto

Al Berto faleceu em Lisboa no dia 13 de junho de 1997, com apenas 49 anos



12 junho, 2025

𝑫𝒐𝒓 𝒇𝒂𝒏𝒕𝒂𝒔𝒎𝒂, de Rafael Gallo

 


Autor: Rafael Gallo
Título: Dor Fantasma
N.º de páginas: 275
Editora: Porto Editora
Edição: Março 2023
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3685)




OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


O enredo centra-se em Rómulo Castelo, um pianista conceituado, que ambiciona o reconhecimento mundial como “um dos maiores intérpretes de Liszt” ao estrear “a peça intocável” pelo seu grau de dificuldade - Rondeau Fantastique - na tournée pela Europa que já tem agendada.

O protagonista é professor universitário de piano. Herdou do pai, um famoso maestro, o gosto e a valorização da música que deve ser praticada com rigor e disciplina para alcançar a perfeição, a excelência. “O zelo exige rigor.” 

Rafael Gallo é exímio na condução da sua narrativa. Nas primeiras três páginas coloca o pianista em palco, a tocar Funerais, de Franz Liszt e as expectativas criadas “entre o palco e a plateia” estendem-se ao leitor. São três páginas em que o protagonista “foi a música” e o escritor “foi a escrita”. Ficamos, desde logo, deslumbrados e também preocupados com a antecipação da informação de que será o último recital.

O rigor absorvido ao longo da sua aprendizagem como músico e a obsessão pela perfeição faz de Rómulo Castelo uma pessoa antipática, exigente e intolerante com os alunos e colegas; insensível e cruel com a esposa, Marisa, e o filho, o pequeno Franz (Franzinho) que desde o nascimento “mostrou um desvio”.
Rómulo vive exclusivamente para a música. Em casa, foge da rotina doméstica e tranca-se “na sala de estudos: caixa-forte entranhada na alvenaria do lar, arquitetura da impenetrabilidade. O lugar dele.” (p.20) e isola-se de tudo e de todos. Num mundo só dele partilhado apenas com o seu Steinway e um retrato de Liszt. Um solitário que não entende a vida.
Até que um dia o destino lhe prega uma partida. Avassaladora. Rómulo não vai saber lidar com a nova realidade, com essa dor fantasma (que não vou revelar) e a sua vida regrada transforma-se num caos.

Rafael Gallo dirige a escrita, tal uma batuta, com andamentos intensos e inquietantes. A narrativa, dividida em quatro partes – Coda, Exposição, Desenvolvimento e Cadenza - confunde-se com uma partitura em que as palavras são música e silêncios. O final, então, é fabuloso. O leitor permanece siderado perante a beleza das palavras. E tal como Rómulo Castelo que, sempre que executava na perfeição a sua obra intocável, apontava um orgulhoso “Estala, estala, estala a medida consistente da perfeição.”, também, na minha opinião, se pode aplicar a Rafael Gallo em relação ao seu livro. Equivalem-se, assim, quanto à execução, protagonista e escritor.

Contudo, não posso deixar de referir que por muito que o protagonista se dedique à sua profissão, à música e considerando, ainda, que o autor tenha amenizado a personagem com os seus dramas, não consigo sentir empatia por ela. É inadmissível que uma pessoa que lida com a beleza e a sensibilidade da música não consiga tornar-se mais afável. Pelo contrário, a sua obsessão doentia vai levá-lo a agir sem escrúpulos, a magoar os seus familiares e amigos e vai conduzi-lo à loucura. Assim, o leitor vive um enorme paradoxo. Ora sente admiração pelo professor e músico, ora sente repulsa pelo homem. E é esta ambiguidade que vai manter o suspense e o interesse até ao final.

Para concluir, Dor Fantasma é uma crítica acérrima à busca obsessiva da perfeição, à ambição, à forma como encaramos a vida a partir do “Eu”, das preferências individuais e muito pessoais.


06 junho, 2025

𝑰𝒏𝒇𝒐𝒓𝒕ú𝒏𝒊𝒐𝒔 𝒅𝒆 𝑼𝒎 𝑮𝒐𝒗𝒆𝒓𝒏𝒂𝒅𝒐𝒓 𝒏𝒐𝒔 𝑻𝒓ó𝒑𝒊𝒄𝒐𝒔, de Germano Almeida

 


Autor: Germano Almeida
Título: Infortúnios de um Governador nos Trópicos
N.º de páginas: 223
Editora: Caminho
Edição: Setembro 2023
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3502)




OPINIÃO ⭐⭐⭐


É o primeiro livro que leio de Germano Almeida, apesar de ter alguns em lista de espera há já algum tempo.
Como surgiu a oportunidade de o ler para um clube de leitura, iniciei com algumas expectativas uma vez que o autor foi Prémio Camões, em 2018 e porque o enredo, o resgate de um caso de adultério passado no início do século XIX, na então colónia de Cabo Verde, me pareceu convincente

Partindo de um episódio verídico, como esclareceu, na introdução, o próprio autor, a narrativa desenvolve alguns aspectos históricos, políticos e sociais das ilhas de Cabo Verde e de Portugal e foca-se, sobretudo, na infidelidade da mulher e sobrinha do governador de Cabo Verde, o coronel João da Mata Chapuzet, com o jovem cirurgião, Domingos da Costa Lima.

A escrita muito descritiva lega-nos um retrato fiel da época, mas peca por excesso de repetição. A leitura que, no início, flui agradavelmente, torna-se depois monótona.
A mesma história de adultério e as consequências desse acto para os dois amantes, são-nos narradas por diversas personagens.
Confesso que a expectativa inicial ficou muito aquém do desejado. Saí desiludida desta leitura. Mas como não desisto à primeira, darei, certamente, uma outra oportunidade ao autor.