05 janeiro, 2020

Deste Mundo e do Outro, de José Saramago


OPINIÃO




Temos 60 crónicas publicadas em 1968 e 69 no jornal A Capital. Não podemos esquecer que nesta época tudo era dito com meias palavras, nas entrelinhas “E eu, rapazinho que vivia apertado na pele que lhe coubera, lançava o bafo às vidraças e traçava desenhos incompreensíveis, com a vaga inquietação de quem adivinha que há nas coisas sentidos ocultos que só ocultamente podem ser entendidos.” (p. 32).

Saramago, a certa altura, numa crónica intitulada Viagens na minha terra, revisita à obra de Almeida Garrett, apresenta a seguinte questão: “Crónicas, que são? Pretextos, ou testemunhos? São o que podem ser.” (p. 50). 

Considero que estes textos são precisamente testemunhos, reflexões, uns mais irónicos que outros, do autor sobre pessoas importantes da sua vida (avô e avó maternos), sobre escritores que o marcaram, sobre aspectos da sua infância (a casa onde viveu), factos do dia-a-dia (cidade, amola-tesouras, praia, férias, etc), acontecimentos importantes (a ida à lua). Os textos estão tão bem escritos que alguns são autênticos contos. Ele próprio refere “Amigos, esta história é verdadeira. Todas as minhas histórias são verdadeiras, só que às vezes me foge a mão e meto na trama seca da verdade um leve fio colorido que tem nome fantasia, imaginação ou visão dupla.” (p. 59.) 

Outro aspecto que me agradou bastante é a cumplicidade estabelecida entre autor e leitor, há uma constante interpelação ao leitor “perdoará o leitor que eu me deixe escorregar pelo declive das utopias” (p. 77); “Dê-me a sua mão, leitor. Sente-se aqui, a meu lado, e escute a história simples do coração dos homens.” (p. 109); “Deu-me para aqui hoje, leitor. Tenha paciência e vire a página.” (p. 129); e por aí adiante. São múltiplos os exemplos e dou por mim a sorrir, pois adoro esta cumplicidade é como se eu fosse personagem dos textos de Saramago e isso é um tremendo privilégio. 



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