26 fevereiro, 2020

Mulherzinhas, de Louisa May Alcott,



OPINIÃO

Mulherzinhas marcou a minha juventude. E precisava urgentemente de o reler porque já não me lembrava de certos (muitos) detalhes da história desta família fabulosa. Como quero muito ver o filme, aproveitei, então, a oportunidade de o reler para assim melhor ajuizar sobre a película. 

Não nos podemos esquecer que o livro foi publicado em 1868 e que retrata a vida das mulheres nessa época. Estas eram educadas para ficarem em casa e os homens dominavam o espaço público. No entanto, com este livro a autora marca uma nova etapa na vida das mulheres, tornando-as mais livres. A amizade das quatro raparigas com o amigo vizinho é uma evidência, o facto de Jo March querer ser escritora, é outra. 
A escrita é simples, destina-se a um público jovem e cada capítulo encerra uma moral. É através das peripécias de cada uma das quatro raparigas que vamos percebendo ensinamentos e valores como o amor, a partilha, a confiança, a humildade, a amizade, o altruísmo, entre outros. 

Lembro-me que a Jo era a minha personagem favorita, adorava as suas travessuras. Hoje, muitos anos depois, continuo a achar que é uma rapariga fantástica, desenvolta e com ideias brilhantes que nem sempre têm um desfecho muito convencional. 
É um livro encantador e é impossível ficarmos indiferentes ao modo de vida desta família tão unida. Tenho curiosidade em ler Boas Esposas (que nunca li) e conhecer o que o futuro reservou às irmãs March.




24 fevereiro, 2020

Carnaval




Carnaval

A vida é uma tremenda bebedeira.
Eu nunca tiro dela outra impressão.
Passo nas ruas, tenho a sensação
De um carnaval cheio de cor e poeira…

A cada hora tenho a dolorosa
Sensação, agradável todavia,
De ir aos encontrões atrás da alegria
Duma plebe farsante e copiosa…

Cada momento é um carnaval imenso,
Em que ando misturado sem querer.
Se penso nisso maça-me viver
E eu, que amo a intensidade, acho isto intenso

De mais… Balbúrdia que entra pela cabeça
Dentro a quem quer parar um só momento
Em ver onde é que tem o pensamento
Antes que o ser e a lucidez lhe esqueça…

Automóveis, veículos,
As ruas cheias,
Fitas de cinema correndo sempre
E nunca tendo um sentido preciso.

Julgo-me bêbado, sinto-me confuso,
Cambaleio nas minhas sensações,
Sinto uma súbita falta de corrimões
No pleno dia da cidade…

Uma pândega esta existência toda…
Que embrulhada se mete por mim dentro
E sempre em mim desloca o crente centro
Do meu psiquismo, que anda sempre à roda…

E contudo eu estou como ninguém
De amoroso acordo com isto tudo…
Não encontro em mim, quando me estudo,
Diferença entre mim e isto que tem

Esta balbúrdia de carnaval tolo,
Esta mistura de europeu e zulu
Este batuque tremendo e chulo
E elegantemente em desconsolo…



Álvaro de Campos / Fernando Pessoa

21 fevereiro, 2020

Cinco Voltas na Bahia e um Beijo para Caetano Veloso, de Alexandra Lucas Coelho


OPINIÃO


Este é o terceiro livro que a autora escreve sobre o Brasil, é um livro de viagens (cinco) e de memórias. A trilogia contempla Vai, Brasil (2013- crónicas sobre o país) e Deus-dará (2016- sobre o Rio de Janeiro). 
Caetano Veloso achou que nestes relatos anteriores “faltava Bahia”. Ele queria que Alexandra Lucas Coelho dedicasse um livro à sua terra natal, ao seu estado, à cidade de Salvador, o Recôncavo baiano, o “primeiro lugar entre Portugal e Brasil”, terra de Jorge Amado (dos Capitães da Areia), terra de novelas. 

“Foi o clique para este livro aparecer, com título, índice, pela ordem das viagens”. (p.16)

Ainda bem que ALC aceitou o desafio. 

Temos, assim, a descrição desta região sob o olhar e as emoções da autora. Registos obtidos em vários momentos (foram cinco as idas à Bahia) que relatam os seus encontros com baianos, amigos, artistas; as suas vivências em festas, festivais, rituais, passeios por Salvador, por Santo Amaro da Purificação, pelas praias… ; a religião, a gastronomia e sobretudo a música de Caetano. Estamos perante uma fusão de cores, de sabores, de sons, de ritmos, de emoções, de afectos. 

Concluo com um “Apetece Bahia!”. Fica mesmo a vontade de conhecer este estado tão rico em história e cultura. (Não vislumbrando uma visita in loco, fica a promessa de uma descoberta virtual).



11 fevereiro, 2020

A Vegetariana, de Han Kang


OPINIÃO


É um romance intenso, perturbador, que levanta inúmeras questões que nos fazem reflectir. O leitor deixa-se conduzir completamente inebriado e surpreendido pela beleza da escrita e pela surpreendente história desta jovem mulher sul-coreana.

A protagonista, Yeong-hye, após ter tido um sonho terrível, decide tornar-se vegetariana. Esta decisão vai afectar radicalmente a vida de todos os membros da família. A história tripartida, é narrada a três vozes, a do marido, a do cunhado e a da irmã. Estranhamente, ou não, o enredo vai centrar-se no corpo desta mulher: na sua magreza, na sua beleza/sensualidade, na sua letargia versus violência, na sua demência, mas também na sua vontade de o controlar, de se tornar literalmente vegetal, de se transformar em árvore.

“ Preciso de regar o meu corpo. Não é desta comida que preciso, irmã, mas de água.”
“Já não preciso de comer. Posso viver sem me alimentar. A única coisa de que preciso é sol. - Que estás para aí a dizer? Julgas mesmo que te transformaste numa árvore?”

Compreendemos assim que a sua decisão inicial vai bem mais além do facto de se tornar vegetariana e essa atitude, incompreensível e inaceitável para os seus próximos e para a sociedade machista, vai provocar-lhe danos irreparáveis no corpo e na mente. Foi esta a via que Yeong-hye escolheu para se libertar da dor e da violência, para ser feliz. E o leitor aceita-a com alívio, sem tristeza.



08 fevereiro, 2020

Doida Não e Não! de Manuela Gonzaga


OPINIÃO

Em Doida Não e Não! Manuela Gonzaga apresenta a biografia de Maria Adelaide Coelho da Cunha internada como louca num manicómio no Porto. Personagem da alta sociedade lisboeta, herdeira do fundador do Diário de Notícias, casada com um homem de letras, Alfredo da Cunha, Maria Adelaide decide aos 48 anos abandonar tudo (casa, fortuna e conforto) e todos (marido, filho, amigos, …) para fugir com o “chauffeur” da casa, um jovem de 26 anos.
Esta história verídica, que ocorreu em 1918, destaca a inteligência e a luta feroz que esta mulher manteve contra a sua família e a sociedade conservadora e corrupta da época. Maria Adelaide numa luta desigual bateu-se por amor, pela liberdade e pela verdade, revelando uma forte lucidez.
“ (…) afirmo-o convicta porque sendo certo que não estou, nem nunca estive doida, há-de provar-se. Leva cinco, dez, quinze anos? Leva-me o resto da vida? Leve o tempo que levar; há-de provar-se.”

Mesmo nos momentos de grande sofrimento, conseguiu manter vivo o seu espírito que lhe permitiu registar tudo a que foi sujeita durante o internamento e, mais tarde, travar por escrito, nos jornais, uma batalha violentíssima contra o seu “marido ferido violentamente nos sentimentos época e no orgulho, que congemina vingança (…) a comprar testemunhos e a pagar opiniões falsas e requintadamente más, a médicos que lhas facultam a troco de uns contos de réis”.

Recomendo vivamente a leitura desta biografia, autêntica história de amor que marcou a época e que fez correr muita tinta na imprensa, em livros publicados e até na realização de um filme (Solo de Violino, de Monique Rutler, 1992). Manuela Gonzaga desenvolveu um trabalho meticuloso e rigoroso, mantendo nas citações a escrita da época e fornecendo inúmeras fontes, prova de uma intensa pesquisa em documentos vários, cartas e testemunhos.


07 fevereiro, 2020

Um poema de Al Berto




se um dia a juventude voltasse 
na pele das serpentes atravessaria toda a memória 
com a língua em teus cabelos dormiria no sossego 
da noite transformada em pássaro de lume cortante 
como a navalha de vidro que nos sinaliza a vida 

sulcaria com as unhas o medo de te perder... eu 
veleiro sem madrugadas nem promessas nem riqueza 
apenas um vazio sem dimensão nas algibeiras 
porque só aquele que nada possui e tudo partilhou 
pode devassar a noite doutros corpos inocentes 
sem se ferir no esplendor breve do amor 

depois... mudaria de nome de casa de cidade de rio 
de noite visitaria amigos que pouco dormem e têm gatos 
mas aconteça o que tem de acontecer 
não estou triste não tenho projectos nem ambições 
guardo a fera que segrega a insónia e solta os ventos 
espalho a saliva das visões pela demorada noite 
onde deambula a melancolia lunar do corpo 

mas se a juventude viesse novamente do fundo de mim 
com suas raízes de escamas em forma de coração 
e me chegasse à boca a sombra do rosto esquecido 
pegaria sem hesitações no leme do frágil barco... eu 
humilde e cansado piloto 
que só de te sonhar me morro de aflição 

Al Berto, in 'Rumor dos Fogos'