29 abril, 2024

𝑵𝒐𝒕í𝒄𝒊𝒂 𝑷𝒂𝒓𝒂 𝑼𝒎𝒂 𝑪𝒂𝒓𝒕𝒂 𝒅𝒆 𝑨𝒍 𝑩𝒆𝒓𝒕𝒐, de Joaquim Cardoso Dias

 

Autor: Joaquim Cardoso Dias
Título: Notícia Para Uma Carta de Al Berto
N.º de páginas: 49
Editora: On y va
Edição: Março 2024
Classificação: Poesia
N.º de Registo: (3550)




OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐



Notícia Para Uma Carta de Al Berto, de Joaquim Cardoso Dias é um intenso lamento, um grito pungente de raiva, de solidão, de saudade do amigo.

É ainda a confidência de um poeta exigente “cada dia que passa escrevo menos”, desiludido, que acha que não vale a pena escrever, que não se revê na imagem reflectida no espelho, na hipocrisia dos que usam máscaras, que duvida do presente, que recusa a “excentricidade do mundo” exemplificada na guerra que divide e mata, que não gosta das pessoas “que comem bolos todos os dias”.

A interpelação constante do “eu” ao “tu” transporta o leitor para o interior do poema. O leitor apropria-se das palavras, das memórias, dos desejos, dos momentos e gestos vividos em comum, das notícias, das “coisas de viver”. O leitor vive e sente de igual forma; partilha as emoções, o amor, a amizade, a desolação dos dias; entende a melancolia e o desassossego que invadem o “eu” e que procura resolver-se, ou não, “escrevendo”.

É este o meu entendimento deste belíssimo livro. Ou pelo menos, é o que consigo transmitir. Não me é fácil expressar-me sobre as palavras de outros, sobretudo poéticas. Mas a partir do momento em que o livro se torna público, cabe ao leitor efectuar a sua leitura e inferir o seu próprio sentido ou sentidos. Foi o que fiz. Agora o poema também vive em mim. É o poder da literatura, da poesia.


26 abril, 2024

𝑪𝒂𝒅𝒆𝒓𝒏𝒐 𝒅𝒆 𝑴𝒆𝒎ó𝒓𝒊𝒂𝒔 𝑪𝒐𝒍𝒐𝒏𝒊𝒂𝒊𝒔, de Isabela Figueiredo

 


Autora: Isabela Figueiredo
Título: Caderno de memórias Coloniais
N.º de páginas: 219
Editora: Caminho
Edição (10.ª): Outubro 2021
Classificação: Memórias
N.º de Registo: (BE)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


Caderno de Memórias Coloniais é um livro autobiográfico e centra-se em duas personagens, a narradora e o pai da narradora.
Sem rodeios, numa linguagem clara, crua e directa, a narradora relata em capítulos breves as memórias da sua infância vivida em Moçambique, até aos 13 anos, e as suas primeiras vivências, como retornada, em Portugal.
As memórias revelam-se em pequenos instantâneos da realidade colonial. A narradora ao centrar no pai, electricista, as críticas em relação à forma como agia sobre o povo africano pretende atingir todo o sistema porque afinal os brancos agiam todos de igual forma. O mesmo se passa em relação à mãe, também ela “uma vítima do sistema, tal como a maioria das mulheres, brancas ou negras.” 
(p. 21 – Prefácio de Chiziane)

É um livro marcante que trata o tema do colonialismo na primeira pessoa, as relações de género entre dois povos. A autora narra a sua própria vida de “filha de um colono racista”, narra a ocupação abusiva de um povo; o desrespeito pelo outro de cor diferente; o abuso e violação das nativas “os brancos iam às pretas”.
“O negro estava abaixo de tudo. Não tinha direitos (…) esta era a ordem natural e inquestionável das relações: preto servia o branco, o branco mandava no preto.“ (p. 49)

Narra, também, o seu amor, a sua admiração pelo pai até ao momento em que aprendeu a ler e se apossou dessa “ferramenta “ como forma de alcançar a sua liberdade.
“Foi quando, devagar, comecei a tornar-me a pior inimiga do meu pai. A inimiga lá dentro, calada. Que vê e escuta (…) Foi quando comecei a tornar-me toupeira. (…) na toupeira que lhes havia de roer todas as raízes, devagar, uma de cada vez, até restar pó.
O meu pai tinha a camisa branca e eu, o seu tesouro, a sua vida, sujei-lha de terra para sempre.” (pp. 101 e 102)

Narra a sua vida de criança que gostava de conversar e de brincar com os mainatos “Os mainatos tratavam-me bem, carregavam-me às cavalitas. Brincavam. Riam. Faziam rir. A minha mãe tinha medo que os mainatos me fizessem mal ou me roubassem. A minha mãe desconfiava de mim, adivinhando a minha alma de preta.” (p. 113).
Narra o tempo de antes e após a independência em que “morrer sempre foi fácil”, de avanços e recuos, de incertezas, de esperança invisível, de guerra, de abandono. “O tempo dos brancos tinha acabado.”

Finalmente, narra a sua vida na Metrópole para onde foi enviada, em novembro de 1975, “num dia frio de inverno” com a incumbência de relatar o que os pretos faziam aos brancos.
“tu vais contar”; “diz-lhes … que é mentira”; “diz à tua avó”; “Era a portadora da mensagem, levava comigo a verdade. A deles. A minha, também, mas eles não imaginariam que eu pudesse ter uma verdade só minha, sem a sombra das suas mãos. (p. 152)

Em suma, este caderno revela, em primeira instância, de forma crua a brutalidade e a perversidade de uma sociedade preconceituosa e racista, ao apresentar a extrema violência presente nas relações entre colonizadores e colonizados, entre brancos e negros. Em segunda instância, a relação entre filha (narradora) e pai. Uma relação ambígua, de aproximação e repulsa, de carinho e raiva, de aconchego e medo.

Há todo um legado colonial marcado pela “verdade testemunhal” da narradora, contudo a falibilidade da memória desde logo inscrita na segunda epígrafe “A memória humana é um instrumento maravilhoso, mas falível. […]”, de Primo Levi, releva a importância da ficção. Fica, desta forma, salvaguardada a possível subjectividade às diversas construcções da realidade.

Recomendo seguramente a leitura deste caderno. Escrito de forma provocatória focaliza o olhar da narradora sobretudo na sua relação com os outros. Além do mais, esta edição contém dois prefácios valiosíssimos de Paulina Chiziane e José Gil.


25 abril, 2024

𝑨 𝑵𝒐𝒊𝒕𝒆, de José Saramago

 


Autor: José Saramago
Título: A Noite
N.º de páginas: 124
Editora: Caminho
Edição (4.ª): Junho 2006
Classificação: Teatro
N.º de Registo: (2642)

OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐



50 anos depois do “dia inicial inteiro e limpo”, li A Noite, de Saramago. Uma peça de teatro que se foca precisamente na noite que antecede à madrugada tão esperada por muitos. Na redacção de um jornal em Lisboa, onde decorre a ação, alguns jornalistas e tipógrafos emergiram do silêncio e puderam enfim manifestar-se e noticiar a verdade tão desejada. Outros, os do poder decisório, os que impunham notícias e artigos de conveniência, os que manipulavam a informação, e os lambe-botas que pretendiam aceder ao poder ficaram desconcertados, incrédulos, acreditando que seria um “outro 16 de Março”, duvidaram do boato que então surgiu de que a revolução já estava na rua.

Num texto organizado em dois actos, Saramago recorre a dezoito personagens envolvidas na produção do jornal que deverá sair na manhã seguinte, para desvendar a censura, o medo, a manipulação, mas também a esperança e o sonho de um novo dia.
Numa escrita clara e concisa com diálogos muito bem estruturados, pela voz de Manuel Torres, redactor de província, que luta pela verdade informativa em confronto com Valadares, chef da redacção, submisso ao poder, à ditadura, o autor traz à reflexão o impacto que a informação tem na sociedade. Os princípios de “objectividade, de ideal, de isenção, de respeito pelo público” tão defendidos hipocritamente por Valadares, estão quebrados quando os jornalistas se limitam ”a assinar um jornal que já vem feito dos coronéis da censura.” (p. 67)

Saramago é implacável, como sempre, e recorrendo à ironia, a sua arma poderosa, na minha opinião, desmonta os vários interesses que existem naquela redacção. No final do primeiro acto, Torres numa acesa discussão com o seu chefe tem uma tirada reveladora sobre a ética e a verdade no jornalismo.

“(…) Não torne a cantar-me as loas da objectividade, e da neutralidade, que é outra palavra que você usa muito. Digo-lhe eu que não há objectividade. Quantos acontecimentos importantes para o mundo se dão diariamente no mundo? Provavelmente milhões! Quantos deles são seleccionados, quantos passam pelo crivo que os transforma em notícias? Quem os escolheu? Segundo que critérios? Para que fins? Que forma tem essa espécie de filtro ao contrário, que intoxica porque não diz a verdade toda? E as notícias falsas, quantas circulam no mundo? Quem as inventa? Com que objetivos? Quem produz a mentira e a transforma em alimento de primeira necessidade? (…) Quem tem o poder, tem a informação que defenderá os interesses do dinheiro que esse poder serve. A informação que nós atiramos Para cima do leitor desorientado é aquela que, em cada momento, melhor convém aos donos do dinheiro. (…)” (pp. 60 e 61)

Hoje, passados 45 anos sobre a escrita deste texto (1979), receio que pouco se tenha alterado. O texto de Saramago continua actualíssimo, apenas mudaram os contextos. Continuamos mergulhados no caos da (des)informação porque o poder é quem mais ordena. Mudam-se os tempos, mas não se mudam as vontades.

Recomendo muito a leitura deste livro de apenas 124 páginas, mas que diz tanto!



23 abril, 2024

𝑹𝒐𝒎𝒂𝒏𝒄𝒆 𝒅𝒐 25 𝒅𝒆 𝑨𝒃𝒓𝒊𝒍, de João Pedro Mésseder e Alex Gozblau (ilustrador)

 


Autor: João Pedro Mésseder
Título: Romance do 25 de Abril
Ilustrador: Alex Gozblau
N.º de páginas: 29
Editora: Caminho
Edição (6.ª): Fevereiro 2024
Classificação: Infantil/juvenil
N.º de Registo: (BE)

OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


João Pedro Mésseder escreveu Romance do 25 de Abril em prosa rimada e versificada e Alex Gozblau fez os desenhos.

É uma história muito bonita. É a nossa história, do antes e do depois da ditadura. A história de um menino chamado Portugal, baixinho e magrinho “que vivia à beira-mar”. O menino que “trabalhava de sol a sol”, que não frequentava a escola, que não tinha tempo para brincar e que andava sempre “co’a barriga a dar horas”.
Apesar das dificuldades, o menino era curioso, olhava à sua volta, questionava-se e sonhava com uma pátria diferente.

O menino cresceu e foi operário e soldado na guerra colonial. Lutou para realizar o sonho de um dia ver realizado os versos de um poeta atormentado “Não hei de morrer sem saber / qual a cor da liberdade”. O menino “que fora camponês e operário e em soldado se tornara” foi preso, ameaçado e torturado. Mas um dia viu o seu sonho realizar-se. O sonho que hoje celebramos e que vivemos há cinquenta anos.
Os desenhos sombrios, na primeira parte do livro, enriquecem muito o texto, pois acrescentam-lhe densidade psicológica. As figuras são bem representativas e expressivas (algumas bem conhecidas). A conjugação do desenho com a colagem produz um efeito interessante, já que permite discernir a ficção do documento histórico e, finalmente, a alteração cromática que marca o início da Liberdade transmite uma ideia de alegria, de agitação, de vitória, de “cravos mil”.
É um livro que recomendo para que se mantenha viva a memória da Liberdade estampada nos versos de Ary dos Santos "Agora ninguém mais cerra as portas que Abril abriu!!". Contudo para ser entendido pelas crianças deve ser lido e explorado por um adulto.



21 abril, 2024

Vou com o tempo

           Claude Monet | Impression, Soleil levant (Impressão, nascer do sol) | 1872


Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades
No dia-a-dia presente
As palavras fluem no caderno branco
Os sorrisos vivem esbranquiçados 
As flores perfumam os caminhos
Pequenos gestos serenam meu peito
A magia da confiança germina lentamente.

Mudam-se os tempos, mudam-se as afinidades
Na distância instalada
A tinta escasseia na página branca
Os dias acompanham os contornos da lua 
Os silêncios atormentam  o cansaço
O mar salpica memórias 
A saudade esbate-se implacavelmente. 

Nos tempos mudados
Permanece a ausência
Os dias longos, tristes
de escuridão
Procuro pequenos gestos 
de cumplicidade
Moro na página branca
da incompreensão

A melancolia habita-me.

GR


20 abril, 2024

Cantar a LIBERDADE - 50 anos 25 Abril

 

                        Music Publisher: Copyright Control Composer: José Afonso 



Traz Outro Amigo Também
Zeca Afonso


Amigo
Maior que o pensamento
Por essa estrada amigo vem
Por essa estrada amigo vem
Não percas tempo que o vento
É meu amigo também
Não percas tempo que o vento
É meu amigo também

Em terras
Em todas as fronteiras
Seja bem vindo quem vier por bem
Se alguém houver que não queira
Trá-lo contigo também

Aqueles
Aqueles que ficaram
(Em toda a parte todo o mundo tem)
Em sonhos me visitaram
Traz outro amigo também


17 abril, 2024

Passeio literário a Mafra

É sempre com enorme prazer que revisito Mafra.

Trata-se de um passeio cultural muito enriquecedor e com novas estórias. Acompanhados de um guia,  visitámos a Basília, sempre deslumbrante; o palácio com as mesmas salas mas estórias diferentes e a maravilhosa e riquíssima biblioteca. Almoçámos rapidamente e assistimos à peça de teatro Memorial do Convento, pela companhia Éter. 

Enquanto esperámos pelo segundo grupo, degustámos tranquilamente uns fradinhos numa esplanada e ainda tivemos tempo para conhecer o centro da localidade e descobrimos uma boutique vintage, Terra Viva. 





13 abril, 2024

Dia do Beijo - Horas Rubras

                                                        
                                                 Man Ray | o Beijo | 1922




Horas Rubras 

Horas profundas, lentas e caladas
Feitas de beijos rubros e ardentes,
De noites de volúpia, noites quentes
Onde há risos de virgens desmaiadas...

Oiço olaias em flor às gargalhadas...
Tombam astros em fogo, astros dementes,
E do luar os beijos languescentes
São pedaços de prata p'las estradas...

Os meus lábios são brancos como lagos...
Os meus braços são leves como afagos,
Vestiu-os o luar de sedas puras...

Sou chama e neve e branca e mist'riosa...
E sou, talvez, na noite voluptuosa,
Ó meu Poeta, o beijo que procuras!

Florbela Espanca, Livro de Soror Saudade


07 abril, 2024

Morre lentamente


desconheço autor (internet)


Morre lentamente


Morre lentamente
quem não viaja, quem não lê,
quem não ouve música,
quem não encontra graça em si mesmo.

Morre lentamente
quem destrói o seu amor-próprio,
quem não se deixa ajudar.

Morre lentamente
quem se transforma em escravo do hábito,
repetindo todos os dias os mesmos trajetos,
quem não muda de marca, não se arrisca a vestir uma nova cor
ou não conversa com quem não conhece.

Morre lentamente
quem faz da televisão o seu guru.

Morre lentamente
quem evita uma paixão,
quem prefere o preto no branco
e os pingos sobre os "is" em detrimento de um redemoinho de emoções,
justamente as que resgatam o brilho dos olhos,
sorrisos dos bocejos, corações aos tropeços e sentimentos.

Morre lentamente
quem não vira a mesa quando está infeliz com o seu trabalho,
quem não arrisca o certo pelo incerto para ir atrás de um sonho,
quem não se permite pelo menos uma vez na vida,
fugir dos conselhos sensatos.

Morre lentamente
quem não viaja,
quem não lê,
quem não ouve música,
quem não encontra graça em si mesmo.

Morre lentamente
quem destrói o seu amor-próprio,
quem não se deixa ajudar.

Morre lentamente,
quem passa os dias queixando-se da sua má sorte
ou da chuva incessante.

Morre lentamente,
quem abandona um projeto antes de iniciá-lo,
não pergunta sobre um assunto que desconhece
ou não responde quando lhe indagam sobre algo que sabe.

Evitemos a morte em doses suaves, recordando sempre que estar vivo exige um feito muito maior que o simples fato de respirar. 
Somente a ardente paciência fará com que conquistemos uma esplêndida felicidade.


Martha Medeiros, A Morte Devagar


06 abril, 2024

𝑳𝒆𝒏ç𝒐𝒔 𝒑𝒓𝒆𝒕𝒐𝒔, 𝒄𝒉𝒂𝒑é𝒖𝒔 𝒅𝒆 𝒑𝒂𝒍𝒉𝒂 𝒆 𝒃𝒓𝒊𝒏𝒄𝒐𝒔 𝒅𝒆 𝒐𝒖𝒓𝒐, de Susana Moreira Marques

 


Autora: Susana Moreira Marques
Título: Lenços pretos, chapéus de palha e brincos de ouro
N.º de páginas: 125
Editora: Companhia das Letras
Edição: Abril 2023
Classificação: Não ficção
N.º de Registo: (3536)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


Descobri este livro na Bucholz no mesmo dia em que visitei a exposição “Mulheres do meu País”, de Maria Lamas patente na Fundação Calouste Gulbenkian. Já tinha visto a capa partilhada nas redes sociais, mas desconhecia o conteúdo. Entusiasmada pela sinopse, comprei-o de imediato, mas não o li logo porque outras leituras se interpuseram por questões profissionais. Assim, que surgiu a oportunidade peguei nele e saboreei-o. Sublinhei-o. Lentamente, desfrutei da viagem, isto é, das viagens que a autora e Maria Lamas me ofereceram. Com elas, mas sem saber exactamente com qual, percorri o meu/nosso país. É maravilhosa a forma como a autora mescla as duas viagens, as duas visões, as descobertas de ambas.

Este livro nasceu porque Susana Moreira Marques (SMM) foi convidada por Marta Pessoa para, a partir do livro de Maria Lamas, realizarem a mesma viagem pelo país em busca das mulheres e captarem imagens das quais resultaria o filme Um nome para o que sou.
Apesar do que já referi, este livro não é um relato de viagens. Tampouco se poderá afirmar que é exclusivamente sobre mulheres, mulheres retratadas e entrevistadas. Diria que se trata especialmente de narrações que resultam de reflexões, de apontamentos do que vive, de registos do que vê e das conversas que mantém, dos silêncios que capta, e sobretudo de busca interior, da tentativa de entender a sua avó através das mulheres que encontra e da explicação do passado à sua filha para uma melhor compreensão do presente e talvez do futuro.
“Narradora. Esse é um nome para o que sou.
Uma mulher que narra o que vê, o que ouve, o que pensa, também o que sente. (…) que não é imparcial. Que fica investida em personagens que passaram pelas mesmas experiências.” (p. 45)

É um livro sobre a memória de mulheres anónimas, trabalhadoras, sobre a memória da própria autora que revisita o seu passado quer através das imagens dos livros de Maria Lamas, quer através das mulheres que vai encontrando. “Como quase não tenho fotografias de família desse tempo, preencho as lacunas com as imagens que encontro.” (p. 39)

A viagem que SMM efectua vai permitir-lhe resgatar as suas raízes: “Talvez todas as viagens – no país ou fora do país – sejam feitas para termos a certeza de onde vimos.” (p. 25); vai, também, permitir manter viva as histórias de vida das mulheres, das agruras vividas, das palavras caladas, dos maus-tratos, da miséria, do analfabetismo, da ignorância. É importante relatar os factos “uma e outra vez para que não voltem a acontecer” (p. 60) E este é o principal legado, na minha opinião, que Susana Moreira Marques partilha com a sua filha e com os leitores do seu livro. É um livro que cruza passado, presente e futuro, que nos questiona sobre a nossa identidade, individual e colectiva, de todo um país.



𝑭𝒊𝒍𝒉𝒐 𝒅𝒂 𝑷𝒊𝒅𝒆, de Paulo Jorge Pereira

 



Autor: Paulo Jorge Pereira
Título: Filho da Pide
N.º de páginas: 239
Editora: Oro - Caleidoscópio
Edição: Setembro 2023
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3545)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐



Filho da Pide é um romance baseado em factos reais que expõe actuações cruéis  de agentes da polícia política (PIDE) sobre pessoas inocentes. São momentos duríssimos, violentos, mortíferos, até. Ao ler determinados episódios, não conseguimos evitar de nos questionar como é possível que existam - no presente, sim - seres humanos tão cruéis para com os seus iguais?
Apesar de termos conhecimento destes comportamentos aplicados aos detidos, quando lemos demoradamente, palavra após palavra, as acções praticadas com ódio e satisfação (é um paradoxo, mas é mesmo assim) pelos agentes, os insultos proferidos, os socos e pontapés desferidos com raiva, as torturas aplicadas, … sentimo-nos dilacerados, impotentes. Vivemos intensa e emocionalmente as pancadas, os gritos, as humilhações, a morte… não sentimos dó, sentimos raiva e revolta por tanta desumanização.

Para voltar à trama propriamente dita do romance, esta decorre entre 1967 e 2017 em Lisboa e Paris. Carlos, o protagonista, que cresceu em Paris com o tio, tem de regressar a Portugal a pedido dos pais, que julgava mortos, porque a mãe se encontra à beira da morte.

O regresso vai revelar-lhe que a sua mãe foi uma agente da PIDE “cruel, cheia de rancores e sem o mínimo de remorsos” que venera Salazar e que TUDO faz pela Nação.
Esse regresso vai espoletar um confronto doloroso com o passado, a partir de cartas escritas pela própria mãe toma conhecimento dos seus actos, dos seus crimes, das suas traições ao marido, do abandono do filho. Carlos não aceita a motivação dos pais, não compreende que possam estar do lado dos ditadores.

Quando terminamos este livro, não somos mais os mesmos. Algo mudou interiormente. E pensamos no presente. E receamos o futuro.
Quando nos preparamos para celebrar os 50 anos do 25 de Abril, da liberdade (de falar, de ler, de escrever, de sonhar), questiono-me se toda a gente tem noção do que se passou nos anos de ditaduras, de guerras. Com tudo o que está a acontecer em Portugal e pelo mundo, será que temos consciência da existência de um passado de silêncio, de denúncia, de violência, de segregação, de extermínio?

Depois de ter digerido este livro, peguei na obra de Susana Moreira Marques, Lenços pretos, chapéus de palha e brincos de ouro que também revisita as mulheres deste país entre 1947 e 1949 (não vou desenvolver aqui o conteúdo, fá-lo-ei mais tarde). Mas se faço esta referência é porque a autora termina a sua “Nota ao leitor” com a seguinte frase: “Não podendo corrigir o curso da história passada, poderia sempre corrigir a história futura.”

Faz todo o sentido que assim seja. Mas será que ainda vamos a tempo? Será que foi com esta preocupação que o autor Paulo Pereira escreveu agora este livro? Posso concluir que sim. Agrada-me que assim seja. Recordar para não esquecer! Torna-se essencial.



05 abril, 2024

𝑶𝒔 𝑴𝒆𝒎𝒐𝒓á𝒗𝒆𝒊𝒔, de Lídia Jorge

 

Autora: Lídia Jorge
Título: Os Memoráveis
N.º de páginas: 342
Editora: D. Quixote
Edição (3.ª): Maio 2014
Classificação: Romance
N.º de Registo: (BE)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐


Em Os Memoráveis, a protagonista, Ana Maria Machado, repórter da CBS, em Washington, é convidada a fazer um documentário sobre a Revolução dos Cravos de 1974. Ela e dois amigos jornalistas, residentes em Lisboa, revisitam 30 anos depois, essa data memorável com o intuito de escrever o argumento para uma séria intitulada “A História Acordada”.

O regresso ao passado é recuperado através de entrevistas realizadas a algumas das figuras ilustres de abril que ficaram imortalizadas numa fotografia tirada, aquando de um jantar no restaurante Memories. Esta fotografia funciona como personagem aglutinadora ao longo do romance, já que corporiza uma memória colectiva e simbólica da revolução.

É, assim, sob o ponto de vista de três jovens, que não viveram a ditadura, que a narrativa se desenvolve, questionando o passado inacabado em confronto com o presente desencantado. Uma a uma as figuras selecionadas vão ser convidadas a responder às várias questões planeadas “Onde estavam? O que sentiram na altura? Que balanço fazem agora, passados trinta anos? Qual a melhor imagem a falar sobre a hora, o lugar e o papel que desempenharam naquela tão esperada madrugada. Que guardam de tudo o que aconteceu?” (p. 68)


Todos os entrevistados recriam a glória da revolução, o entusiamo da queda do regime, a união dos militares, mas também a desilusão do esquecimento, o oportunismo de alguns, a dificuldade da construção de uma democracia estável.

No interior da “Viagem ao Coração da Fábula”, entrelaça-se uma outra viagem mais íntima. Esta consiste na revelação da falta de entendimento e de incompreensão entre a narradora Ana Maria Machado e o seu pai António Machado, também ele jornalista de referência na época, e votado, como os outros ao abandono. Esta relação constrói-se nos silêncios e segredos mútuos; nos questionamentos e nas tentativas de aproximação e de recuperação de um passado mais carinhoso.

Lídia Jorge extraiu da História personagens e factos para recriar a sua estória. Ao evocar uma data gloriosa e promissora de esperança e liberdade, não descurou os desencantos, as dificuldades e sobretudo o perigo de esquecer o passado. Num perfeito cruzamento de realidade e ficção, a autora convoca o leitor a formular as suas próprias reflexões, a estabelecer relações com os protagonistas de Abril; a distinguir sonho e desilusão; a reviver episódios desse dia memorável; a exaltar valores de gratidão, de solidariedade e de amizade.

Ao comemorarmos, este ano, os 50 anos de Liberdade é urgente repensar, refletir sobre o caminho que queremos continuar a percorrer. É urgente lembrar esse “dia inicial inteiro e limpo/ Onde emergimos da noite e do silêncio.” (Sophia)



29 março, 2024

Um poema de João Pires

 




Tu és fogo que queima intensamente
Caráter enérgico, forte e valente
Sempre disposta a novas aventuras
Líder habilidosa, cheia de posturas

Proativa e sem medo de arriscar
Sempre pronta para se aventurar
Lutas para abrir novos caminhos
Sempre à frente, seguindo os teus destinos

Com coragem e determinação
Tu enfrentas qualquer situação
Mesmo diante das adversidades
Segues em frente com firmeza e verdade.

João Pires

O tempo passa? Não passa.

 

Henry Alexander (1860 – 1894)
Snow Scene Through a Winter Window | 1870




O tempo passa? Não passa
no abismo do coração.
Lá dentro, perdura a graça
do amor, florindo em canção.

O tempo nos aproxima
cada vez mais, nos reduz
a um só verso e uma rima
de mãos e olhos, na luz.

Não há tempo consumido
nem tempo a economizar.
O tempo é todo vestido
de amor e tempo de amar.

O meu tempo e o teu, amada,
transcendem qualquer medida.
Além do amor, não há nada,
amar é o sumo da vida.

São mitos de calendário
tanto o ontem como o agora,
e o teu aniversário
é um nascer toda a hora.

E nosso amor, que brotou
do tempo, não tem idade,
pois só quem ama
escutou o apelo da eternidade.


Carlos Drummond de Andrade


27 março, 2024

𝑪𝒂𝒓𝒕𝒂 à 𝒎𝒊𝒏𝒉𝒂 𝑭𝒊𝒍𝒉𝒂, de Maya Angelou

 


Autora: Maya Angelou
Título: Carta à minha Filha
Tradutora: Maria do Carmo Figueira
N.º de páginas: 191
Editora: Lua de Papel
Edição (3.ª): Junho 2022
Classificação: Memórias/Testemunhos
N.º de Registo: (3441)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐



Carta à minha Filha reúne 28 textos. É um livro de testemunhos, de memórias, de histórias.
Neles, maya Angelou aborda as suas raízes, a sua vida pessoal, a sua educação, as suas inúmeras viagens, o papel da mulher, o preconceito racial e o amor.
Ao atribuir este título ao livro, Maya Angelou que nunca teve uma filha (apenas um filho) atribui uma carga emocional e intimista à mensagem que pretende legar aos seus leitores. No fundo, é uma homenagem às mulheres, com ela própria o escreve.

É um livro de ensinamentos, de vivências, de amor e de carinho, mas também de dificuldades próprias de uma sociedade preconceituosa, de obstáculos, de recaídas e de recomeços muitos graças à literatura, à escrita, à sua força e vontade de vencer.
“Carta à minha filha”, o texto inicial, tem como destinatário uma suposta “querida filha” e funciona como preâmbulo, já que nele dá indicações sobre o que pretende contar, “as lições que aprendi e as condições em que as aprendi”. Adianta que só pretende referir o que lhe foi útil na vida e que não vai referir como usou as soluções “porque sei que és inteligente, criativa, expedita e que as utilizarás como achares melhor”; refere também que cometeu muitos erros e que aprendeu a aceitar as suas responsabilidades.

Só uma mulher inteligente e sensível se expõe, se “desnuda” sem receio perante os seus leitores ao escrever e partilhar de forma tão directa e sincera os seus pensamentos, as suas acções, decisões, erros e lutas. As suas histórias de vida revelam o seu amadurecimento perante os defeitos, os medos, mas também os sucessos e as alegrias.

“Podes não controlar todos os acontecimentos da tua vida, mas podes decidir não deixar que eles te debilitem. Tenta ser o arco-íris da nuvem de outra pessoa. Não te queixes. Esforça-te por mudar as coisas de que não gostas. Se não conseguires mudá-las, muda a tua maneira de pensar (…)” Este é o último “conselho” que delega “às milhares de filhas.”

Recomendo a leitura. Lê-se muito bem, os textos são curtos e a escrita é fluida, poética, inspiradora.


22 março, 2024

𝑼𝒎 𝒒𝒖𝒂𝒓𝒕𝒐 𝒔ó 𝒔𝒆𝒖, de Virginia Woolf

 



Autora: Virginia Woolf
Título: Um quarto só seu
Tradutora: Isabel Castro Silva
N.º de páginas: 176
Editora: Penguin Clássicos
Edição: Maio 2023
Classificação: Não ficção
N.º de Registo: (3544)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐

Wirginia Woolf, neste seu fabuloso ensaio, relata-nos as duas conferências proferidas em 1928, em duas faculdades da Universidade de Cambridge para jovens universitárias sobre o tema "As mulheres e a ficção".

Nas suas conferências, a autora vai tentar explicar (palavras suas) a relação entre as mulheres e a ficção e “um quarto só seu”. É com esta questão que inicia a sua palestra.

Ana Luísa Amaral no prefácio considera-o um dos ensaios mais influentes do seculo XX sobre “a relação das mulheres com a escrita, a sociedade e o processo de criação literária.”
E quem sou eu para discordar. Bem pelo contrário, assumo que fiquei extasiada pela escrita e pelos argumentos apresentados. Argumentos perspicazes, irrefutáveis, sensíveis e provocatórios. (Tenho o livro profusamente sublinhado e anotado)
Coloquei-me no papel de ouvinte e absorvi cada palavra dita/escrita.

Virginia Woolf apresenta uma análise clara e concisa do papel da mulher na literatura. Explana com exemplos inequívocos como as mulheres foram ridicularizadas e excluídas do mundo da escrita, quer por limitações financeiras e falta de oportunidades quer por mero preconceito de género. Patenteia, ainda, a transversalidade da condição sexual feminina face à criação literária; a discriminação sofrida, o silenciamento da sua escrita; a dificuldade de acesso à leitura. Em suma, aponta as desigualdades educacionais, sociais e económicas que a mulher enfrentou ao longo da história e defende que uma mulher, se quiser escrever ficção, isto é, criar, precisa de dinheiro e de um quarto só seu. E “tem de haver liberdade e tem de haver paz”.

Mas, Virginia Woolf vai mais longe e na sua “divagação” como refere, encoraja as ouvintes a escrever “como mulheres” e mais uma vez exemplifica, revelando as dificuldades vividas por mulheres que ousaram escrever e contrariar “as limitações do seu sexo” como argumentavam os críticos no “seio de uma sociedade puramente patriarcal” . Woolf persegue a sua exortação, demonstrando o talento, o génio de quatro grandes romancistas inglesas – Jane Austen, as irmãs Charlotte e Emily Brontë, George Eliot (pseudónimo de Mary Ann Evans).
Não vou alongar-me mais, pois as suas palavras que merecem ser lidas são bem mais poderosas e elucidativas.

Concluo, afirmando que Virginia Woolf foi uma mulher muito à frente do seu tempo e que alguns dos temas citados e escrutinados ainda vigoram nos nossos dias. Quase um século depois, o seu texto continua a alimentar muitos debates.
Recomendo vivamente a leitura deste ensaio.



21 março, 2024

Dia Mundial da Poesia

 


Obra de Graça Morais





O amor, quando se revela,
Não se sabe revelar.
Sabe bem olhar p’ra ela,
Mas não lhe sabe falar.

Quem quer dizer o que sente
Não sabe o que há de dizer.
Fala: parece que mente…
Cala: parece esquecer…

Ah, mas se ela adivinhasse,
Se pudesse ouvir o olhar,
E se um olhar lhe bastasse
P’ra saber que a estão a amar!

Mas quem sente muito, cala;
Quem quer dizer quanto sente
Fica sem alma nem fala,
Fica só, inteiramente!

Mas se isto puder contar-lhe
O que não lhe ouso contar,
Já não terei que falar-lhe
Porque lhe estou a falar…

Fernando Pessoa



17 março, 2024

Nuno Júdice (1949 - 2024)

 


créditos: todoliteratura.es



Plano


Trabalho o poema sobre uma hipótese: o amor
que se despeja no copo da vida, até meio, como se
o pudéssemos beber de um trago. No fundo,
como o vinho turvo, deixa um gosto amargo na
boca. Pergunto onde está a transparência do
vidro, a pureza do líquido inicial, a energia
de quem procura esvaziar a garrafa; e a resposta
são estes cacos, que nos cortam as mãos, a mesa
da alma suja de restos, palavras espalhadas
num cansaço de sentidos. Volto, então, à primeira
hipótese. O amor. Mas sem o gastar de uma vez,
esperando que o tempo encha o copo até cima,
para que o possa erguer à luz do teu corpo
e veja, através dele, o teu rosto inteiro.

Nuno Júdice, in “Poesia Reunida”


___________

Elegia com uma variação romântica


As mulheres loucas arrumam os quartos, fazem
as camas desfeitas, empilham camisas e calças,
abotoam os cintos do infinito, prendem os laços
da sombra. Com os seus olhos cegos, enfiam
agulhas no buraco da vida, cosem as feridas
do amor que não tiveram, cantam devagar
a canção da idade fria. Dispo essas mulheres
no meu poema; espalho as suas roupas pelas cadeiras
do quarto; abro a cama onde as deito; rasgo
os pontos que acabaram de coser. O seu sexo -
seco pelos ventos de uma inquietação nocturna
- humedece-me os dedos. Desfolho os dias de março
enquanto desfloro os seus lábios. Por vezes,
as mulheres loucas abrem a porta da varanda,
respiram o perfume das trepadeiras brancas
da primavera, desmaiam com o sol.

Nuno Júdice, in “Poesia Reunida”



16 março, 2024

𝑨 𝑩𝒐𝒏𝒆𝒄𝒂 𝑫𝒆𝒔𝒑𝒊𝒅𝒂, de Paulo M. Morais

 


Autor: Paulo M. Morais
Título: A Boneca Despida
N.º de páginas: 380
Editora: Casa das Letras
Edição: Maio 2023
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3479)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


A Boneca Despida, de Paulo M. Morais é um romance arrebatador que nos lega uma mensagem que urge repensar nos dias de hoje.

O livro muito bem estruturado, é constituído por sete partes (Aurora, Manhã, Meio-dia, Tarde, Anoitecer, Noite, Crepúsculo) que constituem um dia, mas que efectivamente correspondem a 100 anos, o tempo de vida da protagonista, Julieta Silva. Cada uma destas partes abre com sugestões de bandas sonoras apropriadas a cada momento e que, na minha opinião, enriquecem sobremaneira a leitura do romance.
A subdivisão é assumida por datas (de 1915 a 2016) e em cada uma delas, em jeito de epígrafes, o autor insere pequenos textos representativos dos factos sociais, culturais e políticos da época e que se cruzam, obviamente, com as vivências de Julieta. Considero estes textos fundamentais e de extrema importância para a compreensão do enredo.

Julieta Silva é uma lutadora. Com uma vida infeliz e sofrida carrega as marcas de uma sociedade portuguesa patriarcal gerida sob a batuta castradora do regime do Estado Novo. As mulheres, tidas como “fadas do lar”, conformavam-se ao poder da figura masculina, marcas que permaneceram mesmo depois da revolução.
Julieta sujeitou-se a uma vida de servidão, de abandono, a quem impediram de prosseguir estudos, de ler, de sonhar, a quem não revelaram as alterações corporais e biológicas, a quem não ensinaram os factos de uma vida, nem sequer a experimentar emoções. Casou sem paixão, teve filhos que amou e protegeu incondicionalmente. Assumiu, submissa, o seu papel de neta, de filha, de sobrinha, de irmã, e mais tarde, de mulher, de mãe, de avó. “Naquela submissão, havia medo e solidão.” (p. 71). Sofreu reversos inesperados e dolorosos. Nunca se rebelou, nunca lutou pela sua felicidade, mas também nunca se lamentou, nem vacilou. Julieta é uma mulher extraordinária se tivermos em conta o período em que viveu. Bafejada por um destino cruel, impiedoso e sofrido, tudo faz para sobreviver e servir com amor os seus, sobretudo os filhos.

A Boneca Despida, é assim, um documento histórico pois espelha o papel da mulher ao longo de um século, mas também evidencia a repressão homossexual, a “beatice” vivida na Igreja que alimentava nos seus crentes noções de culpa e de pecado, impondo um moralismo excessivo, “Com bênção e selo papal, carimbava-se a aliança entre Igreja e Estado para a orientação dos portugueses nas suas vidas. No seio da família rezava-se e perdoava-se bastante.” (p. 155)

A escrita de Paulo M. Morais é fluida e apaixonante com passagens muito poéticas, mas também muito duras. A realidade social, histórica e social apodera-se da ficção, ou será o contrário? Não importa a ordem, o importante é mesmo que o leitor seduzido se deixa conduzir e, assim, página após página, vive intensa e emocionalmente a existência desta mulher, “que à custa da sua fraqueza [em impor as suas intenções], falhara” muitas vezes, mas que nunca desfaleceu perante as agruras do destino. Quantas mulheres calaram e continuam a calar uma vida de dor, de violência? Termino como iniciei: é urgente repensar a nossa existência, os valores da nossa sociedade. O que queremos? Para onde nos dirigimos?

Recomendo a leitura deste e dos outros livros do autor.



13 março, 2024

Oppenheimer, de Christopher Nolan

 


com Matt Damon, Robert Downey Jr., Emily Blunt, Cillian Murphy, Florence Pugh

Biografia; Drama |  180 min  | M/14 |  EUA, GB | 2023

estreia 20 - 07 - 2023



Sinopse:

Escrito e realizado por Christopher Nolan, "Oppenheimer" é um thriller épico filmado com câmaras IMAX® que puxa o público para o abissal paradoxo do enigmático homem que tem de arriscar destruir o mundo para o salvar.
O filme conta com Cillian Murphy como J. Robert Oppenheimer e Emily Blunt como sua mulher, a bióloga e botanista Katherine “Kitty” Oppenheimer.
O vencedor de um Óscar®, Matt Damon, interpreta o General Leslie Groves Jr., diretor do Projeto Manhattan, e Robert Downey Jr. é Lewis Strauss, comissário fundador da Comissão de Energia Atómica dos Estados Unidos.



Ver Trailer:



11 março, 2024

Vencedores dos Óscares 2024



Os Óscares foram entregues na noite de 10 para 11 de março, numa cerimónia realizada no Dolby Theatre, em Los Angeles. 
“Oppenheimer” que era o mais nomeado dos filmes, com 13 nomeações obteve  no final,   sete estatuetas: Melhor Filme, Melhor Realização (Christopher Nolan, Melhor Ator (Cillian Murphy), Melhor Ator Secundário (Robert Downey Jr.), Melhor Banda Sonora Original, Melhor Fotografia e Melhor Montagem.  



Premiados:

Melhor Filme — "Oppenheimer", Emma Thomas, Charles Roven e Christopher Nolan (produtores)

Melhor Realização — "Oppenheimer", de Christopher Nolan

Melhor Atriz — Emma Stone ("Pobres criaturas")

Melhor Ator — Cillian Murphy ("Oppenheimer")

Melhor Atriz Secundária — Da’Vine Joy Randolph ("Os excluídos")

Melhor Ator Secundário — Robert Downey Jr. ("Oppenheimer")

Melhor Filme Internacional — "A zona de interesse", de Jonathan Glazer (Reino Unido)

Melhor Curta-Metragem — "A incrível história de Henry Sugar", de Wes Anderson

Melhor Longa-Metragem de Animação — "O rapaz e a garça", de Hayao Miyazaki

Melhor Curta-Metragem de Animação — "War is over", de Dave Mullins e Sean Lennon

Melhor Documentário — "20 days in Mariupol", de Mstyslav Chernov

Melhor Curta-Metragem Documental — "The last repair shop", de Kris Bowers e Ben Proudfoot

Melhor Argumento Original — "Anatomia de uma queda", de Justine Triet e Arthur Harari

Melhor Argumento Adaptado — "American fiction", de Cord Jefferson e Percival Everett

Melhor Banda Sonora Original — "Oppenheimer", de Ludwig Göransson

Melhor Canção Original — "What was I made for?", de Billie Eilish e Finneas O'Connell, para "Barbie"

Melhor Design de Produção — "Pobres criaturas", James Price, Shona Heath e Zsuzsa Mihalek

Melhor Montagem — "Oppenheimer", Jennifer Lame

Melhor Fotografia — "Oppenheimer", Hoyte Van Hoytema

Melhores Efeitos Visuais — "Godzilla minus one", Takashi Yamazaki, Kiyoko Shibuya, Masaki Takahashi e Tatsuji Nojima

Melhor Som — "A zona de interesse", Tarn Willers e Johnnie Burn

Melhor Caracterização — "Pobres criaturas", Nadia Stacey, Mark Coulier e Josh Weston

Melhor Guarda-Roupa — "Pobres criaturas", Holly Waddington




10 março, 2024

Apresentação do livro Súbito, de Ana Zorrinho

                                                                            Foto de Paulo Pereira

Cumprimento todos os presentes.

Quero agradecer o convite formulado pela Ana Zorrinho para estar ao seu lado nesta iniciativa de partilhar palavras poéticas.

Quero congratular a Liliana Rodrigues e os elementos da sua equipa por nos proporcionarem este momento e este espaço maravilhoso. É tão bom falar de poesia num ambiente de fotografias de mulheres com livros.

É um prazer enorme assinalar o Dia Internacional da Mulher partilhando convosco as palavras escritas e ditas pela Ana Zorrinho. Ela sabe que é verdade.


Este dia, 8 de março  de 2024, é duplamente importante porque celebramos os 50 anos do dia “em que emergimos da noite e do silêncio” como o imortalizou Sophia de Mello Breyner no seu poema 25 de Abril 

      Esta é a madrugada que eu esperava
     O dia inicial inteiro e limpo
     Onde emergimos da noite e do silêncio
     E livres habitamos a substância do tempo


e porque estamos a dois dias de exercer um acto cívico e democrático (direito conquistado pelas mulheres).

 Acabámos de ouvir publicamente uma jovem, a Catarina, a tocar violino e uma mulher a ler a poesia que escreveu. 
Em 1943, no boletim mensal da Mocidade Portuguesa Feminina, publicava-se o seguinte texto (apud A Boneca Despida, Paulo M. Morais)

"Queridas raparigas! Sede boas, sensatas, alegres, dedicadas, esquecidas de vós mesmas e sereis mulheres superiores, sem pretender rivalizar em tolas superioridades com os homens, o que nada vos engrandece, antes diminui! Cada um deve ocupar o seu lugar - aquele que a Providência lhe marcou. E o vosso, como rainhas do lar, é o mais belo."

Este estatuto de "fada do lar" prolongou-se até 1974. A Ana Zorrinho nasceu em 1978. Já a madrugada era inteira e limpa. Este facto permitiu-lhe crescer em liberdade, frequentar a escola, ler, escrever, pensar, sorrir, sonhar e entender o mundo “como poder ser o lar que a palavra espera” como o escreveu e acabou de ler no prefácio de Súbito.

No seu primeiro livro Histórias de um tempo só, a Ana, sem o ter vivido, oferece-nos histórias desse tempo, sombrio, histórias de vida tecida, de momentos, de memórias. Micro histórias de gente trabalhadora, sofrida, enrugada, cansada, resignada. Dez textos de um tempo “frio, cortante”, ventoso, escuro, silencioso, sem palavras. Um tempo indiferente à dor, à violência, à solidão, à velhice, à morte…

(Leitura do texto "Maria". p. 13, por Sónia)

Quando em Julho na Festa do livro me vi com Súbito na mão, observei-o atentamente, (gostei da apresentação) folheei-o, li na diagonal alguns poemas, tentei perceber a razão do título e na contracapa procurei alguma informação extra, uma sinopse. Deparei-me com algo pouco comum: o significado da palavra Súbito. Fiquei a matutar…. E pensei: É natural, a Ana é assim mesmo, gosta de surpreender o leitor. Gosta de o conduzir na descoberta de sentidos, de emoções, convoca-o a participar ativamente, não lhe facilita a vida porque nem tudo é dito. O mais importante fica mesmo nas entrelinhas.

Era necessário, obviamente, ler os poemas.

Voltei ao início e li o primeiro poema “palavras” (p. 9). Este sugere, desde logo, uma leitura expressiva, sentida, impetuosa (súbita), silenciosa, … fui até ao fim do livro e descobri “palavra nascente” que nos remete para a importância do nascer, como um recomeço.
 
Leitura do poema (p. 73- Ana)

Na leitura e releitura dos restantes poemas deixei-me conduzir pelas palavras, pela escrita visual, sensível e sensual.

(Leitura do poema “lugar” p.11, por José)

Descobri um ritmo variável, vagaroso, torrencial, deslizante, reflexivo, súbito…. Gosto desta volubilidade.

 (leitura do poema “último poema” p. 67, por Paulo)

Este “último poema” sugere o fim da vida, mas é apenas o fim que conduzirá forçosamente ao recomeço. Esta circularidade da vida expressa nas Palavras contidas nos títulos e nos poemas, como já referi, torna-se mais consistente se tivermos em conta a existência de um fio condutor que é o Tempo. O Tempo surge na espera, na solidão, na brevidade da vida, na morte, na ausência, na verdade, na suspensão (“Oh ampulheta/Inclina-te um pouco/Suspende o cair do grão” (p. 45), na saudade, no mergulho, na esperança, no silêncio, no prazer, na cadência, no vazio da escrita pasmado em "vértice" (p. 51)
          
                            No extremo do vértice
                            Vejo plenamente o vazio a 360 graus
                            Flicto-me para o salto
                            Sobre o limite
                            da linha
                            Mergulho no nada
                            Desta página em branco
                            Afogo-me 
                            Nas palavras inexistentes


O drama do escritor perante a página em branco e nas palavras inexistentes, transborda para mim, leitora, em magia, deslumbramento. Não me canso de o ler. De os ler, todos.
Para concluir posso afirmar que a subjetividade presente na escrita da Ana exige do leitor uma participação efetiva, oferecendo-lhe múltiplas leituras. Súbito cumpre, deste modo, o propósito da poesia.

8 de Março de 2024 | 21h30 | Centro de Exposições
Centro de Artes de Sines

Graciosa Reis





05 março, 2024

Encontro com o autor Ondajki - Texto de apresentação


Foto GR

Ndalu Almeida, conhecido por Ondjaki é um poeta e escritor do mundo. Nasceu e estudou em Angola (5 julho de 1977), licenciou-se em Lisboa (sociologia), fez o doutoramento em Itália e estudou ainda em Nova Iorque. O seu percurso artístico vai para além da escrita, passa pelo cinema (filmou um documentário), pelo teatro, pela pintura e em 2020 lançou-se num novo projecto ao criar a Livraria Kiela em Luanda.

As suas obras (contos, poesia, romances, novelas, teatro) estão traduzidas em várias línguas. E com elas já recebeu inúmeros prémios em Angola e no estrangeiro. Destaco o Prémio Saramago em 2013 com o romance Os Transparentes.

Quando em 2007, na Livraria A das Artes ouvi, pela primeira vez, Ondjaki falar, ou melhor, contar estórias, fiquei maravilhada e decidi nunca mais o perder de vista.

Ao ler os seus livros, acredito que Ondjaki teve uma infância de momentos de aqui, felizes, aconchegada de palavras ditas por um “tio Rui que era poeta”, por uma tia Alice que “tirava letras do bigode do tio” e sobretudo pela “avó dezanove” que tinha segredos, “gigantescas maravilhas” e que lhe contava, e se calhar ainda conta, estórias de “pirilampos cintilantes”, “pirilampos apagados”, “estrelas pirilampas”, de borboletas, de brincadeiras, de soviéticos, de transparentes…

Ondjaki, atento e sensível, cientistou a alegria, o brilho, os pirilampos, os cheiros, mas também a sua rua, o seu bairro, a sua cidade, o seu país, o seu/nosso mundo; aprendeu que olhar através de Uma escuridão bonita é sonhar, é sentir o coração, é espanadar tristezas, medos, dificuldades; entendeu que assobiar resgata a alma, desperta desejos e sentimentos e liberta o sonho (outra vez o sonho. Sempre o sonho.)

Ondjaki, na sua escrita, legou-nos o seu entendimento do mundo. Nela há prendisajens, há palavras poéticas que enlaçam, abraçam, esculpem e tornam-no xão. Como exemplo, nas estórias de Os da minha rua, fica claro pela voz de Ndalu, como as pequenas coisas são importantes para as crianças. Como os ensinamentos dos mais velhos são preciosos, sábios….

Para escrever os seus livros, Ondjaki resgata memórias, vivências, deslembramentos, sonhos e futuros. Em todos, cria universos mesclados de realidade, sentimento, imaginação, fantasia. Em todos, destaca e critica a sociedade angolana, abordando desigualdades sociais, violência (guerra), preconceitos, racismo. Em todos, manobra as palavras, como lhe escreveu Manoel de Barros, inventa palavras, brinca com os sons, os ritmos, os sentidos das palavras. Em todos imortaliza sonhos, emoções.

Por tudo isto, Ondjaki é um contador de estórias único e encantador. Gosto de o ouvir falar. Gosto de o ler. Gosto de o ler em voz alta para melhor captar a harmonia e a poesia das suas palavras.

Vou terminar, mas como Ndalu, também não gosto de despedidas. E agora, cito:  ”Nas despedidas acontece isso: a ternura toca a alegria, a alegria traz uma saudade quase triste, a saudade semeia lágrimas, e nós, as crianças, não sabemos arrumar essas coisas dentro do nosso coração.”

Será que nós, adultos, sabemos? Fica a pergunta. Eu, não vou responder, prefiro passar a palavra e escolher a ternura que toca a alegria de ter Ondjaki aqui, na nossa biblioteca para nos contar mais umas estórias e assim a nossa “escuridão ficar mais bonita”.

Biblioteca escolar ESPAB, 05 de Março de 2024
Graciosa Reis


24 fevereiro, 2024

Anatomia de uma Queda, de Justine Triet

 


com Sandra Hüller, Swann Arlaud, Milo Machado-Graner

Drama; Thriller  | 151 min | M/12  | França | 2023

estreia 01-02-2024


Sinopse:

Sandra, uma escritora alemã, o seu marido francês Samuel e o filho Daniel, de onze anos, vivem um ano de forma isolada numa cidade remota dos Alpes franceses. Quando Samuel é encontrado morto na neve, caído do chalé, a polícia questiona se terá cometido suicídio ou se foi assassinado. Perante a tese de homicídio, Sandra torna-se a principal suspeita. Pouco a pouco, o julgamento irá revelar- se não apenas uma investigação das circunstâncias da morte de Samuel, mas uma inquietante viagem psicológica às profundezas da relação conflituosa do casal.

Ver Trailer: 


17 fevereiro, 2024

𝑶 𝑨𝒏𝒊𝒃𝒂𝒍𝒆𝒊𝒕𝒐𝒓, de Rui Zink

 



Autor: Rui Zink
Título: O Anibaleitor
N.º de páginas:135
Editora: Teodolito
Edição: Outubro 2014
Classificação: Novela
N.º de Registo: (BE)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐

Que leitura agradável, divertida, plena de humor. Adorei conhecer o Anibaleitor, uma figura mítica, quiçá, o Adamastor dos Lusíadas ou o Mostrengo de A Mensagem, ou o King Kong, das telas de cinema, bem como adorei acompanhar as aventuras do jovem protagonista que não gosta nada de ler.

A forma como se conheceram não vou narrar, pois anularia o encanto desta narrativa. Contudo, no primeiro parágrafo, já deixei algumas pistas…

É na ilha, onde decorre uma parte da acção que estes dois improváveis comparsas se vão conhecer e tornar amigos. O jovem que, de início, teme ser devorado pelo monstro, e para fugir a tão ingrato destino aceita, à semelhança “de uma tal Xerazade” das Mil e uma noites, ler durante o dia os livros indicados pelo seu “descomunal interlocutor” para à tardinha tecerem juntos comentários sobre os livros lidos.
“Sabes, fiquei a tarde toda a magicar naquela dos livros de que não gosto. (…) O texto é um tecido e o tecido é um texto. O entrelaçar de fios diferentes – ritmo, sentido, letras – para fazer um tapete de palavras, um tapete com um desenho que pode ser mais ou menos laborioso, intrincado, estimulante, misterioso. Ou seja, uma coisa que se leia. Topas?” (pp. 89 -91)

A partir das leituras e das conversas surgem grandes reflexões sobre a importância da leitura, sobre a escolha de determinados livros, sobre a mensagem emanada dos mesmos.
A narrativa funciona como uma manta de retalhos (é o próprio autor que o refere) tal é a intertextualidade com poemas, autores, obras, imagens, personagens, letras de canções. Uns citados directamente, outros revelados nas entrelinhas e outros mais subtis que apelam, ou não, ao conhecimento, à memória do leitor. Não é importante para a compreensão da narrativa descobrir todas as referências literárias, culturais, mas torna-se um desafio.
Apesar de ser um livro de fácil leitura, a mensagem não é tão linear como aparenta. O próprio autor, no final, alerta para a possibilidade de este “texto poder esconder outro”. E eu concordo. Fiquei com a ideia de que nos quis narrar a sua própria caminhada na descoberta dos livros, da leitura, do prazer de ler e, mais tarde, do acto de escrever.

“Como castigo obrigaram-me a ser escritor, uma sina que não desejo nem ao meu maior inimigo. É pior que prisão perpétua! Passamos o dia sentados a uma mesa, frente ao papel em branco ou ao computador em cinzento; o rabo amolece de tanto estarmos sentados, e ficamos a escrevinhar, a escrevinhar, sujeitos a artroses, a escrevinhar, a escrevinhar – histórias que, ainda por cima, quase ninguém lê, a menos que sejam adaptadas para cinema ou televisão.” (p. 124)


O Anibaleitor é uma autêntica diversão que através de um humor inteligente e de uma escrita simples e sarcástica convida jovens e menos jovens a “devorar” livros e a descobrir a importância da leitura num mundo cada vez mais votado à tecnologia.

Convido-vos a participar neste banquete, a devorar livros, mas sobretudo a degustar as palavras servidas pelo autor.
O livro que li é da minha biblioteca escolar, mas vou comprar um só para mim, pois há muitas passagens que quero sublinhar, seguindo o conselho de Anibaleitor, e, também, porque considero que é um livro que deve permanecer na minha mesa-de-cabeceira para, de vez em quando, me alimentar os sonhos.

“Para o Anibaleitor, um livro era um encontro entre duas vozes: a nossa e a do livro. E sublinhar um livro, não tinha mal nenhum, era quase como que ler a dobrar; era sinal de que encontráramos uma passagem, uma frase, um parágrafo, que nos tocava no texto e isso, segundo ele, valia ouro. Era quase como ganhar, de borla, um segundo livro.” (p. 73)