31 maio, 2021

𝒎𝒂𝒏𝒉ã 𝒆 𝒏𝒐𝒊𝒕𝒆, de Jon Fosse



Autor: Jon Fosse
Título: manhã e noite
N.º de páginas: 111
Editora: Cavalo de Ferro
Edição: 1.ª Novembro 2020
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3268)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐


O título “manhã e noite” exprime metaforicamente o acto de nascer e de morrer. As duas partes abordam, assim, o nascimento e a morte de Johannes, protagonista deste romance.
Na primeira parte, o autor coloca, Olai, o pai de Johannes num monólogo reflexivo a ansiar pelo nascimento do filho, sem contudo, perder consciência de que quem nasce, ao nada voltará. Na segunda, a longa “reflexão encantatória” é feita pelo próprio Johannes.
“e agora ele virá, enquanto Marta, a mãe grita de dor, (…) e mais tarde, quanto tudo terminar , quando a hora dele chegar, desvanecer-se-á e tornará a ser nada e regressará ao lugar de onde veio, do nada para o nada, é esse o trajecto da vida, “ (p.14)

Jon Fosse de uma forma intensa, simples e despojada apresenta-nos uma belíssima reflexão sobre a efemeridade da vida. Neste texto, o nascimento está associado à dor, à angústia, à ansiedade da espera, enquanto a morte, pelo contrário, é leve e serena, sem medo e sem sofrimento.
Gostei muito da maneira como o protagonista foi conduzido por um amigo, Peter, também ele já morto, ao barco da travessia, indicando-lhe o bom caminho e levando-o para junto das pessoas que amou em vida. É uma clara alegoria a Caronte, o barqueiro que conduzia as almas dos recém-mortos à margem do Bem ou do Mal.
“E porque eu era o teu melhor amigo, cabe-me a mim ajudar-te a atravessar.” (p-107)

Neste pequeno livro, o autor pensa e questiona-se sobre a vida, sobre a existência de Deus. Segundo as suas reflexões, por vezes provocadoras, a vida e a morte, a manhã e a noite, devem ser encaradas com simplicidade, e dignidade. Aceitar o que Deus “porque ele existe” (p.15) rege para a vida de cada um, mas aceitar, de igual forma, o que Satanás também vai providenciando.

Na minha opinião, estamos perante uma reflexão filosófica escrita de forma simples e poética. Gostei muito, principalmente, da segunda parte.


29 maio, 2021

𝑴𝒂𝒓𝒊𝒂 𝑴𝒐𝒊𝒔é𝒔, de Camilo Castelo Branco

 


Autor: Camilo Castelo Branco
Título: Maria Moisés
N.º de páginas: 110
Editora: Porto Editora
Edição: 1.ª Maio 2014
Classificação: Novela
N.º de Registo: (Empréstimo BE)




OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐


Maria Moisés integra a obra Novelas do Minho. É a sexta das oito novelas que foram publicadas entre 1875 e 1877. Como o título da obra indica, trata-se de um retrato do Minho. Porém, e apesar da acção se situar naquela região específica, CCB retrata de forma satírica a realidade de todo um país marcado pela crise política provocada pela Revolução francesa e pelas invasões napoleónicas, mas também pelas lutas liberais.

Esta novela, dividida em duas partes, de pendor romântico apresenta já alguns traços realistas. A primeira parte narra a história de Josefa Lage que vive um amor proibido porque contrariado pelo pai do jovem António e que acaba num final trágico (tipicamente camiliano).

“ – Meu pai – respondeu António com respeitosa serenidade – pode V.ª S.ª dispor da minha vida; mas do meu coração já eu dispus. Ou hei-de casar com uma rapariga de baixa condição a quem prometi, ou não casarei nunca.”
(…) Ao outro dia, um mandado da regência ao intendente-geral da Policia ordenava a prisão do cadete de cavalaria António de Queirós e Meneses no Limoeiro" (pp. 36 e 37)

A segunda parte, revela-nos Maria Moisés, a menina enjeitada, salva do rio e criada pelos fidalgos da quinta de Santa Eulália. Como reconhecimento pela vida que teve decide, muito jovem, dedicar-se “aos meninos enjeitados”, acolhendo-os em sua casa.

CCB apresenta-nos, mais uma vez uma história sentimental com uma técnica narrativa muito bem estruturada, sobretudo na primeira parte: o leitor, no início da narrativa, é confrontado com uma morte, e só depois, ao longo da leitura, e através da fala das personagens, vai conhecendo a história de Josefa e a causa da sua morte.
Em suma, temos duas histórias, uma passional, de amor proibido e outra de solidariedade, de reencontro, ocorridas numa região aprazível, mas com gente agreste e conservadora.



𝑳á, 𝒐𝒏𝒅𝒆 𝒐 𝒗𝒆𝒏𝒕𝒐 𝒄𝒉𝒐𝒓𝒂, de Delia Owens

 


Autor: Delia Owens
Título: Lá, Onde o Vento Chora
N.º de páginas: 390
Editora: Porto Editora
Edição especial: Julho 2019
Classificação: Romance; YA
N.º de Registo: (Empréstimo BE)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐



Esta é a história de Kya, a miúda do pantanal. Um miúda que cresce sozinha depois de ter sido abandonada por todos os elementos da sua família. Kya, aos seis anos de idade, vai ter de aprender a sobreviver.

Apesar das dificuldades sentidas inicialmente, da dor provocada pelo abandono da família, principalmente, o da mãe, pela rejeição e intolerância a que é votada pelos habitantes da povoação, pela solidão de anos e anos, poder-se-ia pensar que a narrativa iria resvalar para a tristeza e o sofrimento, pelo contrário, é um hino à liberdade, ao amor e à beleza da natureza. Há descrições belíssimas da paisagem e de algumas espécies típicas do pantanal.

“E finalmente, num momento inesperado, a dor que sentia no coração desapareceu como água na areia. Continuava presente, mas a grande profundidade. Kya poisou a mão sobre a terra viva e morne, e o pantanal passou a ser a sua mãe.” (p. 43)

Trata-se de uma narrativa de formação onde a aprendizagem da vida, a descoberta de si e do corpo, estão fortemente ligadas à natureza. Kya rege a sua vida pelos ciclos do pantanal, descobre o seu corpo e os comportamentos humanos através da observação atenta dos animais. Kya selvagem e solitária faz do pantanal a sua casa e dos animais os seus amigos.
“Grande parte do que sabia aprendera-o com a vida selvagem. A natureza ensinara-a, nutrira-a e protegera-a, quando mais ninguém o fizera.” (p.385)

Extremamente inteligente e sensível rapidamente aprende a defender-se de tudo e de todos, a lutar contra o preconceito e a injustiça, mas também a descobrir o amor e a desilusão. Profundamente conhecedora e defensora da vida selvagem, a miúda do pantanal não entende o comportamento do ser humano e rejeita conviver e integrar-se na sociedade. “A natureza parecia ser a única pedra firme no caminho.” (p.225)

𝑳á, 𝒐𝒏𝒅𝒆 𝒐 𝒗𝒆𝒏𝒕𝒐 𝒄𝒉𝒐𝒓𝒂 é, simultaneamente, uma história deliciosa e pungente. Ninguém fica indiferente à vida de Kya e à sua relação com a natureza.


24 maio, 2021

Carlos Fiolhais escreve sobre o último livro de Afonso Cruz





No seu mais recente título, uma coletânea de pequenos textos, histórias e divagações à volta de livros, diz-nos que estes tanto podem matar como salvar-nos.



Tenho o vício dos livros. Não resisto nunca a entrar numa livraria ou alfarrabista. Leio pelo menos um livro por semana para fazer as recensões para este jornal e, por vezes, são mesmo dois ou três. Já me aconteceu regressar de uma livraria todo contente com um livro novo na mão, para verificar na minha biblioteca que afinal já tinha esse título, não passando de uma nova edição: não fico desconsolado, pois, se o tenho em duplicado, posso sempre oferecê-lo. E, de facto, duas edições diferentes são dois livros diferentes.

Se houvesse uma comunidade de “bibliófilos anónimos” não hesitaria em entrar, procurando apoio para “alcançar e manter a sobriedade através da abstinência total” de compra de livros. Encontraria lá gente muito interessante, como, por exemplo, Afonso Cruz, que acaba de publicar O Vício dos Livros, com a chancela da Companhia das Letras (do grupo Penguin Random House). É uma bela edição de capas duras, com ilustrações do próprio autor, que foi lançada no Dia Mundial do Livro e do Direito de Autor, 23 de Abril.

Tive a oportunidade de entrevistar Afonso Cruz em 23 de Novembro de 2018, no 10.º aniversário do Rómulo, Centro Ciência Viva da Universidade de Coimbra, o centro que fundei à volta de uma biblioteca que homenageia Rómulo de Carvalho (nome real do poeta António Gedeão). Por essa biblioteca têm passado escritores como João Lobo Antunes, José Tolentino de Mendonça e Onésimo Teotónio Almeida. Tenho oferecido muitos livros a essa biblioteca, juntando-os a livros oferecidos, entre outros, por Guilherme Valente, o editor da Gradiva, e pela família de António Manuel Baptista, o grande divulgador da ciência. Também lá estão alguns livros de Afonso Cruz, que ele assinou na altura.

Afonso Cruz dispensa apresentações para além daquela que ele, com concisão, faz de si próprio nas badanas dos seus livros: “Escritor, ilustrador, cineasta e músico da banda The Safed Lam. Em Julho de 1971, na Figueira da Foz, era completamente recém-nascido, e haveria, anos mais tarde, de frequentar lugares como a António Arroio, as Belas-Artes de Lisboa, o Instituto Superior de Artes Plásticas da Madeira e mais de meia centena de países. Assina, desde Fevereiro de 2013, uma crónica mensal no Jornal de Letras, Artes e Ideias sob o título “Paralaxe”. Recebeu vários prémios e distinções nas diversas áreas em que trabalha, vive no campo e gosta de cerveja.”

Fui, depois da entrevista no Rómulo, jantar com ele, tendo confirmado que gosta de cerveja, bebida que, segundo me explicou, era na Terra Santa mais comum do que o vinho no tempo de Jesus Cristo. Daí o curioso título de um dos seus romances, Jesus Cristo Bebia Cerveja (Alfaguara, 2012). Os seus títulos primam, aliás, pela originalidade. O primeiro, com um título também de ressonâncias religiosas, A Carne de Deus (Bertrand, 2008), é uma história de aventuras tendo a maçonaria como pano de fundo. Entre esses dois livros saíram A Boneca de Kokoschka (Quetzal, 2010; reedição: Companhia das Letras, 2018) e O Pintor Debaixo do Lava-Loiças (Caminho, 2011). Seguiram-se, com uma regularidade impressionante, outros romances: O Livro do Ano (Alfaguara, 2013), O Cultivo de Flores de Plástico (idem, 2013), Para Onde Vão os Guarda-Chuvas (Companhia das Letras, 2013), Flores (idem, 2015), Nem Todas As Baleias Voam (idem, 2016), Jalan Jalan: Uma leitura do mundo (idem, 2017; “jalan” significa, em indonésio, “passear”), O Princípio de Karenina (idem, 2018), e Paz Traz Paz (Companhia das Letras, 2019). O estilo literário é, como os títulos, bastante original. Alguns destes livros foram premiados: por exemplo, Jalan Jalan ganhou em 2017 o Grande Prémio de Literatura de Viagens Maria Ondina Braga da Associação Portuguesa de Escritores e da Câmara Municipal de Braga.

Gosto particularmente da colecção de sete livros de Afonso Cruz, intitulada Enciclopédia da Estória Universal, quase todos da Alfaguara, saídos entre 2009 e 2018. São conjuntos de histórias apócrifas e aforismos de autores fictícios. De início estranhei, mas depois entranhei.

Afonso Cruz escreveu também vários livros infanto-juvenis, sendo o primeiro Os Livros que Devoraram o Meu Pai (Caminho, 2010) e o mais recente Como Cozinhar uma Criança (Alfaguara, 2019). Mais uma vez títulos extraordinários. Um outro livro recente dele é o ensaio O Macaco Bêbedo Foi à Ópera (Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2019), uma breve história cultural do álcool, com histórias sobre cerveja e vinho.

O Vício dos Livros é uma colectânea de pequenos textos, histórias ou divagações à volta de livros, que, na sua maior parte, viram a luz do dia no Jornal de Letras. O primeiro, “A primeira vez que conheci um esquifobético (A neve desaparece mas o original não desoriginaliza)”, conta os rabiscos que um brasileiro maluco fez intempestivamente no livro A Brincadeira de Milan Kundera que Cruz estava a ler, uma algaravia que o “esquifobético” - um termo não dicionarizado - traduziu para dar a frase do parêntesis. O último, “A voz dos livros”, conta a oferta que um avô lhe fez do livro Eles Vieram de Madrugada, de Manuela Câncio Reis, a mulher do escritor Soeiro Pereira Gomes, que foi preso político durante longos anos. A dedicatória do avô, também preso político, dizia: “Para o meu neto, para que ele perceba um pouco daquilo que passei”. Escreve Cruz: “Este livro deixou então de ser de Manuela Câncio Reis para passar a ser o livro que o meu avô me escreveu. E a voz que ouvi enquanto lia o livro era a sua”.

Revelo um pouco deste estimulante livro sobre livros. Aprendi que os livros podem matar. O texto “Porém, a poesia pode matar amigos” conta a história de dois amigos que discutiram qual era o género literário mais significativo, a poesia ou a prosa. O amante de poesia acabou por matar o antagonista à facada. No texto “O poeta que foi assassinado pelos seus próprios livros”, Afonso Cruz, depois de descrever casos reais em que a queda de uma biblioteca matou o seu proprietário, escreve: “Qualquer bom leitor, quanto maior for a sua biblioteca, mais sente o peso esmagador do que leu e, principalmente, do que não leu […] e nunca poderá ler, ainda que, felizmente, o faça de forma menos literal do que os exemplos antes referidos.” A literatura, se por vezes mata, noutras vezes pode salvar. Em “A morte, perante os livros, fica sem poder” o autor cita um estudo da Universidade de Yale que expõe os benefícios da leitura: “Ler 30 minutos por dia fará viver, em média, mais dois anos. Se não for pelo prazer de ler, talvez devamos ler pela nossa saúde.”

Um dos textos que mais gostei está relacionado com a física. Intitulado “Principio de Anti-Fermat”, parte da experiência do autor, adolescente, a ler num autocarro a caminho da escola: “O princípio de Fermat diz-nos que a luz não percorre a distância mais curta, mas sim o tempo menor entre dois pontos. Um leitor, muitas vezes, tenta encontrar o caminho mais lento entre dois pontos. Era isso o que eu fazia. Ia para a escola pelo caminho com mais palavras.”

Sobre a liberdade que a leitura confere, Afonso Cruz conta a história de uma mulher do Kuwait que abandonou as vestes e os hábitos tradicionais: “Comecei a ler e libertei-me”. Há outras citações. Por exemplo, de uma inscrição egípcia: “Na biblioteca do faraó Ramsés II estava escrito por cima da porta de entrada: Casa para terapia da alma”. E do escritor francês Jules Renard: “Quando penso em todos os livros que tenho para ler, tenho a certeza de ainda ser feliz.” São citados outros escritores como Plutarco, Lewis Carroll, Edith Wharton, Stefan Zweig, Franz Kafka, Aldous Huxley, Rainer Maria Rilke, Elias Canetti, George Steiner e Rosa Montero.

O texto “O que se esconde debaixo de um poema” fez-me lembrar Jorge Luís Borges: “Um poeta, quando escreve um poema e levanta a folha onde o escreveu, descobre uma infindável pilha de poemas onde foi escrita toda a poesia que precedeu o seu poema, e ao pousar essa mesma folha verá que já contém o peso de incontáveis poemas escritos sobre aquele que acabou de escrever.” De facto, os livros têm sempre um passado e um futuro.

Vou colocar O Vício dos Livros na minha biblioteca perto de outros livros sobre livros. Acho que fica bem perto do livrinho de Montaigne Dos Livros (Teorema, 1999), que aliás Afonso Cruz cita, e onde o escritor francês comenta as suas leituras: “Não me apego aos livros novos porque os antigos me parecem mais ricos e mais sólidos”. E do de Proust O Prazer da Leitura (idem, 1997), onde se lê: “O que difere essencialmente entre um livro e um amigo, não é a sua maior ou menor sensatez, mas a maneira como se comunica com ele; a leitura, ao arrepio da conversa, consistindo para cada um de nós em receber comunicação de outro pensamento, mas permanecendo a sós.”

Na biblioteca do Rómulo, em Coimbra, os livros de Afonso Cruz estão na companhia dos de Carl Sagan, que, em Cosmos (Gradiva, 2020), escreveu: “Os livros permitem-nos viajar através do tempo, de beber na própria fonte o saber dos nossos antepassados. A biblioteca põe-nos em contacto com as concepções e o saber, a custo extraídos da natureza, das maiores mentes até agora existentes, com os melhores professores, provindos de todo o planeta e de toda a nossa história, para nos instruírem sem nos fatigarmos e para nos inspirarem a dar a nossa contribuição ao saber colectivo da espécie humana.” O mais recente livro de Afonso Cruz entrará um dia no Rómulo. Tenho esperança de que ajude a fomentar o vício dos livros.


CARLOS FIOLHAIS 



19 maio, 2021

𝑨𝒓𝒔è𝒏𝒆 𝑳𝒖𝒑𝒊𝒏, 𝑳𝒂𝒅𝒓ã𝒐 𝒅𝒆 𝑪𝒂𝒔𝒂𝒄𝒂, de Maurice Leblanc



Autor: Maurice Leblanc
Título: Arsène Lupin, Ladrão de Casaca
N.º de páginas: 166
Editora: Leya
Edição especial: Fevereiro 2019
Classificação: Policial
N.º de Registo: (3282)

OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


Conheci o Arsène Lupin, nos anos 70, através da televisão francesa. Era uma fã incondicional e agora com a nova edição dos seus livros, decidi reencontrá-lo.
Arsène Lupin, personagem criado por Maurice Leblanc, apareceu ao público, pela primeira vez, publicado na revista “Je Sais Tout”, corria o ano de 1905. Como teve um sucesso retumbante, o autor decidiu dar continuidade aos contos. Consta também, que este herói foi criado par dar resposta ao famoso detective inglês, Sherlock Holmes. Efectivamente, o último conto deste primeiro livro intitula-se “Sherlock Holmes chega demasiado tarde”. É um conto maravilhoso e, neste primeiro confronto entre o ladrão e o detective mais inteligentes da esfera ficcional, é, inevitavelmente, Arsène Lupin que sai vencedor, porém fica a promessa de novos encontros e quem sabe, talvez com desfechos diferentes.

“ E acredito que Arsène Lupin e Sherlock Holmes se encontrarão novamente algum dia. Sim, o mundo é muito pequeno. Iremos encontrar-nos, temos de encontrar-nos, e depois…” (p. 166).

O protagonista é um autêntico ladrão de casaca, muito cavalheiro e charmoso (le gentleman cambrioleur) que rouba para humilhar os ricos, a burguesia francesa.

Personagem muito carismática e sarcástica, age com regras bem definidas: não mata, não usa violência, anuncia-se, diverte-se e deixa sempre um cartão de visitas. Todos os seus actos são minuciosamente arquitectados. É mesmo encantador!


16 maio, 2021

𝑽𝒐𝒗ô 𝑻𝒔𝒐𝒏𝒈𝒐𝒏𝒉𝒂𝒏𝒂, de Augusto Carlos

 

Autor: Augusto Carlos
Título: Vovô Tsongonhana
N.º de páginas: 106
Editora: Nova vaga
Edição: 1.ª- 2005
Classificação: Conto
N.º de Registo: (BE)
OPINIÃO ⭐⭐⭐



Vovô Tsongonhana é o segundo livro de um conjunto de quatro volumes. O autor pretende mostrar, através da escrita, o caminho percorrido em busca da sua paz interior.
Neste volume, é narrada a história de um menino, Dudinho, que vive nas ruas de Maputo e é adoptado pelo “Vovô” com quem vai aprender a viver em liberdade e a respeitar a Natureza.
Numa escrita simples e fluida, o autor passa uma filosofia de vida ancorada no amor, no respeito pelo outro e pela Natureza.
Os ensinamentos que o vovô Moisés transmite a Dudinha são baseados no exemplo, no questionamento e na compreensão do mundo que o rodeia. Ensina-o a sobreviver, a buscar a “energia da Natureza” na colheita de frutos, na caça e na pesca. Ensina-o respeitar e a amar o próximo.
É um livro interessante que recomendo sobretudo aos mais jovens.


𝑶𝒔 𝑽𝒊𝒗𝒐𝒔 𝒆 𝒐𝒔 𝑶𝒖𝒕𝒓𝒐𝒔, de José Eduardo Agualusa

 



Autor: José Eduardo Agualusa
Título: Os Vivos e os Outros
N.º de páginas: 252
Editora: Quetzal
Edição: 1.ª- Abril 2020
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3238)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐

Em Os Vivos e os Outros, explora-se a literatura e o seu papel na vida dos escritores e dos leitores. Na Ilha de Moçambique, lugar paradisíaco, decorre, durante sete dias, um festival literário que reúne escritores africanos.

Nos sete capítulos, correspondentes aos sete dias do encontro, são narrados os vários acontecimentos relacionados com o festival, mas também com o isolamento provocado pela falta de comunicação (telefone e internet) consequência de uma violenta tempestade no continente. No final do primeiro dia/capítulo, o narrador informa que algo vai acontecer:
“É assim que tudo começa: a noite rasgando-se num enorme clarão, e a ilha separando-se do mundo. Um tempo terminando, um outro começando”. (p.31)

Assim, temos uma narrativa sobre pessoas confinadas num determinado tempo, num lugar maravilhoso onde vão acontecer coisas fabulosas relacionadas com as obras de alguns escritores e as suas personagens. O enredo vai desenvolver-se numa fusão da realidade com a ficção e com o maravilhoso, traço recorrente em vários livros do autor. “Somos nós quem constrói os mundos! – grita Moira – Somos nós! Os mundos germinam dentro da nossa cabeça, e crescem até não caberem mais, e então soltam-se e ganham raízes. A realidade é isso, é o que acontece à ficção quando acreditamos nela!” (p. 180)
É neste aspecto que se destaca a escrita de Agualusa, a sua mestria na fusão de um mundo imaginário com o real. Ao longo da narrativa construída à volta das percepções dos vários escritores e das conversas sobre literatura, escrita, história e cultura da ilha e sobre a identidade de um continente, surgem dúvidas, angústias, mas também reencontros, sonhos e momentos de criatividade.
Fica clara a crítica à sociedade, ao mundo literário. Há uma necessidade urgente de mudança, um desejo de uma sociedade melhor, do nascimento de um novo mundo.
Ao ler este livro não podemos deixar de assinalar a coincidência da ficção escrita por Agualusa e a realidade vivida no mundo actual. O próprio livro, antes de ser publicado, ficou confinado à espera da reabertura das livrarias. Surge como uma escrita visionária que representa o medo que se apoderou das pessoas, mas também a oportunidade de desfrutar das coisas simples.
“ Uli pede silêncio. Fala para todos, como se se dirigisse a cada um, com a mesma voz macia que usa , reza a lenda, para hipnotizar elefantes, explicando que aquela é uma situação extraordinária e que depressa se resolverá (...), aproveitem para ler e para escrever, ou apenas para conversar uns com os outros, como eu mesmo tenho feito, cercado de escritores que admiro há tantos anos e de amigos que vejo menos vezes do que gostaria. Acorrentados aos deveres do dia a dia, estamos sempre a queixar-nos de que nos falta tempo para as coisas simples da vida. Pois bem, agora temos tempo.” (p. 177)

Será que, tal como no livro, vamos sair deste confinamento com a ideia de que teremos um novo mundo, um mundo melhor? Ou não passa de uma utopia?


12 maio, 2021

𝑶 𝑨𝒎𝒐𝒓 𝒏𝒐𝒔 𝑻𝒆𝒎𝒑𝒐𝒔 𝒅𝒆 𝑪ó𝒍𝒆𝒓𝒂, de Gabriel García Márquez



Autor: Gabriel García Márquez
Título: O Amor nos Tempos de Cólera
N.º de páginas: 387
Editora: D. Quixote
Edição: 1.ª- Outubro 1987
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3275)

OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐


Há livros que sabemos que são bons, que são de leitura obrigatória, mas que vão sendo protelados ou mesmo olvidados, até que surge uma oportunidade e então coloca-se a questão óbvia: por que razão é que não tinha ainda lido este livro?
É um livro fabuloso. Um grande romance muitíssimo bem escrito. Numa narrativa escorreita, o autor apresenta-nos uma história de amor (ou serão duas?) que ocorre em tempos de cólera, no mar das Caraíbas, num país em divergências político-sociais.

O romance, uma grande analepse, tem três protagonistas, a bela Fermina Daza e dois homens que a amam, Florentino Ariza e Juvenal Urbino. O primeiro amor, um amor muito platónico e pueril entre Florentino e Fermina é alimentado por esperas, olhares, promessas, sonhos e longas cartas, mas assim que é interceptado pelo pai dela, são imediatamente separados e o pai decide arranjar as coisas para casar a filha com o doutor Juvenal Urbino, médico respeitado, na região.
Florentino sofre uma forte desilusão e com o coração despedaçado jura esperar por ela, desejando a morte do marido. A espera revestida de um amor eterno, por vezes obsessivo, dura cinquenta e um anos, nove meses e quatro dias e termina com um final maravilhoso, mas muito improvável.

Toda a história está repleta de emoção. O realismo mágico, tão próprio do autor, torna plausível uma história com várias inverosimilhanças. Mas a linguagem poética e sensível, o uso de metáforas, o sentido de humor, a ironia e a técnica (estrutura circular) utilizada para narrar a história tornam este romance numa perfeição e o leitor que, em certos momentos, despreza Florentino Ariza, abomina o oportunismo e a superficialidade de Fermina Daza e critica a aventura, fora de casa, de Juvenal Urbino, acaba por ficar seduzido e enfeitiçado.

O Amor nos Tempos de Cólera é um romance sobre o amor e as suas contrariedades, sobre a passagem do tempo – da juventude à velhice – sobre o quotidiano de uma família marcado por hábitos conquistados ao longo de cinquenta anos de vida em comum, mas também sobre as guerras internas e a epidemia que assolam o país. Para além de um romance de amor é sobretudo um romance sobre um país e uma cultura e, ainda, sobre a redenção dos males deste mundo em que os sentimentos prevalecem sobre tudo, transpondo idades, preconceitos e conflitos.

Nesta obra, para mim das melhores de Garbo, o autor realiza com grande mestria, excelência e sensibilidade a arte de bem escrever.


02 maio, 2021

Dia da Mãe

 


                                                                         Pintura de Mary Cassatt 




FALA DE MÃE E FILHO

«Meu filho:
onde vais
que tens do rio o caminhar?»

Não espreites a estrada, mãe,
que eu nasci
onde o tempo se despenhou.

«Meu filho:
onde te posso lembrar
se apenas te dei nome para te embalar ?»

Mãe, minha mãe:
não te pese saudade
que eu voltarei sempre
como quem chega do mar.

«Meu filho:
onde te posso nascer
se meu ventre seco
nunca ninguém gerou?»

Mãe, nascerás sempre
na pedra em que te escuto:
a tua ausência, meu luto,
teu corpo para sempre insepulto.

Mia Couto, in Tradutor de Chuvas.