31 dezembro, 2019

O Terrorista Elegante, de Mia Couto e José Eduardo Agualusa



OPINIÃO

Um livro maravilhoso, bem-disposto e que me fez rir. Não esperava outra coisa. Assim que soube que Mia Couto e José Eduardo Agualusa tinham escrito este livro juntos, pensei "vai ser genial" e não me enganei. Não podia escolher um melhor livro para terminar o ano.
Recomendo vivamente!

29 dezembro, 2019

Pode um corpo morto, de Andreia Azevedo Moreira


OPINIÃO



Este pequeno livro integra a colecção Crateras Ficção, projecto que visa a publicação de textos inéditos de autores directamente ligados à EC.ON. 

Foi uma boa surpresa a leitura deste livro que contém quatro textos em prosa. A autora revela uma escrita madura, por vezes dura na medida em que foca o assunto com palavras cruas e directas. Não há rodeios, mas há sentimento e intensidade, há coragem em abordar temas como a prostituição “Por que será menos digno ganhar dinheiro a fazer algo de que se goste do que acabar-se com o lombo a limpar escadas, “; o envelhecimento “ Considerei pertencer a uma estirpe incorruptível pela idade.”; o prazer sexual “Terei alguma vez sentido orgasmo ou alegria (…) Cinquenta anos. Mudanças não houve.” ; a beleza ou a falta dela “Reparei nas feições desagradáveis. Na vez da repulsa, ternura e preconceito.”. 

Colocando a mulher no centro da sua escrita, a autora crítica uma sociedade ainda demasiado machista e preconceituosa. 

Vejam como é belo este excerto retirado do segundo texto:
“Danço louca e despudorada. Inteira. Pela primeira vez, não represento. Sou. Uma mulher a dançar uma canção de desamor. Rodopio no meio de cadeiras brancas recostadas que estranham a desenvoltura, a ausência do medo e de expectativas.”


Zeca Afonso – o andarilho da voz de ouro, de José Jorge Letria




OPINIÃO

Livro infantil com uma escrita muito poética e com ilustrações maravilhosas que explica muito bem quem foi Zeca Afonso, o seu papel como poeta e cantor de intervenção, grande defensor da Liberdade.

A Passagem, de Horácio Medina


SINOPSE


A vida é de quem vive do que arde cá dentro.
Assim começa a passagem de Horácio Medina. Pela (re)visita aos campos da juventude e às passadas pela corrente forte e contínua que o persegue, este procura a resposta à pergunta existencial que Horácio Medina tanto se questiona e lhe intriga:
Quem sabe viver?


OPINIÃO

Horácio Medina tinha 23 anos quando publicou este livro de poesia, pelo que a sua escrita revela já alguma maturidade. O livro está dividido em três partes: Os Campos (20 poemas), A Corrente (12 poemas) e A Passagem (32 poemas). Temos o tema do tempo, a inevitabilidade da passagem do tempo e a busca incessante do “Eu”. Esta busca reflecte-se na urgência de viver. Há um crescendo desta ideia ao longo do livro. 
Na primeira parte, a passagem do tempo é vivida de forma serena:
“ Durmo como as crianças, que ao leve som ignoto/Levantam-se como quem lhes dá tudo.” ( II);
“Sentir o sentido de todas as ínfimas coisas, / Dos campos que são verdes e belos, / Que são meus, porque os vejo como são.” (VI)
“ Procuro o sol como quem procura o dia, /Esperando, assim, como qualquer ser, /Que amanheça o dia de todos os dias.” (XVII)

Na segunda parte, a mesma passagem do tempo já é mais tumultuosa, mais sofrida de acordo com a “corrente” das águas, ora do mar “com as ondas a rebentarem nos meus alicerces” (I), ora do rio “O rio corre e vai ter ao mesmo sítio de todo o sempre” (II);
“Afinal não há vida para além desta./ Afinal esta nunca existiu, / (…) As lágrimas são apenas o ato de ver mais que o visível/ E escorrem pela face, como um rio pela encosta abaixo.” (IV);
A vida é como o correr do rio. / Vê o dia e a noite e a paisagem enquanto passa. / Nasce, corre e leva sempre aos mesmos lugares. / E quem o vê correr não se vê correr.” (X) 

Finalmente, na terceira parte, a minha preferida, onde a passagem do tempo, da vida é a procura incessante do “Eu” “Assim me conheça” (XXII). Esta procura manifesta-se em desassossego, em questionamento e em cansaço “Sou o longe de mim e a proximidade que fora. / E agora, o que vem?” (VI)
“ Não creio em ilusões. Iludo-me. / Desassossego-me sossegado continuamente, “ (XIV); 
“ Oh, o que eu daria para não passar de hoje…” (XVI) 

Esta urgência de viver, como referi acima, deve-se ao facto de o autor ter uma missão a cumprir que é a de escrever (XV):
“(…) 
Escrevo como um danado e como se não houvesse amanhã; 
E o futuro fosse tão distante da minha alma de papel.
Porque escrevo não sei. 
Que deverei saber eu da minha literatura?
E os que lêem, que deverão saber eles de mim?
Ler é encher a alma. 
Escrever é libertação” 

Concordo plenamente com estes dois últimos versos. Medina cumpriu bem, na minha opinião, a sua missão. Resta-nos a nós leitores “encher a alma”. 




28 dezembro, 2019

Cartas Portuguesas, de Soror Mariana Alcoforado



OPINIÃO

Hoje, em que basicamente já não se escrevem cartas, muito menos de amor, considero que todos os amantes de livros e de literatura deveriam ler este pequeno livro maravilhoso. E esta edição de 2011 (Cocas Produções) é belíssima com ilustrações fabulosas de Susa Monteiro. 

Estas cartas atribuídas a Mariana Alcoforado são datadas de Janeiro de 1669. São cinco cartas de amor enviadas por Mariana, jovem freira que vivia num convento em Beja, a um oficial francês.·
Estas cinco cartas revelam uma paixão avassaladora, uma entrega total ao homem que a seduziu e que a abandonou sem qualquer explicação. Estamos perante um amor exacerbado, sofrido, sem retorno. 

“Mas pareceras-me digno do meu amor, antes que me houvesses dito que me amavas, mostraste-me uma grande paixão, senti-me deslumbrada, e abandonei-me a amar-te perdidamente.” 

“Sei bem que te amo como uma doida.
Não me queixo contudo de esta fúria insana no meu coração.” 

“Daqui a poucos dias vai fazer um ano que toda me entreguei a ti, sem recato”.

Magnífico! Arrebatador!


27 dezembro, 2019

É Março e É Natal em Ouagadougou, de António Pinto Ribeiro


OPINIÃO




Este livro, classificado como “livro de viagens” pouco ou nada descreve dos países visitados na entre 2004 e 2010. Trata-se sobretudo de pequenas notas de viagens efectuadas pelo autor em trabalho como professor ou como programador. 

O que gostei efectivamente de ler no livro são as muitas referências culturais apresentadas (cinema, músicas, escritores, museus …), sobretudo as literárias, pois o autor cita livros que devem ser lidos antes de se visitar determinado país ou determinada cidade. Por exemplo:
a) capítulo “Veneza” - “ Veneza, de Jan Morris, é o livro ideal para esta viagem; “
b) capítulo “Três dias em Paris” – “… é que nesta cidade apetece viver à volta de livros, da leitura de livros, da visita às livrarias, da compra ou troca de livros, da consulta às bibliotecas, (…) e ler, principalmente. “ 
c) capítulo “Cuba” – “Numa viagem a Cuba devemos entre outros livros possíveis, levar connosco A Insustentável Leveza do Ser, de Milan Kundera.” 

E por aí adiante … 
É um livro diferente e interessante.



26 dezembro, 2019

Um Cântico de Natal, de Charles Dickens



SINOPSE

Um daqueles raros livros que deu expressão a algo enorme. Acredito que a própria vivência do Natal foi tocada por estas páginas.(…) Uma obra que nos faz pensar e que nos faz sentir. É por isso que continuará a ser lida.

OPINIÃO

Belíssimo conto que enaltece o verdadeiro espírito do Natal, despertando valores como “a caridade, a misericórdia, a tolerância e a benevolência”(p. 43). Nesta obra intemporal, muito bem escrita, o autor como em quase todos os seus livros, critica a sociedade e dá destaque aos que vivem com mais dificuldades. Charles Dickens, através das suas descrições tão realistas, consegue transportar o leitor para o âmago da acção e vivê-la intensamente como se fosse uma personagem. 
É um conto que nos faz reflectir sobre a vida, sobre as relações humanas, a solidariedade, a generosidade, … 
O ideal seria mesmo que o Natal fosse celebrado todos os dias, tal como Scrooge, angustiado pelas imagens que viu, referiu “ – Honrarei o Natal do fundo do coração e celebrá-lo-ei todo o ano” (p.142)



25 dezembro, 2019

Chuva sobre o Rosto, de Eugénio de Andrade




OPINIÃO

E como hoje, dia de Natal, há lugares vazios à mesa, nada melhor do que (re)ler estes 21 poemas de Eugénio de Andrade. O livro inicia com um retrato da sua mãe, por José Rodrigues. Todos os poemas são dedicados à mãe. Como referi numa leitura anterior, estamos perante um discurso cristalino, conciso, sentido e verdadeiro. Não há muito a dizer. A sua escrita diz tudo. A melhor homenagem é lê-lo. Transcrevo dois poemas… em memória da mulher que é/ foi a sua mãe. Pela saudade que tenho da minha. 

Essa mulher… 

Essa mulher, a doce melancolia
dos seus ombros, canta.
O rumor
da sua voz entra-me pelo sono,
é muito antigo.
Traz o cheiro acidulado
da minha infância chapinhada ao sol.
O corpo leve quase de vidro.

Casa na chuva 

A chuva, outra vez a chuva sobre as oliveiras.
Não sei por que voltou esta tarde
se a minha mãe já se foi embora,
já não vem à varanda para a ver cair,
já não levanta os olhos da costura
para perguntar: Ouves?
Ouço, mãe, é outra vez a chuva,
a chuva sobre o teu rosto.


24 dezembro, 2019

À Sombra da Memória, de Eugénio de Andrade

´


SINOPSE

"Sou um homem com vocação para escutar. Vocação e paciência: fixa, imóvel, atenta ao rumor da luz, do coração batendo, ou simplesmente das palavras, quando se juntam para acasalar. Rumores que atravessam a nossa vida, se perdem na memória, regressam com as cabras, o focinho húmido dos primeiros orvalhos. Alguns desses rumores andam connosco desde menino, acabam perdidos num olhar, morrem à míngua de música. Rumores do azul fremente da sombra, dos cães ladrando no adro; rumor da chuva, os pingos grossos pressentindo a agonia das cigarras e do verão sobre as oliveiras; rumor do sol entrando pelo quarto, gatinhando até à cama."


OPINIÃO

Eugénio de Andrade é um dos meus poetas portugueses preferidos por duas razões específicas: a primeira, como não podia deixar de ser, a sua poesia; a segunda, porque é meu conterrâneo (nasceu na Póvoa da Atalaia, concelho do Fundão. Eu nasci no Tortosendo, concelho da Covilhã, mas vivi no Fundão). Por tudo isto, não compreendo como pude deixar este livro guardado na estante durante dez anos sem o ler. Incompreensível! Porém, releio amiúde a sua poesia. 
Este pequeno livro, em prosa, revela a sua sensibilidade perante a natureza, perante a amizade verdadeira, perante a arte. O autor “à sombra da memória”, fala-nos da sua infância, da sua mãe, dos amigos, dos lugares onde viveu e de algumas viagens. Tanto num tão pequeno livro, poder-se-ia afirmar. Sim, uma das principais características do autor é o uso apropriado da palavra. Nada está a mais, nada está a menos. Se assim é, na poesia o mesmo se verifica na prosa. Pelo que poderei afirmar que se trata de prosa poética. E citando o autor num dos seus poemas mais conhecidos: 

“São como um cristal, 
as palavras.” 

Estamos perante um discurso cristalino e conciso que conduz o leitor através das recordações, através dos sentidos num propósito de nos falar de si, da sua escrita, do seu mundo.

“O poeta é um homem de bruscas iluminações, não tem fórmulas para chegar à poesia; ninguém lhe pode apontar caminhos; chega-se lá como os cegos, tacteando;” (pp. 32 e 33)

“Andei por lá, nestes primeiros dias de Julho, à procura do rasto dos passos miúdos do garoto que por ali cresceu com os juncos da ribeira, e abriu, o coração à música do mundo:” (p. 99) 

“É assim, às vezes, a graça da poesia visita-nos: a mim, a vocês e temos que ficar-lhe gratos. Eu, por ter escrito o poema; vocês, por o terem recriado quando o lêem.” (p 111)

23 dezembro, 2019

Feliz Natal




Natal, e não Dezembro


Entremos, apressados, friorentos,
numa gruta, no bojo de um navio,
num presépio, num prédio, num presídio,
no prédio que amanhã for demolido...
Entremos, inseguros, mas entremos.
Entremos, e depressa, em qualquer sítio,
porque esta noite chama-se Dezembro,
porque sofremos, porque temos frio.

Entremos, dois a dois: somos duzentos,
duzentos mil, doze milhões de nada.
Procuremos o rastro de uma casa,
a cave, a gruta, o sulco de uma nave...
Entremos, despojados, mas entremos.
Das mãos dadas talvez o fogo nasça,
talvez seja Natal e não Dezembro,
talvez universal a consoada.

David Mourão-Ferreira, in 'Cancioneiro de Natal'




21 dezembro, 2019

A Porta, de Magda Szabó



SINOPSE
Romance escrito em tom confessional e vagamente autobiográfico, A Porta narra a estreita relação que se estabelece entre duas mulheres na Hungria dos anos do pós-guerra: Magda, uma jovem escritora, e a sua empregada, Emerence, uma camponesa analfabeta.
Magda, até então impedida de publicar, é politicamente reabilitada pelo regime, e torna-se escritora a tempo inteiro, alcançando, aos poucos, o merecido sucesso e reconhecimento social.
Ao mudar-se para um apartamento maior, emprega Emerence para a ajudar com as lides domésticas. Esta é uma figura enigmática, respeitada e quase temida pela vizinhança, sobre a qual exerce uma autoridade natural, embora ninguém conheça verdadeiramente o seu passado ou vida privada. A porta de sua casa está sempre fechada.
A inesperada e dramática doença do marido de Magda reforçará a ligação e intimidade entre as duas mulheres, as quais, não obstante as enormes diferenças que as separam, estabelecem uma insólita relação de dependência e confiança mútua, que fará Emerence abrir a porta de sua casa a Magda, revelando-lhe os segredos de um passado traumático, ao mesmo tempo que precipita um final trágico na sua relação.

Nova tradução, feita directamente do húngaro pelo reconhecido escritor e ensaísta Ernesto Rodrigues.

OPINIÃO

Livro fabuloso que ainda estou a digerir. É este tipo de livros que me dá prazer ler, em que a história remói e remói a minha mente, não consigo pensar noutra coisa a não ser nas personagens. 
A narradora que é escritora (autobiográfico?) e a sua empregada e porteira do prédio, Emerence, vivem durante mais de vinte anos uma relação ambígua, desconcertante e bastante tumultuosa ancorada em momentos de amizade, de ódio, de amor. 
As duas personagens dotadas de uma personalidade forte que vai oscilando entre o entendimento e a desconfiança, provocam no leitor sentimentos contraditórios e intensos. 
É pelas palavras de Magda, a narradora, que vamos conhecendo a vida das personagens, os erros cometidos, o remorso e a culpa que carrega, o segredo de Emerence que está por detrás da porta e que pouquíssimas pessoas conhecem, mas também um pouco da História da Hungria. 
Gostei muito do livro, da história que questiona as relações humanas, da escrita e sobretudo de Emerence, personagem com um carácter incrível.


11 dezembro, 2019

Contos do Natal, de Domingos Monteiro




SINOPSE

Nestes «Contos do Natal», dispersos por livros, jornais e revistas, e aqui reunidos ,”irmanam-se pela sua beleza, poder evocativo e profunda humanidade”, os imensos recursos do Homem e do Prosador.


OPINIÃO

Não conhecia Domingos Monteiro e fiquei seduzida pela sua escrita. Na minha opinião, estamos na presença de um excelente narrador de histórias. Este pequeno livro de sete contos concilia o real e a ficção. O autor atribui aos seus títulos características não observáveis e todas relacionadas com o Natal, diria até que recorre ao transcendente para destacar traços psicológicos das suas personagens bem como a miséria social em que se inserem. Estes aspetos são sobretudo visíveis nos contos “O Milagre”, “ Um Recado para o Céu” e “Ressurreição”.



08 dezembro, 2019

As crianças Invisíveis, de Patrícia Reis




SINOPSE

M. é uma criança habituada a ser usada e devolvida por famílias sucessivas como um produto que não satisfaz o cliente. Cresce numa instituição de acolhimento, onde vai descobrindo o poder da amizade e as armadilhas do desejo e da paixão. Esta é a sua história até chegar à idade adulta, atravessando um processo de invisibilidade, no qual a dor se confunde com a esperança de encontrar uma vida a que possa chamar sua. Ao seu lado existem outras crianças e ainda Conceição, a assistente social que escolhe amar M. incondicionalmente.

As Crianças Invisíveis é um romance que alia um exercício literário ímpar com um profundo trabalho de investigação sobre abandono, maus-tratos e adopção. Construindo toda a narrativa de uma maneira muito original, sem identificar o sexo das crianças, e a partir do olhar delas, a escrita límpida, poderosa e cirúrgica de Patrícia Reis conduz-nos, neste romance avassalador, através dos sonhos, do medo e da intimidade de um conjunto de personagens que percorrem a infância e a adolescência sem pai, nem mãe, nem identidade.


OPINIÃO


Belíssimo livro. Capa e separadores de capítulos apelativos. Estrutura cuidada e original e, sobretudo, uma escrita inteligente e concisa que nos permite mergulhar de forma avassaladora, sentida e emocionada na história de M., criança institucionalizada na “Casa”. 
Esta criança invisível foi adoptada por famílias sucessivas que a devolveram como se de uma mercadoria se tratasse. “Uma família leva uma criança para casa e faz um teste e, depois, pode dizer que se enganou, o amor não cresceu de repente, esplendoroso e gigante, capaz de ultrapassar todos os dissabores por ser amor, logo incondicional. M. sabia de tudo isto.” (p. 45)
“M. conhece muitas crianças devolvidas no período de pré-adopção, os tais seis meses”· (p. 45)

Sabendo que se trata de um romance ficcional que aborda a problemática da adopção, do abandono e maus-tratos, não consigo deixar de pensar que tudo o que foi narrado pode de facto acontecer e que, infelizmente, personifica histórias de muitas crianças. 

“ M. imagina que a Casa está cheia de potenciais construtores de ficção. Há um certo conforto nessa unidade., crianças prontas para imaginar realidades alternativas. M. não considera, nas suas efabulações, a possibilidade de uma mãe. Nem o seu cheiro, nem toque. Já passou essa fase.” (p..150) 

“uma vez criança invisível… Não se é igual às outras, é-se obrigatoriamente incomum, em desavença com a ordem do mundo.” (p.158)


02 dezembro, 2019

A história do senhor Sommer, de Patrick Süskind



SINOPSE

Plano Nacional de Leitura
Leitura recomendada no 7.º ano de escolaridade.

A história do senhor Sommer
No tempo em que eu ainda trepava às árvores, vivia na nossa aldeia, a uns dois quilómetros da nossa casa, um homem a quem chamavam senhor Sommer. Ninguém sabia qual era o seu nome de batismo e também ninguém sabia se ele tinha ou não uma profissão.
Mas embora pouco se soubesse sobre o senhor Sommer, toda a gente o conhecia, pois andava permanentemente de um lado para o outro. Podia nevar ou cair granizo, podia estar um temporal ou chover a cântaros, podia o sol queimar ou aproximar-se um furacão, sempre o senhor Sommer peregrinava como uma alma penada, atravessando a paisagem e os sonhos do narrador…


OPINIÃO

Trata-se de um pequeno livro encantador que cruza as histórias do narrador quando muito jovem “ no tempo em que eu ainda trepava às árvores – há muitos, muitos anos, há dezenas de anos atrás” e do senhor Sommer, um homem que se instalou na aldeia com a sua mulher “Ninguém sabia de onde tinham vindo os Sommer. Chegaram simplesmente um dia qualquer – ela de autocarro, ele a pé”. 
O autor transporta-nos, através da sua memória, para os tempos da sua infância. Descreve momentos enternecedores, narra situações caricatas, transmite conhecimentos, de vária ordem, no âmbito da matemática, da física, da língua, …
Quanto ao senhor Sommer e apesar do título, o leitor pouco conhece desta personagem invulgar e caricata, a não ser que passa todos os dias do ano, quer faça sol quer chova torrencialmente, a caminhar apoiado no seu cajado. “ O senhor Sommer andava em peregrinação ” porque “sofre de claustrofobia”.

O livro integra as sugestões do PNL para os jovens de 11 a 13 anos, mas, na minha opinião, pode perfeitamente ser lido pelos menos jovens. E tem ilustrações belíssimas de Sempé.

30 novembro, 2019

O Segredo da Última Ceia, de Javier Sierra





SINOPSE


"O Cidadão do Século XXI observa um quadro, mas não o sabe ver." Além da imagem, os artistas querem contar algo, as suas pinturas são como novelas gráficas" assim explicou o escritor turolense na apresentação do seu último livro - O Segredo da Última Ceia. Através de uma literatura suave e trepidante, Sierra impulsiona o leitor a descobrir os enigmas escondidos nos traços de Da Vinci, porque toda a obra de arte esconde uma leitura. Este livro versa sobre a interpretação do quadro de Leonardo Da Vinci, A Última Ceia, que num olhar menos atento escapa a quem não o souber "ler". Três anos de viagens por Itália e de exaustivos trabalhos de investigação serviram de base a uma conclusão: após ler o livro, o leitor não voltará a ver o quadro com os mesmos olhos. Esta obra sacra mais conhecida da cristandade "está cheia de anomalias" afirmou o escritor e "eu proponho um exercício de paradoxos em torno delas". Através de uma denúncia anónima sobre incongruências existentes no quadro, será na personagem do padre dominicano Augustin Leyre, enviado especial a Milão, em 1497, que o autor fará a investigação sobre as mensagens do quadro que se revelam de forma codificada. Fica o aviso, não são precisos conhecimentos prévios de arte ou história para dar início à leitura deste livro.


OPINIÃO

O enredo principal deste thriller histórico acaba por estar directamente relacionado com o fresco de Leonardo Da Vinci, A Última Ceia, pintado, no final do século XV, no refeitório do convento de Santa Maria delle Grazie em Milão. 
Eu que não aprecio este género de literatura (thriller), acabei por gostar de ser conduzida pelo padre Leyre, ao serviço do Santo Ofício, na descoberta dos enigmas, dos segredos, na busca do autor das mortes atrozes ocorridas em Milão e, principalmente, na descodificação dos códigos secretos e da simbologia que envolvem esta a obra majestosa e singular de Da Vinci. 
Trata-se de um livro interessante que aborda temas como a arte, a religião, a criptografia, o mecenato, a heresia e a crença.


19 novembro, 2019

Paz traz paz, de Afonso Cruz


SINOPSE


Da narradora d’O LIVRO DO ANO, aquela menina que carrega um jardim na cabeça e atira palavras aos pombos, chega-nos um novo diário com os seus pensamentos, inquietações, experiências e os sonhos de melhorar o mundo através de pequenos gestos ou actos heróicos, atacando o absurdo com o absurdo e a noite com canteiros de flores. Páginas feitas de inusitada poesia, para leitores de todos os feitios. Até os normais.

OPINIÃO

Como já o referi mais do que uma vez, a escrita do Afonso Cruz é “sumptuosa”. A pequena narradora, a partir de coisas e de palavras simples, apresenta-nos histórias, pensamentos, dúvidas, inquietações e ensinamentos belíssimos.

“Tenho vindo a perceber que as coisas pequenas
transformam-se
em coisas grandes e as coisas grandes
transformam-se
em coisas pequenas, não param de dançar.”

É assim, simples! Poético! Sublime!

“Enquanto os pássaros batem as asas para voar,
nós batemos o coração”

Para ler e reler sempre!



17 novembro, 2019

O deslumbre de Cecília Fluss, de João Tordo


SINOPSE

Aos catorze anos, Matias Fluss é um adolescente preocupado com três coisas: o sexo, um tio enlouquecido e as fábulas budistas. Vive com a mãe e a irmã mais velha, Cecília, numa espécie de ninho onde lambe as feridas da juventude: a primeira paixão, as dúvidas existenciais, os conflitos de afirmação. Sempre que sente o copo a transbordar, refugia-se na cabana isolada do tio Elias.
Cedo, contudo, a inocência lhe será arrancada. Ao virar da esquina, encontra-se o golpe mais duro da sua vida: o desaparecimento súbito de Cecília que, afundada numa paixão por um homem desconhecido, é vista pela última vez a saltar de uma ponte.

Muito mais tarde, Matias será obrigado a revisitar a dor, quando a sua pacata vida de professor universitário é interrompida por uma carta vinda das sombras do passado, lançando a suspeita sobre o que aconteceu realmente à sua irmã — sem saber ainda que regressar ao passado poderá significar, também, resgatar-se a si mesmo.

No final desta «trilogia dos lugares sem nome», iniciada com O luto de Elias Gro, João Tordo explora, através de personagens únicas e universais, numa geografia singular, os temas da memória e do afecto, do amor e da desolação, da vida terrena e espiritual, procurando aquilo que com mais força nos liga aos outros e a nós próprios.


OPINIÃO



Com este livro termino a trilogia dos Lugares Sem Nome. Três romances com personagens que transitam de uns para os outros, mas que podem ser lidos sem qualquer ordem. 

E continuo a achar que estes livros marcam uma viragem na escrita de João Tordo, tal como o enunciei aquando da leitura do Luto de Elias Gro, o primeiro que li e o primeiro da trilogia. A escrita continua sublime e bela, e tal como nos anteriores predominam os sentimentos, o questionamento a procura do eu. 

Neste livro em concreto, o autor explora a temática da perda da memória, do isolamento, da loucura. É Matias Fluss, adulto, numa tentativa de resgatar a sua memória, que nos conta a sua adolescência conturbada, a solidão e a loucura do seu tio Elias, a insatisfação e o desaparecimento da sua irmã Cecília. 

“Antes de começarmos a esquecer, temos de recordar, de começar por recordar, e aquele que começa a recordar, inversamente, começa também a esquecer” (p. 194) 

Mas o envelhecimento e o avanço da demência baralham tudo e é uma aluna de Matias que o ajuda a confrontar o passado e a revisitar a dor ao descobrir a verdade sobre a sua irmã. Trata-se de um complexo caminho para levar o leitor ao questionamento sobre a vida, sobre a condição humana. 

Nos três livros temos a fuga e o isolamento como meios de esquecer o passado. Em todos, o leitor vive o desespero da personagem, assiste à sua decadência, à loucura, à dor, por vezes à esperança. 

“Caminhei até à praia, via as gaivotas saltarem empoleiradas nas suas perninhas ridículas, o mar entrava lentamente pela areia dentro. Nada nos aprisiona, concluí. Somos nós que construímos a cela, que nos enclausuramos, e isso dói. Mas é preciso que doa, que doa muito, até que a dor de abrir uma brecha nesse muro seja menor que a dor de permanecer preso lá dentro, Na maior parte das vidas, tal nunca sucede.” (p. 326) 




06 novembro, 2019

Obra poética - Vol. 1, de Sophia de Mello Breyner Andresen



OPINIÃO

Para assinalar os 100 anos do nascimento de Sophia nada melhor do que ler a sua obra. Volto regularmente à sua poesia. Tudo nela faz sentido. É uma poesia sensível, escrita de forma clara, com palavras certas e concretas. Neste primeiro volume, o mar cruza a sua obra. O mar como lugar de liberdade. O mar associado a outros elementos como praia, noite, jardim, deuses, heróis, cidade (como oposição, como “vida suja”), casa, vento, sentimentos, poemas… 

As ondas quebraram uma a uma 
Eu estava só com a areia e a espuma 
Do mar que cantava só pra mim. 


Aparentemente simples, a sua escrita capta o real, é crítica e interventiva. Claro que a sua interpretação é subjectiva, depende de quem lê e de como se lê. Porém, surpreendente e emocionante porque o leitor, apesar da sua interpretação não consegue discernir o real do imaginado. 

Esgotei o meu mal, agora 
Queria tudo esquecer, tudo abandonar 
Caminhar pela noite fora 
Num barco em pleno mar. 

Mergulhar as mãos nas ondas escuras 
Até que elas fossem essas mãos 
Solitárias e puras 
Que eu sonhei ter

Recomendo-vos Sophia! Eu, voltarei! Porque gosto do seu apelo! 

Nas praias que são o rosto branco das amadas mortas 
Deixarei que o teu nome se perca repetido 

Mas espera-me: 
Pois por mais longos que sejam os caminhos 
Eu regresso.



02 novembro, 2019

Centenário do nascimento de Jorge de Sena




OS TRABALHOS E OS DIAS



Sento-me à mesa como se a mesa fosse o mundo inteiro
e principio a escrever como se escrever fosse respirar
o amor que não se esvai enquanto os corpos sabem
de um caminho sem nada para o regresso da vida.

À medida que escrevo, vou ficando espantado
com a convicção que a mínima coisa põe em não ser nada.
Na mínima coisa que sou, pôde a poesia ser hábito.
Vem, teimosa, com a alegria de eu ficar alegre,
quando fico triste por serem palavras já ditas
estas que vêm, lembradas, doutros poemas velhos.

Uma corrente me prende à mesa em que os homens comem.
E os convivas que chegam intencionalmente sorriem
e só eu sei porque principiei a escrever no princípio do mundo
e desenhei uma rena para a caçar melhor
e falo da verdade, essa iguaria rara:
este papel, esta mesa, eu apreendendo o que escrevo.


Jorge de Sena






21 outubro, 2019

Três Cartas da Memória das Índias, de Al Berto



OPINIÃO


Reler. Ler de novo. Sempre. O Medo de Al Berto faz parte daqueles livros que me acompanham sempre. De tempos a tempos, volto a ele quer por questões de trabalho (planificação de actividades) quer por gosto pessoal. A escolha, desta vez, recaiu sobre as Três Cartas da Memória das Índias. 

Estes três textos remetem o leitor para a época das navegações portuguesas, (“As Índias por descobrir”) terra longínqua, possível destino de Al Berto que não sabe muito bem qual será o seu destino. Para ele, o importante é mesmo partir, fugir, procurar um lugar onde as fronteiras se esbatam… 

“ não sei o que me espera longe daqui
nem onde pararei de viajar
sei que devo partir de todos os lugares onde chegar
se é que alguma vez vou chegar a algum lugar”

Os destinatários destas três cartas imaginárias (ou não?) são, respectivamente, a mulher, o pai e um amigo. 

À primeira, o poeta atribuiu o nome “Carta da árvore triste”; à segunda, “Carta da região mais fértil” e à terceira, “Carta da flor do sol”. Em intertextualidade com um livro de Pyrard de Laval “Tradução e descrição dos animais, árvores e frutos das Índias Orientais”, o poeta explica-nos, assim, a razão pela atribuição destes nomes às cartas.

Na carta à mulher, o sujeito poético refere o seu cansaço em relação à vida comum, ao quotidiano, à rotina “o dia instalar-se-á igual aos outros milhares de dias” e refere também a existência de um amigo cuja amizade não consegue explicar.

Na carta ao pai, o sujeito poético aborda o longo tempo de silêncio existente entre ambos (“há muito que o silêncio se fez entre nós”) e apresenta as razões da sua partida: a monotonia do amor conjugal, a insistência da mulher na realização das tarefas caseiras,

“não sei se o pai poderá compreender esta velocidade
aqui tudo se tornou dia após dia mais doloroso
minha mulher anda atarefadíssima com o arranjo da casa
parece que mais nada existe para ela”

e o encontro de “outras compensações/ a amizade segura de uma amigo”

Finalmente, a carta a um amigo, verdadeira razão do abandono, da partida “queria dizer-te por que parto/ por que amo”. O desejo, a procura insaciável do “tu”, o medo da ausência, da solidão justificam a partida, o isolamento

“estou definitivamente só
estou preparado para o grande isolamento da noite
para o eterno anonimato da morte
mas perdi o medo
a loucura assola-me
preparo a última viagem às Índias imaginadas”

(Re) Leiam Al Berto. Eu, adoro a sua escrita… e vou (re)lê-lo sempre.



20 outubro, 2019

A Angústia do Guarda-Redes antes do Penalty, de Peter Handke




SINOPSE

Neste livro, em que a angústia causada pelo penalty é um metáfora da vida, aspecto sublinhado no filme sobre ele feito por Wim Wenders, Peter Handke fala-nos de um amigo guarda-redes que depois de ser despedido do emprego assassina uma mulher sua ocasional amante e deambula num mundo que parece ter perdido todo o sentido.

OPINIÃO

O livro A Angústia do Guarda-Redes Antes do Penalty, do escritor austríaco Peter Handke (Prémio Nobel da Literatura 2019), adaptado ao cinema pelo alemão Wim Wenders, é uma metáfora da vida. 

A narrativa retrata Joseph Bloch, um canalizador que antes tinha sido um famoso guarda-redes. No dia em que é despedido do seu emprego, Bloch sai de casa e começa a deambular pela cidade. Uma angústia existencial instala-se nele e passa a ter uma vida sem sentido. Porém, a sua errância vai transformar-se em fuga devido ao assassínio que cometeu. 

Peter Handke desenvolve a sua trama descrevendo simplesmente os factos e gestos do personagem. Sem intriga, apenas errância e ambiguidade. Trata-se de um texto minimalista, com uma escrita cinematográfica, frases simples e curtas, alguns diálogos muito curtos e, por vezes, sem sentido. 

“Porque é que ele estava sempre a sentar-se, a levantar-se, a sair, a andar por ali, a voltar? perguntou a locatária.” (p. 43) 

O leitor não compreende muito bem o que leva Bloch a agir desta forma. O despedimento? O assassínio? Nada sabemos do seu passado, nada nos diz sobre a sua atitude, nem os raros pensamentos nos elucidam. Bloch tem um comportamento alienado e, gradualmente, à medida que a sua doença avança, vai perdendo consciência da realidade. 

“De novo sozinho no quarto encontrou tudo mudado. (…) Sentou-se em cima da cama: ainda mesmo agora a cadeira estava à direita dele, e neste momento estava à esquerda. Estaria a imagem do avesso? Olhou da esquerda para a direita, depois da direita para a esquerda. Repetiu o movimento dos olhos da esquerda para a direita e este olhar pareceu-lhe uma leitura.” (p.94) 

A sua angústia surge da distorção do real, da desordem emocional. Poder-se-á concluir que Bloch sofre de esquizofrenia? 

É na parte final que Peter Handke coloca Bloch a assistir a um jogo de futebol e obviamente descreve a atitude do guarda-redes perante um penalty. 

“É cómico ver o guarda-redes assim, sem a bola, a correr de um lado para o outro à espera da bola” disse ele (Bloch). 

Angústia, ansiedade, sucesso e derrota são emoções comuns à vida e ao futebol.




14 outubro, 2019

Leva-me Contigo - Portugal a pé pela Estrada Nacional 2, de Afonso Reis Cabral



SINOPSE

A Estrada Nacional 2, com os seus quase 739 quilómetros, é a maior de Portugal e uma das maiores do mundo. Atravessa Portugal de Chaves a Faro, numa linha contínua que não é feita só de asfalto. Estrada mítica e com identidade própria, é o mais belo caminho para conhecer as pessoas, as paisagens - o País, em suma. O escritor Afonso Reis Cabral - autor dos romances O Meu Irmão (vencedor do Prémio LeYa) e Pão de Açúcar - decidiu percorrê-la a pé.

Durante vinte e quatro dias, completamente sozinho, deixou que a estrada o guiasse: cruzou montanhas e planícies, mergulhou em rios, caminhou debaixo de tempestades e sob o sol ardente. Mas sobretudo parou para conversar com quem encontrava. No fim de cada dia, publicava na sua página de Facebook um diário escrito no telemóvel relatando os principais eventos da viagem. Com milhares de leitores, comentários e partilhas, os seus textos geraram grande entusiasmo.


OPINIÃO

Vou começar pelo fim. Recomendar muito este livro de Afonso Reis Cabral que relata a sua aventura de percorrer a EN2 a pé e sozinho (de Chaves a Faro – 738 Km), entre 22 de abril a 15 de maio. 

Sozinho, pela estrada, mas muito acompanhado pelas redes sociais. Afonso decidiu partilhar esta caminhada no seu facebook e fê-lo tão bem, com uma escrita simples porque real, mas tão poética que foi conquistando apoios e cada vez mais e mais leitores que, ansiosamente, esperavam pelo seu relato diário. 

“Antes da Sertã, aconselhado pelo caldo-verde, deitei-me à sombra de um sobreiro, imaginei o fio de estrada que ficou para trás e adormeci.” 

Eu fui uma dessas pessoas, diariamente, à noite, lá estava eu à espera do seu relato. Por isso, também eu fiz a EN2 com o Afonso, não pela estrada, não com sofrimento e cansaço sob chuva intensa ou calor tórrido, mas sim, pelas suas palavras, pelas suas descrições das pessoas e da paisagem que tanto me cativaram. 

“Ainda não decidi se a chuva é boa companhia. Por um lado, mete-me muito para dentro de mim mesmo, fico resumido ao poncho e vejo pouco mais do que a ponta das sapatilhas; por outro, isto de estar sempre a escorrer limpa-me o corpo e o espírito. A estrada e eu tomamos duche juntos como amantes.” 

Afonso Reis Cabral é um jovem escritor de 29 anos. Escreveu O Meu Irmão e ganhou o Prémio Leya, 2014; escreveu Pão de Açúcar e ganhou o Prémio José Saramago 2019; com este ainda não ganhou nenhum prémio, mas conquistou muitos leitores e admiradores. 


10 outubro, 2019

Afonso Reis Cabral vence Prémio José Saramago 2019



                                                                    créditos SIC Notícias (net)

Afonso Reis Cabral venceu o Prémio Literário José Saramago. O anúncio foi feito no dia 8 pela presidente do júri, Guilhermina Gomes, na sede da Fundação José Saramago, na Casa dos Bicos, em Lisboa.
O escritor de 29 anos foi distinguido com o romance Pão de Açúcar que retrata a vida de Gisberta, uma transexual que foi assassinada na cidade do Porto, em 2006.

O Prémio José Saramago é atribuído pela Fundação Círculo de Leitores, a cada dois anos, a jovens autores com idade não superior a 35 anos, que escrevam uma obra literária em língua portuguesa.

09 outubro, 2019

Fernão de Magalhães, de Stefan Zweig





SINOPSE


«É talvez a mais extraordinária odisseia na história da humanidade, esta expedição de 265 homens decididos, dos quais só regressaram 18 no navio desmantelado, mas trazendo içada no mastro a bandeira da máxima vitória.» Da Introdução

OPINIÃO

É sempre com enorme prazer que leio Stefan Zweig. E mais uma vez, não me desiludiu, pelo contrário. Esta biografia de Fernão de Magalhães, o primeiro homem que há 500 anos levou a cabo a circum-navegação, revela-nos uma descrição detalhada do homem, da época (descobrimentos) e do grande feito histórico alcançado. 

Aprendi muito sobre este homem empreendedor, observador e curioso (características que lhe permitiram adquirir uma grande sabedoria sobre a arte de navegar). Com uma personalidade fortíssima e com uma vontade enorme de alcançar o seu sonho, planeou cuidadosamente cada pormenor da viagem. Nada foi esquecido, tudo foi analisado. Nada nem ninguém (e muitos obstáculos teve de ultrapassar, quer em terra antes da partida, quer durante a viagem) conseguiu deter este homem de conduzir a sua frota até ao Pacífico pelo Ocidente. Recomendo muito a leitura desta biografia. Foi com prazer que “viajei” com estes dois homens: o herói que conquistou o mundo e o escritor que tão bem e imparcialmente o descreveu




01 outubro, 2019

O Gigante Enterrado, de Kazuo Ishiguro




SINOPSE

Tudo se passa há muitos, muitos anos, num local de fronteiras bem diferentes das actuais e marcado por grandes extensões de solo árido. Nalgumas zonas, os aldeões viviam em abrigos, parte dos quais cavados na encosta dos montes, ligados uns aos outros por passagens subterrâneas. Era num sítio assim que habitava o casal de idosos que tem lugar central nesta história: Axl e Beatrice. Um dia os dois decidiram ter chegado a hora de procurar o filho que há muito não viam e de quem pouco se recordavam. Naquele tempo longínquo esta era uma viagem que, previsivelmente, traria perigos. Mas aquela proporcionou muito mais do que isso. Uma amnésia colectiva parecia ter-se instalado naquela zona, como uma névoa que descera à terra para fazer esquecer em parte o passado, individual e colectivo. Mas a viagem de Axl e Beatrice revela-se um regresso à lembrança. E esta nem sempre deixa um rasto feliz.
Esta é uma história sobre memórias perdidas, amor, vingança e guerra. É ainda uma história que recua ao passado, transportando o leitor para terrenos percorridos por cavaleiros do rei Artur e monges, ogres e dragões. Um dragão em particular - Querig - é o foco das atenções. E, em relação a ele, as missões dividem-se. A diferença entre poupá-lo ou tirar-lhe a vida pouco tem de fantasia. Depois de dez anos sem publicar ficção de fôlego, Ishiguro apresenta-se agora com uma história inesperada que, por certo, fica na memória.


OPINIÃO

Este livro é uma alegoria da vida. Apesar de não apreciar literatura fantástica, e este livro tem alguns aspectos dessa índole, considero que a narrativa principal nos faz reflectir sobre a vida, de como com o passar do tempo surgem o desgaste emocional, a perda da memória, as suspeições, as doenças e a morte. 

A acção situa-se na Idade Média, no tempo do Rei Artur marcado pelas lutas entre bretões e saxões. Estamos na presença de guerreiros, duendes, ogres e dragões. Porém, os protagonistas são Axl e Beatrice, um casal de idosos, que, certo dia, decidem empreender a viagem à procura do filho que deixaram de ver há muito tempo. A particularidade deste casal e de tantos outros habitantes é que não têm memória devido a uma “névoa” que os faz esquecer quer do passado quer de acontecimentos mais recentes. Ao longo da viagem, várias peripécias vão acontecendo, umas mais terríveis que outras, e algumas lembranças vão surgindo o que causa, por vezes, algum mal-estar, algumas dúvidas entre o casal. Mas o amor e a cumplicidade que os une superam todas as dificuldades e os conflitos que se lhes apresentam ao longo da viagem. 

O próprio título O Gigante Enterrado encerra uma grande metáfora que não posso explicar pois tiraria o prazer da descoberta da leitura. 

Ishiguro presenteia-nos com uma escrita poética e com um final maravilhoso.




21 setembro, 2019

A maior flor do mundo, de José Saramago


SINOPSE

E se as histórias para crianças passassem a ser de leitura obrigatória para os adultos?
Seriam eles capazes de aprender realmente o que há tanto tempo têm andado a ensinar?

OPINIÃO

A maior flor do mundo é uma linda história para crianças e adultos. Neste primeiro conto infantil, Saramago integra a história como personagem, interagindo com o leitor, colocando questões sobre a sua capacidade de escrever histórias para crianças e propondo mesmo que sejam estas a reescrever a história.

Claro que nesta simples e curta história há um ensinamento. Outra coisa não se esperaria do autor. Através de uma coisa muito simples como regar uma flor que, no entanto, exigiu esforço por parte da criança, se demonstram valores como a esperança, a perseverança e o amor.


17 setembro, 2019

Os Fios, de Sandra Catarino


SINOPSE

Numa noite de lobos em que todos rezam a Santa Bárbara e os mais velhos recordam uma tragédia antiga, chega misteriosamente à aldeia um estrangeiro e a sua filha Madalena, de três anos, cujos olhos cinzentos tão depressa atraem como assustam.

Nessa mesma noite, a criada do solar vem chamar Violeta para que acuda à sua senhora - pois a hora do parto chegou intempestiva - e Celeste nascerá pouco depois, ignorando que a solidão rodeará grande parte da sua vida. No Fundo do Lugar, onde a água da chuva irrompe em ondas pelas casas mais pobres, é a vez de Samuel - o que desenha bichos no chão dos quintais e imita o canto das aves - temer, como sempre, pela vida da mãe.

Madalena, Celeste e Samuel são os lados desiguais do triângulo donde brotam os fios desta história, contada por três mulheres que se assemelham a fiandeiras do tempo: Antónia, a viúva que tricota camisolas e mantas, acrescentando dias à vida de cada um; Violeta, a que apara nas mãos os filhos da terra e guarda segredos tristes numa gaveta; e Emília, a que ouve em sonhos o afiar de facas e calcula os caminhos que a morte escolhe percorrer.

Os Fios - romance de estreia que revela uma surpreendente maturidade literária - combina de forma magistral a crueza do meio rural com um lirismo inesperado e bem-vindo que torna esta narrativa mágica e poderosamente empática.

OPINIÃO

Adorei este romance. A narrativa de Sandra Catarina revela uma profunda sensibilidade. Com capítulos curtos, alguns de uma só página, numa escrita poética e ilusoriamente simples, a autora descreve um meio rural onde todos se conhecem e partilham as memórias, as crenças, as doenças, o sofrimento e também a coscuvilhice. 

“Poucos viram, mas toda a aldeia sabe.” (p. 83) 

Os Fios tricotados por Antónia representam a metáfora da vida, a passagem do tempo. 

“Em casa, ponho-me a tricotar-lhe uma camisola, como no início. Talvez para me convencer de que volta. Vou precisar de vários novelos, tantos fios quantos os caminhos que ele fará na floresta até encontrar o seu destino. Escolho uma lã verde da cor dos caules, a condizer com a sua alma.” (p. 149) 

“Este é o tempo de rasgar outro será o de coser” (p. 117). 

Antónia, Violeta e Emília são as três mulheres que (cada uma com uma missão muito particular) contam a vida da aldeia, que vão desbravando o caminho, que estabelecem a ligação entre as personagens e os acontecimentos. Uns tristes, outros mágicos. Prefiro os últimos: o som do violino, os dedos a deslizar nas teclas, o perfume das flores, o voo dos pássaros de papel, os desenhos de animais… 

“ Levo-os para a mesa e espalho-os sobre o tampo. Não são suficientes para conceder desejos, o professor sempre nos falou em bandos de mil, provavelmente foram por isso que nunca cheguei a ver o mar. (…) Abro um dos pássaros, para me lembrar de como se fazem, e volto a dobrá-lo por tentativas, acertando os vincos. (…) Lá do alto, o Francesco lança os pássaros. Olho para o céu e avisto-lhes as plumagens brancas, pardas, cinzentas, feitas dos papéis que recolhi durante meses…

 “Aos poucos, tudo se fazia constelação” (p.196)




11 setembro, 2019

A Sibila, de Agustina Bessa Luís





SINOPSE

O norte de Portugal, em finais do século xix, na propriedade da Vessada, há já muito tempo que são as mulheres que, perante a indolência e os sonhos de evasão que os homens alimentam, asseguram como podem a gestão da propriedade. Quina era uma adolescente franzina e inculta, que desde cedo participava nos trabalhos do campo ao lado dos trabalhadores. Com a morte do pai, com a propriedade quase em abandono, Quina passa a ter que ter uma ainda maior responsabilidade na administração da mesma. Graças ao seu esforço a todos os níveis, começa a acumular de novo a riqueza que seu pai desperdiçara, o que lhe vale a admiração da sociedade. Quina era uma pessoa lúcida, astuta e sempre em demandas, o que faz com que esta se torne conhecida por Sibila…

O romance A Sibila foi concluído no dia 16 de Janeiro de 1953 e logo depois apresentado ao Prémio de romance Delfim Guimarães, instituído pela Guimarães Editores, que lhe foi atribuído. Foi publicado pela primeira vez, logo depois, em 1954, há 55 anos. Esta edição fixa o texto definitivo da obra. É o livro mais famoso da autora, traduzido em várias línguas.


OPINIÃO

Li A Sibila em 82 ou 83 (comprei o livro em Fevereiro de 1982). Lembro-me que não gostei muito porque achei a escrita difícil e densa. Bem mais tarde, tentei reconciliar-me com a escrita da autora e li outros livros. Porém, nunca mais peguei neste até que li (este ano) O Poço e a Estrada – Biografia de Agustina Bessa-Luís, de Isabel Rio Novo. Nesta biografia, para além de várias referências à obra que trouxe reconhecimento à autora, há um capítulo dedicado a A Sibila. Decidi dar-lhe uma segunda oportunidade, pois conhecendo melhor Agustina, certamente estaria mais apta a compreender a sua obra. E assim foi. A idade altera a forma como entendemos um livro. Por vezes, podemos “matar” um escritor porque fomos obrigados a lê-lo ou porque ainda não temos maturidade para o entendermos. 

Quina, a sibila, é uma personagem fabulosa. “Estava perfeita no seu cargo de sibila, pois conhecia a alma humana de dentro para fora, o que é talvez prever sempre nela o imprevisível, sem, porém, chegar a compreendê-la.” (p. 135) 

A figura feminina é o ponto fulcral desta narrativa. São as mulheres da família Teixeira que suportam a decadência e o ressurgimento da casa da Vessada. Na obra, paralelamente à vida humilde, de luta e de trabalho levada por Quina, existe uma vida burguesa de luxo e de futilidade. Quina com a sua sabedoria manteve-se sempre fiel aos seus valores e desprezou os da burguesia embora se tenha servido dela para reerguer o seu património. 

“Essa fidelidade ao sangue era lei em toda a família, e Quina sempre a cumprira” (p. 224) 

Vale a pena (re)ler Agustina Bessa-Luís. Este ou outros livros.



01 setembro, 2019

mi Buenos Aires querido de Ernesto Schoo



SINOPSE

«Frente ao desafio de escrever sobre a complexa cidade de hoje, e a impossibilidade de abarcar Buenos Aires na sua densa malha urbana [...], vislumbrei uma única escolha possível: referir-me à "minha" cidade [...], o espaço delimitado onde decorreu a minha já longa vida. Haverá leitores que me critiquem pelo facto de não me ocupar do tango, do bairro de La Boca, da vida nocturna ou da calle Corrientes. Preferi deixar esses lugares- comuns no sítio próprio, as páginas dos inúmeros guias turísticos que existem sobre o tema. [...] Ao reler-me, no final desta deambulação totalmente subjectiva pelas ruas, pelos lugares e pelos edifícios que me são familiares, deixo o alerta para os limites, talvez estreitos, das minhas andanças portenhas: o bairro Norte, a Recoleta, Palermo, um pouco do centro, um pouco dos bairros de prestígio, como Belgrano ou Flores. Pouco mais: há zonas inteiras da cidade que me são estranhas, e lamento-o. Mas quero ser fiel aos cenários que conheço em vez de fingir uma cidadania ecuménica, essa espécie de condição absoluta de portenho a que aspiram imaginariamente alguns vates antiquados.»


OPINIÃO

Ernesto Schoo, jornalista argentino, apresenta-nos neste livro a sua Buenos Aires, a sua cidade, como ele próprio o refere “vislumbrei uma única escolha possível, referir-me à ”minha” cidade, o espaço delimitado onde decorreu a minha já longa vida”. Ele não pretende que o seu livro seja um guia turístico, mas sim a descrição do vivido, do observado e do recordado. 

Assim, numa prosa clara, elegante e sentimental, temos um relato que inclui, naturalmente, momentos da vida do autor. Como se deambulasse pela “sua” cidade, o autor descreve-nos os recantos frequentados, as ruas percorridas, as caminhadas silenciosas, os bairros e as várias influências arquitectónicas, os cemitérios, os jardins, as árvores, os teatros, e claro, a reconciliação dos portenhos com o rio “indolente e cor de terra”. 

“O Jardim Botânico é um daqueles lugares, bastante raros em Buenos Aires, onde o tempo se detém, a vertigem da grande cidade se anula e surge, misteriosamente, um espaço de sossego”.