08 julho, 2010

a fruta que se queria cristalizada de João Negreiros




a fruta que se queria cristalizada

não sei qual é o tempo da fruta

como o que me dão
sem pensar na hora a que o Sol se põe

as castanhas congeladas do verão sabem-me bem

os diospiros podres da primavera também

não sei quando acaba a época

não sei quando começa a nova

e na minha época também não encontro espaço

finjo maduro sem saber se verde

e amoleço com a mágoa de quem devia ser duro

não sei a que horas devo dar sumo nem como me hei-de chamar

tenho a dificuldade de me reconhecer a origem

a idade

o sabor

o sangue

tenho o medo de me mandar analisar

podia ser obrigado a cortar-me todo e a secar aos bagos

às rodelas

aos nacos

sou a fruta de época que vem a seguir à carta dos gelados
escrita à mão pelo gerente do restaurante que fechou

sou a fruta sem época

sem sumo

sem sabor

e com caroços e pevides a fazer de lágrima

gota de gelo escorre

bochecha da lagarta morta

vai à melopeia da arca das consequências

a que me quer frio para conservar um tempo sem gente

sem árvores

sem chão

e sem os meninos que estiveram para me roubar

aqui está muito frio

ninguém me vai comer

e eu queria

queria a boca que me quebrasse o jejum

me lambesse as feridas

me chupasse as veias

me fizesse as ideias em gomos

e não vem

a boca não vem e imagino-me no palácio quente de marfim a matar-me por todo o lado

mastigando-me por todo o lado

desconjuntando-me por todo o lado para me acabar a eternidade que demora tanto

não tenho validade

não sei a validade

morri por dentro

sou incomestível como a sobremesa fria do natal

e levo as pontas dos dedos a tremer há décadas

se ao menos tivesse luvas

se ao menos tivesse dedos

se ao menos soubesse o que é a lareira

se ao menos me lembrasse da árvore

se ao menos soubesse esperar

se ao menos tu existisses com fome e me amasses com fome eu desfazia-me na tua língua e dava-te o sumo seco azedo de quem
de quem não sabe

de quem não foi convidado para a ceia

de quem não tem família

nem amigos

e que vai levar a vida

e o que falta da morte a tiritar no frio e a implorar pelo fim

in a verdade dói e pode estar errada, de
João Negreiros

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