25 janeiro, 2010

valter hugo mãe também canta

WALTER HUGO MÃE canta com todas as letras, sobretudo as maiúsculas, com a caixa (torácica) bem alta, uma surpresa para quem ouve e para quem o conhece. É que canta mesmo, à séria, apostando no esplendor da voz, quase num acto de vaidosismo, que contradiz a sua aparente timidez. Inscreve-se assim numa lista de escritores-cantores, onde também se incluem Jack Kerouac, William Bourroughs ou, aqui por Portugal, Jacinto Lucas Pires, para não falar no grande cantor-escritor Chico Buarque. Nesta linhagem walter hugo mãe (não sei se o cantor também se escreve assim, só com minúsculas, fica a dúvida) é dos melhores. A sua voz explode entre a música, lembrando a força expressiva de um Antony. A letra de Meio Bicho e Fogo é tão complexa quanto estranha, uma mensagem arrevesada, raríssima no pop português. Um labirinto de imagens, de mensagem difusa, porventura borgiano. A música de Miguel Pedro (Mão Morta/Mundo Cão) tem uma estrutura inteligente que favorece a voz, através da forma como prepara o clímax do refrão. walter hugo mãe não só é o escritor português de que toda a gente fala como é um cantar que vai dar que falar.

Artigo retirado de JL





Meio-bicho e fogo

parte o navio para o labirinto,

sai o navio no fio vermelho,

vai ardendo na linha da água

e o combustível vem do temporal...



e a fuga do amor que vier?

não há fuga,

eu sou tão impuro!

e segue o navio para o labirinto,

para mim...



que tonto e difícil

o mítico corpo,

meio bicho e fogo,

minotauro bomba

prestes a rebentar, já segue morto...

o navio a afundar sob o temporal!



não há fuga do amor que vier!

não há fuga,

eu sou tão impuro!

e segue o navio para o labirinto,

para mim.

para o labirinto,

para o fim...

(nota: o teledisco é feito com desenhos de Esgar Acelerado)

24 janeiro, 2010

Blackbird no Teatro D. Maria II


"Blackbird" - Teatro D. Maria II

Sala Estúdio
14 de Jan a 21 de Fev 2010
4ª a Sáb. 21h45 Dom. 16h15

O reencontro entre um abusador e a sua vítima, quinze anos depois da agressão sexual, é retratado em "Blackbird", peça do dramaturgo britânico David Harrower,
no Teatro Nacional D. Maria II.
Na peça, traduzida e encenada pelo cineasta Tiago Guedes, o actor Miguel Guilherme é Ray, um homem de 55 anos que, de repente, se vê confrontado com o passado quando Una (Isabel Abreu), de 27 anos, aparece de surpresa no seu local de trabalho.

23 janeiro, 2010

Ontem estive no inferno - João Negreiros




ontem estive no inferno

sabes o que me assustou mais?

foi não ter dado por nada

ontem estive no inferno e não dei por nada porque o que existe lá é o mesmo que existe aqui

ontem estive no inferno e estive mesmo para te chamar
mas achei que não ias querer ver

não tinha nada de novo
e o novo que tinha não era mau o suficiente

era talvez um pouco melhor
um pouco pior
um pouco diferente

mas na essência era o mesmo

o mesmo cheiro

o mesmo sabor

o mesmo som

o mesmo sujo

o mesmo ar

a mesma gente

só que diferente

com roupas rasgadas e esgares de dor

não
espera
o esgar de dor era igualzinho

as roupas
sim
eram diferentes

não
espera
que ontem vi um homem que estava
pois
pois é
nem as roupas

ontem estive no inferno para depois poder contar a todos como é

mas acabei por perder a viagem porque não tenho nada para contar

e o inferno continua

e está a arder nos meus olhos e nos teus também

e nos teus também

e um dia vamos lá parar todos

mas felizmente não vamos sofrer com a diferença

e vamo-nos sentir todos em casa porque a nossa casa é toda a mesma e está a cair como um baralho de cartas que nunca chegou a castelo

ontem estive no inferno e perdi-me lá dentro

e continuo lá

e sei que não vou dar com a maçaneta da porta

e se der não a vou saber rodar

e se a rodar um muro vai tapar a saída

e se o derrubar vai haver um guarda

e se matar o guarda vai haver um homem

e se rasgar o homem vai haver um papel

e não vou ter tesoura

e se tiver tesoura vai aparecer o demónio

e se beijar o demónio na boca e ele me deixar passar para que não conte a ninguém que o amei vai haver um Santo com a inocência ao colo

e não vou ter como o afastar

mas se o Santo perder a inocência e fugir para a procurar eu vou continuar em frente até à próxima barreira que és tu

que eu quero por seres a última

e vou tirar-te à vida devagar
deliciosamente e sem esforço por seres a única e última coisa viva que me impede de encontrar o fim do mundo que é vazio

e magro

e débil

e negro

e seco como o último galgo da corrida

o cão cego que só ganharia se tacteasse o coelho que está no infinito à espera

ontem estive no inferno

ontem estive no inferno

estava lá tudo

estavam lá todos

tu não
tu não
tu não

se estivesses não seria a mesma coisa


in luto lento, de João Negreiros

(poema e vídeo retirados do Blogue de João Negreiros)


a máquina de fazer espanhóis de valter hugo mãe


Em "a máquina de fazer espanhóis", romance que marca a passagem da editora QuidNovi para a Objectiva(chancela Alfaguara), valter hugo mãe criou um grupo de idosos para perceber, enquanto escritor, "que violência é essa de pensar a morte mesmo ao pé dela", ali no extremo da vida, quando o corpo se torne um inimigo e um traidor. (...)o autor considera ser este o seu livro mais autobiográfico:"É o mais pesoal, o que mais me magoou, aquele em que chorei mais; e é também o que mais se aproxima da minha intimidade, ou do meu medo de estar vivo." Ao moldar o protagonista, valter teve presente a figura do pai, desaparecido há precisamente 10 anos, ...

in Actual, 23 Jan. 2010

22 janeiro, 2010

Un geste pour Haïti

Un geste pour Haïti, une chanson pour collecter des dons
Zazie, Thuram, Aznavour, Passi, Roselmack, Stomy Bugsy, Cesaria Evora, Grand Corps Malade, et tant d'autres: une chanson pour un appel aux dons en faveur d'Haïti.


21 janeiro, 2010

Ciclo Marguerite Duras


CICLO: EM TORNO DE MARGUERITE DURAS


Este ciclo de 6 filmes dá a descobrir ou redescobrir a obra escrita de Duras através do olhar de outros cineastas, por ocasião da retrospectiva integral dedicada à realizadora Marguerite Duras na Cinemateca Portuguesa (22 de Janeiro a 15 de Março) e da representação da peça "La Musica" de Duras, encenada por Solveig Nordlund, no CCB (21 a 25 de Janeiro).


Informação retirada de Agenda Câmara Clara


Consultar o programa: Instituto Franco-Português

19 janeiro, 2010

Eugénio de Andrade (19-01-1923/13-06-2005)

Moça com brinco de pérola, ou
Mulher com turbante (1665-circa)
Jan Vermeer (1632-1675)



O sorriso

Creio que foi o sorriso,
sorriso foi quem abriu a porta.
Era um sorriso com muita luz
lá dentro, apetecia
entrar nele, tirar a roupa, ficar
nu dentro daquele sorriso.
Correr, navegar, morrer naquele sorriso.


Eugénio de Andrade

17 janeiro, 2010

Prix Lumière 2010: Welcome de Philippe Lioret

Voilà le résultat du Prix Lumière

Meilleur film : Welcome de Philippe Lioret

Meilleur réalisateur : Jacques Audiard pour Un Prophète ,

Meilleur scénario : Mia Hansen Love pour Le père de mes enfants

Meilleur acteur : Tahar Rahim pour Un Prohète

Meilleure actrice : Isabelle Adjani prix de la meilleure actrice pour La Journée de la jupe , un film qui pose le doigt sur les problèmes de violences urbaines, notamment dans le cadre de l’école.

Meilleur espoir masculin : Vincent Lacoste et Anthony Sonigo , les deux acteurs principaux des Beaux gosses .

Meilleure espoir féminin : Pauline Etienne pour Qu'un seul tienne et les autres suivront

Meilleur film francophone : J'ai tué ma mère de Xavier Dolan

Le prix du public TV 5 monde du meilleur film francophone : Où est la main de l'homme sans tête .


in première.fr


11 janeiro, 2010

Eric Rohmer, o cineasta francês, morreu

(© AFP Marie Rivière)


Visto como o Marivaux ou o Musset do cinema francês, o cineasta assinou 24 longas-metragens em 50 anos. Morreu hoje com 89 anos, em Paris.

informação e foto retiradas de
liberation.fr

Al Berto (11.Jan.1948/13.Jul.1997)


Se um dia regressares, a terra estremecerá na memória da tua ausência. E a água formará um vasto oceano do outro lado do teu olhar. Regressarás, talvez, quando o ar se tornar rubro em redor do meu sono - e o lume das horas, a pouco e pouco, saciar a boca que chama pelo teu nome. Encontrar-nos-emos nas imagens deste jardim de afectos e ódios. Porque os jardins são labirínticas arquitecturas mentais, onde podemos resguardar os corpos de qualquer voragem do tempo.Por isso, enquanto não regressas, construo jardins de areia e cinza, jardins de água e fogo, jardins de répteis e cassiopeias - mas todos abandono à invasão do tempo e da melancolia.Mas se algum dia regressares, passeia-te pelo meu corpo. Descobrirás o segredo deste jardim interior - cuja obscuridade e penumbras guardaram intacto o nocturno coração.


Al Berto

10 janeiro, 2010

A porta de Duchamp de Rosa Maria Martelo


Depois de ter publicado Em Parte Incerta e Vidro do Mesmo Vidro, ensaios sobre poesia portuguesa contemporânea, Rosa Maria Martelo apresenta um novo livro, editado pela Averno, A Porta de Duchamp. Este livro reúne 17 pequenos textos em prosa.

António Guerreio, na "Actual" de 9 Janeiro 2010 refere o seguinte: "A condição destes textos como imagens-leituras escritas - como escrita literária que participa do pensamento crítico-ensaístico" e dá o exemplo do texto "O Viajante" que , de forma indirecta, descreve o quadro de C. david Friedrich

Leia-se uma parte dessa narrativa (também transcrita no texto de Guerreiro) e comparemo-la com o quadro em causa:
"Está acima das nuvens, no alto da montanha mais alta. Vemo-lo de costas, imóvel e contemplativo. Na sua sóbria elegância citadina, dir-se-ia que para ali chegar mais não lhe foi preciso que atravessar tranquilamente uma avenida. Está sozinho diante dos cumes mais altos, vestido como um filho pródigo que regressasse a casa trazendo tdos os estigmas de quem vem de outro mundo (...). E como poderia ter chegado ali assim, sem trazer consigo nenhum rasto de poeira dos caminhos? Tudo é romântico desde que levado para longe, ter-nos-ia dito se verdadeiramente ali estivesse e agora olhasse para trás. Mas ele não pertence a esta paisagem, e por isso o vemos de costas, sem podermos adivinhar de que maneira o seu rosto procura enfrentar o brilho da neve, o reflexo da luz."

O viajante sobre o mar de névoa, 1818.

07 janeiro, 2010

Longe do Olhar dos Outros


Tempo branco, tempo de nenhuma paixão.
Desce ao âmago desta cela. Debruça-te para o interior do meu vazio. Nenhum rosto, nenhum pensamento, nenhum gesto inútil. Nenhum desejo — porque o desejo precisa de um rosto. E no lugar daquele que partiu acende-se a noite. Pressente-se a morte. Mas no fundo de mim carregas ao ombro uma chapa de aço, em forma de sol apagado. O teu corpo fundiu no silêncio do meu. Dormimos na espessura da poeira, e nela suspendemos o tempo. Abandonamos a alma. Esquecemo-nos. Nada sentimos, nenhum acto se realiza. Nenhuma alegria ou tristeza. Apenas matéria, matéria deixada à voragem dos escombros e da ferrugem. Agora podemos tocar, enlear, comprimir ou distender os corpos. Construir formas com eles e deixá-los, assim, numa melancólica eternidade. Longe do olhar dos outros, respiramos ao mesmo tempo - como uma só engrenagem, única e bela. Resquício de memória que se apaga lentamente, sem que ninguém dê por isso.

Al Berto, in O Anjo Mudo

06 janeiro, 2010

um poema de valter hugo mae

Henri Fantin-Latour (Grenoble, 14-01-1836/Orne, 25-10-1904),

sofro o fio que o
cabelo alinha no chão. a
noite que vem comer a luz
ao dia. minha voz
superior. deus certamente
corrige meus olhos. vejo o
frio, a paralisia do
vento. e preocupo-me
lentamente. um estar vivo
sem qualquer obrigação. vou
dizendo o escuro pormenorizadamente

walter hugo mãe

05 janeiro, 2010

um "Imagine" diferente

Overture - Étienne Daho





Il n'est pas de hasard,
Il est des rendez-vous,
Pas de coïncidence,
Allez vers son destin,
L'amour au creux des mains,
La démarche paisible,
Porter au fond de soi,
L'intuition qui flamboie,
L'aventure belle et pure,
Celle qui nous révèle ,
Superbes et enfantins,
Au plus profond de l'âme.

Portée par l'allégresse,
Et la douceur de vivre,
De l'été qui commence,
La rumeur de Paris,
Comme une symphonie,
Comme la mer qui balance.

J'arrive au rendez-vous,
Dans l'épaisse fumée,
Le monde me bouscule,
Réfugiée dans un coin,
Et observant de loin,
La foule qui ondule,
Mais le choc imminent,
Sublime et aveuglant,
Sans prévenir arrive.

Je m'avance et je vois,
Que tu viens comme moi,
D'une planète invisible,
Où la pudeur du cœur,
impose le respect,
La confiance sereine
Et en plus tu t'ouvres à moi,
Et en plus je m'aperçois,
Que lentement je m'ouvre,
Et en plus je m'ouvre à toi,
Et en plus je m'aperçois,
Que lentement je m'ouvre.

il fut long le chemin,
Et les pièges nombreux,
Avant que l'on se trouve,
Il fut le long le chemin,
Les mirages nombreux,
Avant que l'on se trouve.

Ce n'est pas le hasard,
C'est notre rendez-vous,
Pas une coïncidence.

album: Corps et armes

Finalistas do Prémio Literário Casino da Póvoa


Foi, hoje, divulgada a lista das dez obras finalistas do Prémio Literário Casino da Póvoa, para a edição de 2010 do Correntes d’Escritas, que irá decorrer entre 24 e 27 de Fevereiro.

Por ordem alfabética:

A Eternidade e o Desejo, Inês Pedrosa
A Mão Esquerda de Deus, Pedro Almeida Vieira
A Sala Magenta, Mário de Carvalho
Myra, Maria Velho da Costa
O apocalipse dos trabalhadores, valter hugo mãe
O Cónego, A. M. Pires Cabral
O Mundo, Juan José Millás
O verão selvagem dos teus olhos, Ana Teresa Pereira
Rakushisha, Adriana Lisboa
Três Lindas Cubanas, Gonzalo Celorio


Esta lista de dez obras finalistas foi seleccionada pelo júri, constituído por Carlos Vaz Marques, Dulce Maria Cardoso, Fernando J.B. Martinho, Patrícia Reis, Vergílio Alberto Vieira. No total, foram submetidos a concurso 160 livros de autores de língua portuguesa, castelhana ou hispânica, com obras em 1ª. edição, em português e editadas em Portugal entre Julho de 2007 e Junho de 2009, excluindo-se as obras póstumas e ainda aquelas da autoria de galardoados com o Prémio Literário Casino da Póvoa nos últimos seis anos.

Mais informação: aqui

Aprendiz de Viajante

Edvard Munch (Løten, 12-12-1863/ Ekely, 23-01-1944)

Um dia li num livro: «viajar cura a melancolia».
Creio que, na altura, acreditei no que lia. Estava doente, tinha quinze anos. Não me lembro da doença que me levara à cama, recordo apenas a impressão que me causara, então, o que acabara de ler.
Os anos passaram - como se apagam as estrelas cadentes e, ainda hoje, não sei se viajar cura a melancolia. No entanto, persiste em mim aquela estranha impressão de que lera uma predestinação.
A verdade é que desde os quinze anos nunca mais parei de viajar. Atravessei cidades inóspitas, perdi-me entre mares e desertos, mudei de casa quarenta e quatro vezes e conheci corpos que deambulavam pela vaga noite... Avancei sempre, sem destino certo.
Tudo começou a seguir àquela doença.
Era ainda noite fechada. Levantei-me e parti. Fui em direcção ao mar. Segui a rebentação das ondas, apanhei conchas, contornei falésias; afastei-me de casa o mais que pude. Vi a manhã erguer-se, branca, e envolver uma ilha; vi crepúsculos e noite sobre um rio, amei a existência.
Dormia onde calhava; no meio das dunas, enroscado no tojo,
como um animal; dormia num pinhal ou onde me dessem abrigo,
em celeiros, garagens abandonadas, uma cama...
E quando regressei, com a ânsia do eterno viajante dentro de mim.
Hoje sei que o viajante ideal é aquele que, no decorrer da vida, se despojou das coisas materiais e das tarefas quotidianas.
Aprendeu a viver sem possuir nada, sem um modo de vida. Caminha, assim, com a leveza, de quem abandonou tudo. Deixa o coração apaixonar-se pelas paisagens enquanto a alma, no puro sopro da madrugada, se recompõe das aflições da cidade.
A pouco e pouco, aprendi que nenhum viajante vê o que os outros viajantes, ao passarem pelos mesmos lugares, vêem. O olhar de cada um, sobre as coisas do mundo é único, não se confunde com nenhum outro.
Viajar, se não cura a melancolia, pelo menos, purifica. Afasta o espírito do que é supérfluo e inútil; e o corpo reencontra a harmonia perdida - entre o homem e a terra.
O viajante aprendeu, assim, a cantar a terra, a noite e a luz,
os astros, as águas, os peixes e a treva, os peixes, os pássaros e as plantas. Aprendeu a nomear o mundo.
Separou com uma linha de água o que nele havia de sedentário daquilo que era nómada; sabe que o homem não foi feito para ficar quieto. A sedentarização empobrece-o, seca-lhe o sangue, mata-lhe a alma - estagna o pensamento.
Por tudo isto, o viajante escolheu o lado nómada da linha de água. Vive ali, e canta - sabendo que a vida não terá sido um abismo, se conseguir que o seu canto, ou estilhaços dele, o una de novo ao Universo.

Al Berto, Anjo Mudo

03 janeiro, 2010